"Requalificação" e "urbanização" têm sido duas palavras muito frequentes na boca de prefeitos e governadores, nos últimos anos, ao falar sobre espaços públicos de Fortaleza. De pontos turísticos, como a Ponte dos Ingleses, a lugares com maior fluxo de moradores das redondezas, como o Parque Raquel de Queiroz, a promessa é de que os locais se tornarão mais seguros, convidativos à frequentação e, por consequência, úteis à cidade.
Há uma série de discussões que podem ser levantadas sobre estas propostas. Elas foram desenvolvidas ouvindo a comunidade daquele local? Há risco de descaracterizar espaços com lugar na memória afetiva do fortalezense? Podem resultar em gentrificação? São questionamentos válidos, parte do debate na esfera pública. Há críticas mas, também, exemplos positivos: o calçadão do Beira-Rio, na Barra do Ceará, é bem avaliado pelos frequentadores.
O conflito na Feira da Parangaba ocorreu pela intenção de transformar a área em algo totalmente distinto. Ela virou uma praça com quadra, pista de skate, brinquedos infantis, academia ao ar livre... E um grande espaço inerte, com piso de tijolos, árvores espaçadas, poucos bancos e nenhuma parte coberta que permita se abrigar do Sol (ou das chuvas) da Capital.
Na margem oposta da lagoa, uma rua passou a ser fechada, aos domingos, para abrigar os feirantes. Não há casas neste trecho, apenas a lagoa, de um lado, e fundos de diversos terrenos, no outro. Os comerciantes têm um espaço para suas atividades, ninguém perde semanalmente o acesso à própria residência, a requalificação foi realizada, todo o mundo ganha, correto?
Não exatamente. Houve, sim, avanços: os feirantes agora são cadastrados na Prefeitura, permitindo que acionem o Poder Público em questões burocráticas; há banheiros públicos (com estado de conservação e asseio discutível) para os frequentadores; e, acima de tudo, a Feira da Parangaba — e as centenas de empregos, diretos ou indiretos, gerados por ela — não precisou acabar.
Foi um processo muito mais harmonioso, por exemplo, que o da Feira da Madrugada, no Centro. Ocupando parte de ruas e avenidas, o local foi palco de conflitos por anos. Vendedores reivindicavam estrutura adequada, a Prefeitura queria liberar o tráfego de veículos. As partes só chegaram a um acordo após um ambulante ser morto pela Guarda Municipal de Fortaleza (GMF).
Na Feira da Parangaba, os vendedores têm uma série de queixas desde 2019, quando houve a troca de local. A principal — ouvida nas entrevistas e em reclamações feitas ao vento por diversos comerciantes e clientes — é a falta de espaço. A extensão da rua liberada para as barracas simplesmente não comporta a quantidade de comerciantes. Os feirantes apresentaram a demanda já na primeira semana após a transferência, conforme noticiado por O POVO à época.
Outra reclamação é a visibilidade. Rocimeire Maciel, que há dez anos vende roupas na Feira da Parangaba, pontua que, na localização antiga, o fluxo era maior. Segundo ela, muitas pessoas, no caminho para os terminais de ônibus Parangaba e Lagoa, acabavam passando em frente às barracas e decidiam fazer compras.
Ela também pontua sobre o próprio formato da feira. "Antigamente, se entrava por todo canto, saía por todo canto. Agora, só tem duas entradas e duas saídas", afirma. O trecho da rua Joaquim Moreira (onde ficam os vendedores) entre a avenida Carneiro de Mendonça e a rua Vila Lobos é um corredor, sem um cruzamento sequer.
Rosa Valentim, que vende verduras e legumes também há uma década, reclama que a estrutura física deixa a desejar. "Enche de água aí quando chove", afirma, apontando para uma boca de lobo.
"Quando chove, ninguém vende nada", completa a feirante, ressaltando que, devido ao lamaçal e ao esgoto que transborda, os clientes vão embora ao primeiro sinal de tempo fechado. A localização anterior da feira, apesar de ter chão de terra batida, era levemente mais alta que a lagoa, o que prevenia alagamentos.
A reportagem procurou a Secretaria Executiva Regional (SER) IV (responsável pela área onde fica a feira), da Prefeitura, e a Cagece, do Estado, perguntando sobre a drenagem e o esgoto na rua. Ambos os órgãos afirmaram ter visitado o local na segunda-feira, 26. A SER IV pontuou que os técnicos irão "elaborar um relatório com os encaminhamentos necessários", enquanto a Cagece disse que o escoamento na região está "funcionando normalmente".
