Logo O POVO+
Fortaleza migrante: a Capital pelo olhar de quem adotou a cidade como morada
Reportagem Seriada

Fortaleza migrante: a Capital pelo olhar de quem adotou a cidade como morada

No aniversário de 298 anos de Fortaleza, quatro migrantes compartilham histórias de acolhimento e amor pela cidade
Episódio 1

Fortaleza migrante: a Capital pelo olhar de quem adotou a cidade como morada

No aniversário de 298 anos de Fortaleza, quatro migrantes compartilham histórias de acolhimento e amor pela cidade Episódio 1
Tipo Notícia Por

 

 

O primeiro que notei ao chegar em Fortaleza foi o céu. Era fevereiro de 2017 e ele brilhava totalmente azul. Parecia impossível! Até então, eu era íntima apenas da imensidão celeste de Manaus (AM), decorada por nuvens gordas e largas, coloridas em tons de azul, amarelo, laranja e rosa. Lá, o céu é uma tela ilustrada; aqui, ele é mar.

Por do sol na Beira Mar de Fortaleza(Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE Por do sol na Beira Mar de Fortaleza

Assim como eu, todo migrante guarda consigo algum detalhezinho marcante, comparando nosso universo natal com o adotivo. O céu, a luz, o cheiro, os sons, as vozes, as histórias… Qualquer coisa é suficiente para adjetivar a Cidade da Luz.

Para comemorar os 298 anos de Fortaleza, convidamos migrantes para compartilhar as miudezas e grandezas da Capital. Além dos estrangeiros e brasileiros de outros estados, ouvimos também os cearenses que, ao fixarem residência em Fortaleza, mantêm o olhar do “meu interior”.

“Fortaleza é o lugar para onde eu vim me reconstruir, me reconhecer e crescer”, emociona-se a radialista Fernanda Alves, de 27 anos. Nascida e criada em Juazeiro do Norte, a caririense amadureceu aos pouquinhos o sonho de morar na Capital. Apesar de apaixonada pelo Cariri e orgulhosa das origens, ela sentia que era em Fortaleza que poderia realizar seus sonhos.

Tinha 12 anos quando primeiro pisou pé na cidade e, por consequência, quando finalmente viu o mar. Nem mesmo ela foi capaz de traduzir a sensação de admirar as ondas: apenas pousou as mãos sobre o peito e olhou à esmo, rememorando o momento.

Fernanda Alves é natural de Juazeiro do Norte e migrou para Fortaleza em 2023(Foto: Arquivo pessoal)
Foto: Arquivo pessoal Fernanda Alves é natural de Juazeiro do Norte e migrou para Fortaleza em 2023

Naquela época, ela mal poderia imaginar que atingiria a sonhada meta em pleno Natal. No dia 25 de dezembro de 2022, ela chegou à Fortaleza pronta com a mudança, finalizada totalmente no dia 2 de janeiro de 2023. “Eu estava oficialmente sozinha nessa cidade desconhecida”, conta. “E então, três meses depois, fui demitida do meu emprego. Pensei: ‘e agora?’, mas meus pais insistiram que meu sonho era estar e que daríamos um jeito.”

Então, Fortaleza intercedeu. Exatamente no dia 13 de abril de 2023, aniversário de 297 anos da capital, Fernanda foi contratada no atual emprego. “Aqui, eu aprendi a viver sozinha, em solitude; eu amadureci. A Fernanda de um ano atrás não é nada parecida com a de hoje”, reflete.

Para ela, Fortaleza como metrópole é rápida, cheia de rotinas e força a independência dos cidadãos, especialmente os migrantes sem família próxima. “Isso não tira o brilho e a beleza que tem aqui”, diz. Nos momentos difíceis, Fernanda encontra refúgio na Beira-Mar e no Mercado dos Peixes, onde é possível sentar e admirar o vai e vem da maré.

Há outro lugar, no entanto, em que ela realmente entende a razão de amar e ansiar por Fortaleza — a Arena Castelão. Apaixonada por futebol e radialista da área, estar no estádio é ver o sonho concretizado.

Arena Castelão iluminada(Foto: Davi Probo)
Foto: Davi Probo Arena Castelão iluminada

Essa paixão é provavelmente compartilhada com um dos nomes migrantes mais famosos dos últimos anos na Capital: Juan Pablo Vojvoda, técnico do Fortaleza Esporte Clube (FEC). O argentino é conhecidamente apegado à cidade, recusando várias ofertas de clubes nacionais e internacionais, tanto pela fidelidade com um projeto de time, quanto pelo prazer de curtir as belezas fortalezenses.

“Estou morando em uma cidade que gosto. Por que vou a outra cidade? Por dinheiro? Pode ser, mas eu tenho direito de decidir onde quero morar, onde quero trabalhar e com quem quero trabalhar”, declarou em rara entrevista coletiva. O que Vojvoda ama em Fortaleza ele guardou para uma inédita com o O POVO+: "O cearense brinda a possibilidade de acolher uma pessoa que não está acostumada a conviver com ele. O que eu vivi nesses anos foi um povo que dá muito sem esperar ou receber. Ele entrega e depois entrega a Deus, que vai oferecer o mais justo que há nessa vida", refletiu o técnico. 

