Alerta: o conteúdo dessa reportagem contém tópicos que, pela perspectiva religiosa ou estado de saúde mental, podem ser considerados sensíveis.
Um dos poemas mais famosos de Antônio Cícero, filósofo, escritor e crítico literário, chama-se O fim da vida. Os versos narram:
Conheci da humana lida
a sorte:
o único fim da vida
é a morte
e não há, depois da morte,
mais nada.
Eis o que torna esta vida
sagrada:
ela é tudo e o resto, nada.
Outros textos e músicas falam pelo escritor: era um entusiasta do amor, das paixões, da liberdade. Em suma, de estar vivo. E justamente por associar vida à dignidade, optou por uma morte “digna”, em suas palavras. Aos 79 anos de idade, Antônio Cícero morreu, na Suíça, por meio de um procedimento de suicídio assistido. Sofria de Alzheimer.
Os últimos dias foram preenchidos por passeios em Paris, contou o marido do escritor, o figurinista Marcelo Pies, ao jornal O Globo. Viram exposições surrealistas, jantaram em bons restaurantes e admiraram a arquitetura da igreja Sainte Chapelle. Partiram para a Suiça. O processo foi simples, ele narra. Depois do medicamento, Cícero segurou a mão do marido, dormiu por meia hora e faleceu.
"Admiro imensamente a coragem e a determinação. Ele sempre apoiou todas as formas de liberdade, e essa foi mais uma", disse Marcelo, por fim. Na família, o relato é o mesmo. Após a morte do irmão, a cantora Marina Lima, escreveu: "Entendo meu irmão. Cícero foi coerente com tudo que pensava, desde o fim."
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A normalidade do ocorrido gerou debates sobre as escolhas no fim da vida e a forma como lidamos com a morte: como algo de sofrimento, vergonhoso. As possibilidades de procedimentos de morte assistida no Brasil e no mundo, além dos diferentes conceitos que envolvem a partida viraram temas de discussões. Mas, afinal, o que pode ser considerada uma morte digna e quais leis garantem nossos direitos de escolha sobre os momentos finais de vida?
O historiador Phillipe Ariès cita a combinação de três fases como definidoras do conceito de “boa morte”. São elas: o momento de saber que “chegou a hora”, o momento da morte e os procedimentos póstumos. Ao longo da história, características dessas fases se modificaram.
Entre os séculos V e XVIII, por exemplo, uma “boa morte” consistia em receber a notícia, preparar-se com calma e morrer em casa, rodeado de familiares e conhecidos. A cerimônia deveria ocorrer sem grandes emoções, sem visitas futuras à sepultura. A morte, cita o historiador, era familiar, apenas um estágio da vida.
O século seguinte, XIX, trouxe um protagonismo da família. Bens e dotes a familiares substituíram doações a igrejas em testamentos. O enterro tornou-se mais valorizado e os túmulos, ornamentados.
Mas a principal mudança veio no século XX, com a evolução da medicina. O surgimento de antibióticos, a expansão no acesso a equipamentos de saúde e universidades, novos aparelhos e tecnologias tornaram a morte menos corriqueira. Em vez de familiar, tornou-se um processo passível de causar sofrimento, conforme explicam os autores do estudo Morrer faz parte da vida: o direito à morte digna.
O texto cita fatores que reforçam essa percepção sobre a morte. Dentre eles, há o isolamento do paciente, com horários curtos de visita, e o desconhecimento sobre o estado de saúde. Na família, há a tensão de controlar os ânimos perante o internado.
Em dados, de fato, o acesso aos hospitais tornaram-os os principais cenários dos momentos finais da população. Em 1949, 50% dos óbitos de cidadãos de países desenvolvidos já ocorriam nestes locais. O índice cresceu ao menos 5 pontos percentuais por década e atingiu 80% em 1993.
Vale lembrar que número não significa um aumento de óbitos, mas sim de acesso ao atendimento no sistema de saúde, nos momentos finais de vida.