Apesar dos problemas, a Feira da Parangaba segue vibrante. Quando a reportagem chegou ao cruzamento Joaquim Moreira x Carneiro de Mendonça, certamente não parecia um domingo às 7h30min. De um lado, com um carrinho de mão equipado com caixa de som, um vendedor anunciava seus produtos — "elástico para levar seus cacarecos na bicicleta" — e os dos colegas ao redor — "Duas chinelas por dez reais, uma para o pé direito, outra para o pé esquerdo".
Na esquina oposta, onde de fato começava a feira, feirantes sem equipamentos sonoros usavam a garganta. Neste primeiro trecho, predominam utensílios domésticos e miudezas. A poucos metros da entrada, um homem ofertava, sobre uma lona no chão, diversas ferramentas de trabalho pesado: furadeiras, lixadeiras e... Uma motosserra.
Continuamos o trajeto e chegamos aos animais — os vivos. Galinhas (e galos), capotes, gansos, patos e aves menores, vendidas como pets e não como potencial janta, dão o nome pelo qual o local é popularmente conhecido: a Feira dos Pássaros segue com muitos pássaros.
Outros animais, também: vi coelhos; filhotes de cachorro de diversas raças; e peixes. Muitos peixes. Cerca de uma dúzia de feirantes exibiam prateleiras com animais aquáticos dentro de sacolas plásticas, garrafas — e até em aquários.
Mais à frente ficam eletrônicos, como celulares e videogames. Estes últimos, antes da popularização dos smartphones, atraíram à Feira da Parangaba, por anos, quem desejava um console, mas não tinha condições de comprar um modelo novo nas lojas. Agora, apenas três ou quatro vendedores seguem ofertando estes produtos.
Na calçada oposta à margem da lagoa, onde não há marcações no chão delimitando o espaço dos feirantes credenciados, era comum ver vendedores ocasionais, ofertando objetos que possivelmente tinham, sem uso, em casa. Notei disjuntores, canos de PVC, roupas e brinquedos, entre outros. Para estes itens, é comum haver ofertas de troca, e há quem vá para a Feira da Parangaba com o intuito do escambo.
As barracas de hortifrúti são, em sua maioria, concentradas na parte seguinte — embora seja comum ver, pontualmente, feirantes ofertando vegetais nas outras "seções". Aqui o cenário lembra muito as feiras menores, de bairro.
(Foto: FERNANDA BARROS)Tradicional Feira da Parangaba, às margens da Lagoa da Parangaba, atrai grande público devido, principalmente, à oferta diversificada de produtos
Também há vendedores de carne e peixe — cortados na hora, "como dita o costume" destes locais — e pequenas lanchonetes. Em algumas delas, é possível levar o peixe recém-comprado e, mediante uma taxa, recebê-lo frito. Ao lado, um barulho alto de motor, familiar, indica um moedor de cana produzindo caldo fresco — vendido com pastel, afinal de contas, estamos em uma feira.
Na última parte do trajeto ficam a maioria das barracas de roupas — embora, assim como as de vegetais, estas também apareçam com certa frequência por toda a extensão da feira. Distante mais de 500 metros da entrada principal, este trecho tinha, quando chegamos, pouco movimento. Muitos comerciantes ainda terminavam a montagem suas barracas para iniciar as vendas.
A esta altura, já havíamos passado quase uma hora percorrendo o trajeto desde a avenida Carneiro de Mendonça, observando as barracas, fotografando diversos pontos da feira e — por que não? — perguntando o preço de um ou outro produto. Aqueles que iam ao local somente com a intenção de fazer compras, imagino, se detinham mais ao longo das diversas sessões, e ainda levariam algum tempo para chegar às de roupas.
Voltamos a esta parte por volta das 9 horas, mas o fluxo ainda era fraco. Os poucos clientes vinham, em sua maioria, da entrada na rua Vila Lobos, muito menos movimentada. A reclamação da feirante Rocimeire, ao que tudo indica, tem embasamento, ao menos no caso dos vendedores que ficam nesta parte — os espaços disponibilizados pela Prefeitura são reservados por permissionário.
Considerando que, na Feira da Madrugada, muitos comerciantes alugam boxes em galpões privados, a Feira da Parangaba persiste, como, talvez, o maior comércio a céu aberto da Capital. A mudança de local tornou a situação mais difícil tanto para vendedores quanto para clientes, mas a feira persiste.
A localização antiga, por sua vez, é uma imensa área subutilizada. Deixo ao leitor que forme a opinião sobre se realmente valeu a pena deslocar todos estes trabalhadores para construir uma praça que passa quase todo o tempo completamente vazia.
Reportagem seriada traz um roteiro das feiras de Fortaleza e os destaques de cada uma delas