Com o protagonismo da medicina nos momentos finais, o principal tópico de discussão passa a ser a extensão artificial da vida. A manutenção da vida de um paciente que já não responde a estímulos virou tema de uma linha de estudos. Este seria o ponto-chave para a mudança de um debate sobre “boa morte”, para “morte digna”, que inclui não apenas a autonomia do paciente, mas imunidade ao corpo médico, que deve agir sem ferir o código profissional.
Em qualquer país, as leis moldam-se aos costumes e valores culturais da nação. A vida e a morte são abordagens interpretativas dependentes de muitos fatores e da aceitação de uma sociedade que pode, ou não, estar aberta a encarar a temática.
O Brasil é fundamentalmente um país religioso e conservador quando o assunto é viver (e morrer). “É difícil que esse debate, que é muito rico e muito sensível, alcance a maior parte da população brasileira. A maioria das pessoas do Brasil vão nascer e morrer sem saber o que é eutanásia”, comenta Adriano Godinho, professor de Direito na Universidade Federal da Paraíba (UFPB). “Some-se a isso o fato de que a morte no Brasil é um tabu. Morte para nós é o fracasso, é a derrota.”
É esse cenário que coloca o País em uma situação de escassez normativa. A verdade é que a legislação brasileira não diz nada sobre eutanásia e suicídio assistido. Justamente pela ausência de uma autorização clara, o entendimento é de que ambas são vetadas.
Para isso, os juristas levam em consideração o Artigo 5º da Constituição Federal de 1988: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade [...]”
“Há quem entenda que o preceito da inviolabilidade da vida humana suponha a ideia de que a minha vida não possa ser violada por terceiros, mas não haveria, teoricamente, impedimento para que eu agisse sobre o direito à minha própria vida”, explica o professor. “Entretanto, o entendimento que prevalece majoritariamente é que essa regra, na verdade, diz respeito tanto à atuação de terceiro sobre o indivíduo, quanto do indivíduo sobre si mesmo.”
A partir daí, analisa-se o Código Civil, Artigo 11º, no qual os “direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis”. Os direitos da personalidade seriam os direitos à vida, à saúde, à imagem, ao nome… E, por serem irrenunciáveis, nem mesmo o titular desses direitos poderia abdicar deles. “São regras que já nos conduzem à interpretação de que a eutanásia é vedada no País”, conclui Godinho.
É por isso que o Brasil enquadra casos de eutanásia ou suicídio assistido no crime de homicídio, com pena de reclusão de seis a 20 anos. No entanto, pode haver uma redução de um sexto a um terço da pena no caso de crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral.
Por outro lado, a Suíça encara a questão com olhos menos religiosos. “Os países possuem culturas, valores e níveis de debate e garantias de direitos individuais e sociais distintos. Por exemplo, na Suíça temos um número de ateus bem maior do que no Brasil. Ao mesmo tempo, no Brasil temos problemas mais graves de acesso à saúde do que na Suíça”, estabelece Fernando Hellmann, doutor em Saúde Coletiva e coordenador da Cátedra Giovanni Berlinguer de Bioética e Saúde Coletiva da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Desde os anos 1930, o Código Penal da Suíça deixou de criminalizar o suicídio assistido, tirando culpabilização de assistentes e médicos. Hoje, estabeleceu-se no país um “turismo da morte”, no qual estrangeiros se deslocam até lá para realizar a prática. “Na Suíça, o suicídio assistido é legalizado desde que a ajuda seja motivada por razões altruístas, e a pessoa auxiliada esteja em plenas capacidades mentais para tomar tal decisão. A eutanásia ativa, no entanto, permanece ilegal, sendo penalizada”, pontua o doutor em Bioética.
Quanto ao debate sobre autonomia do paciente, em nível mundial, legislações específicas começaram a ser pensadas a partir dos anos 1970. Em 1976, o estado da Califórnia, nos Estados Unidos, reconheceu o direito do paciente de recusar o tratamento que o mantinha com vida. As décadas seguintes trouxeram resoluções a nível nacional. Por lá apenas os estados Oregon, Washington, Montana e Vermont permitem métodos de morte assistida.
“Sendo muito honesto, não vejo muita perspectiva de eutanásia ser legislada, favoravelmente no Brasil, pelo menos não tão cedo”, reflete o profesor Adriano Godinho. É possível, sim, que ocorram decisões judiciais autorizando alguns casos de suicídio assistido, como ocorreu na Colômbia em julho de 2015, quando Ovidio González, de 79 anos, recebeu autorização do Ministério de Saúde a realizar o procedimento. Ele sofria de câncer na boca desde 2010 e estava em estágio terminal.
“Mas nós temos que entender que o legislador parte de muitas outras premissas. Há uma bancada religiosa muito forte no Congresso Nacional que será sempre, em qualquer caso, absolutamente refratária à eutanásia e ao suicídio assistido. É preciso entender que existem esses movimentos e que há na sociedade, inclusive, certo grau de conservadorismo que impediria, num primeiro momento, que se legisle a respeito do tema.”
Em 2002, a Holanda tornou-se o primeiro país a legalizar a eutanásia e o suicídio assistido. No mesmo ano, a Bélgica também legalizou. O que tem levado a Suíça a ganhar protagonismo no assunto é a sociedade Dignitas, clínica que facilita o acesso ao suicídio assistido e advoga pelo direito de morrer com dignidade. Ela também faz consultorias de cuidados paliativos, outra abordagem para a morte digna.
Mais do que um grupo focado no suicídio assistido, a Dignitas coloca-se como uma defensora do “último direito humano” digno. Significa que a clínica também faz campanhas de prevenção ao suicídio — aquele que vem de um sofrimento emocional, o que comumente ouve-se falar durante o Setembro Amarelo — e de estímulo aos cuidados avançados.
“Nosso conceito consultivo de combinar cuidados paliativos, prevenção de tentativas de suicídio, planejamento avançado de cuidados de saúde e morte assistida oferece uma base para a tomada de decisões que moldam a vida até o fim. Desde 1998, somos a ponta de lança da implementação mundial do “último direito humano”, descreve a sociedade em site oficial.
De 1998 a 2023, a Dignitas já auxiliou seis brasileiros entre 3.916 pessoas com o suicídio assistido. Uma das possibilidades para acessar os serviços da Dignitas é tornar-se um membro. A taxa de inscrição é de 200 francos suíços, equivalente a 1.313,15 reais (conversão do dia 30 de outubro de 2024). A taxa anual é de 80 francos suíços, ou 525 reais. Sem contar os custos da viagem e estadia ao país.
Foi o peso dos custos que levou a estudante de Veterinária Caroline Arruda, 27, a fazer uma vaquinha para ir à Suíça. Ela ficou conhecida em nível nacional em julho de 2024 por ter a “pior dor do mundo”, causada por uma disfunção no nervo trigêmeo do rosto. Convivendo há 11 anos com a dor, mesmo após três cirurgias de ambos os lados da face — duas das quais não surtiram efeito e uma que paralisou metade de seu rosto —, ela passou a considerar a eutanásia ou suicídio assistido.
A vaquinha almejava alcançar o valor total da viagem, de 150 mil reais. Após a arrecadação de boa parte do dinheiro, Caroline conseguiu custear um novo tratamento. Ela fez uma cirurgia para inserir um cateter na barriga, que funciona como uma “bomba de morfina” — ela ainda espera o avanço do tratamento e adiou a ideia do suicídio assistido.
>> Com custos tão altos, será que existe desigualdade até na escolha para morrer? Quem no Brasil vive e morre dignamente? E como pensar em morte digna sem procedimentos como a eutanásia e o suicídio assistido? Leia no próximo episódio do especial.
Centro de Valorização da Vida
Disque 188
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Horário de atendimento por chat: Dom - 17h à 01h, Seg a Qui - 09h à 01h, Sex - 15h às 23h, Sáb - 16h à 01h
Especial do OP+ traz o debate e reflexões sobre os conceitos legais, morais e filosóficos que envolvem a finitude, a partir da morte do escritor Antônio Cícero, que pautou a discussão sobre as escolhas nos dias finais de vida