O mar, é claro, cativou a atenção do argentino. "Eu não morava numa cidade com mar, então isso significa muito. O mar, a praia e o clima também fazem uma cultura com gente mais alegre e mais disposta a compartilhar", diz. "Fortaleza não é uma cidade que está perto da Argentina, então cada estrangeiro é muito bem acolhido porque não tem tanta influência (da convivência), diferente de Porto Alegre, próxima da Argentina, do Uruguai e do Paraguai."

Marcelo Paz e Vojvoda posam ao lado de Boeck em comemoração do Pentacampeonato Cearense, na Beira-Mar de Fortaleza, em 2023.(Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal Marcelo Paz e Vojvoda posam ao lado de Boeck em comemoração do Pentacampeonato Cearense, na Beira-Mar de Fortaleza, em 2023.

Para ele, Fortaleza une um rol de paisagens e possibilidades de lazer capaz de atender a todos os gostos. O calor, a natureza e as belezas naturais agradam qualquer amante das experiências ao ar livre. Enquanto isso, a infraestrutura com bons shoppings e restaurantes, também favorece quem gosta dos rolês urbanos. "A cidade oferece todas as alternativas"

O treinador Vojvoda integra uma parcela de sul-americanos que migram para Fortaleza anualmente em caráter temporário ou para firmar residência. De 2010 a 2023, Fortaleza recebeu 14.409 imigrantes internacionais, dos quais 9.630 são temporários (vêm para trabalhar ou estudar, mas retornam ao país de origem) e 4.779 são residentes. Os dados são do Sistema de Registro Nacional Migratório (SISMigra).

 

  

 

Conexão Portugal–Manaus

Enquanto os sul americanos tendem a ser imigrantes temporários, os europeus costumam firmar residência na cidade. É o caso do português Fernando Nascimento, de 55 anos, que tem longa história com o Brasil.

Ele veio ao País quando tinha 18 anos, acompanhando os tios em uma viagem a trabalho para Manaus (AM). Recém-formado do ensino médio e ainda à procura de se descobrir, o agora marketeiro político encontrou na capital amazonense algo muito melhor: a esposa Márcia Nascimento, atualmente com 55 anos e administradora.

O português Fernando Nascimento é marketeiro político(Foto: Yuri Allen/Especial para O Povo)
Foto: Yuri Allen/Especial para O Povo O português Fernando Nascimento é marketeiro político

Márcia, por sua vez, nasceu no Maranhão, mas foi criada em Manaus. Lá, o casal construiu a família e explorou o Brasil em viagens de carro. Foi nesse período, mais precisamente em 1998, que passaram por Fortaleza, uma cidade ainda por se desenvolver como um atrativo turístico imperdível. Mais tarde, a família mudou para Lisboa.

Ficaram na Europa até 2011, quando Fernando recebeu uma oferta de emprego em Caucaia. Em 2014, esposa e filhas chegam para decretar o Ceará como novo abrigo. Não demorou muito para Fortaleza virar a menina dos olhos: nas últimas décadas, a capital cresceu e tornou-se um centro cultural acolhedor e amigável.

Fernando e Márcia Nascimento, em frente ao primeiro apartamento em Fortaleza, perto da Praça Luiza Távora.(Foto: Yuri Allen/Especial para O Povo)
Foto: Yuri Allen/Especial para O Povo Fernando e Márcia Nascimento, em frente ao primeiro apartamento em Fortaleza, perto da Praça Luiza Távora.

O primeiro apartamento foi em um prédio em frente à Praça Luíza Távora, point familiar ideal. “Eu realmente sou muito grata à Fortaleza, eu me sinto acolhida. Isso é importante, porque a gente ainda vê em muitos lugares do Brasil a desconfiança quando chega uma pessoa nova o medo da aproximação. Mas aqui as pessoas acolhem”, compartilha Márcia.

Das idas e vindas pelo País e no estrangeiro, foi Fortaleza que tratou o casal como parte da família. “Por exemplo, o Fernando começou a trabalhar e conheceu algumas pessoas. Quando a gente chegou, era como se aquelas pessoas tivessem convivido com a família inteira, sabe? De abrir a porta, convidar para sentar à mesa. Eu acho isso muito interessante, as pessoas cativam”, diz.

Fortaleza também abraçou a família nos momentos mais difíceis. Durante a pandemia, Márcia sofreu com o cenário vivido por Manaus, sem oxigênio para os pacientes, e chorou de longe a morte da mãe, vítima da Covid-19. Assustada, como todos, o pequeno alento era sentir segurança em Fortaleza, dados os esforços dos governos municipal e estadual para enfrentar a pandemia.

A maranhense Márcia Nascimento, criada em Manaus, é administradora(Foto: Yuri Allen/Especial para O Povo)
Foto: Yuri Allen/Especial para O Povo A maranhense Márcia Nascimento, criada em Manaus, é administradora

É também onde Márcia trata o câncer de mama, o que a levou a conhecer uma das atividades favoritas do casal, a canoagem, durante um evento do Outubro Rosa. “Ver o nascer do sol dentro do mar é uma sensação maravilhosa. Às seis da manhã, o sol nascendo assim é para limpar a alma”, afirma.

“Eu gosto do Mercado São Sebastião e a vida no centro de qualquer cidade”, comenta Fernando. “Eu acho que é mágico ver o movimento das pessoas. Ainda há uma parte mais antiga, não tão preservada como gostaria, mas você consegue perceber e visualizar como era aquele prédio. Acho que é algo que tenho por Lisboa, lá tem muita parte histórica.”

“Mas a praia foi sempre a minha paixão, o mar é a minha paixão”, declara o português. “Eu sempre tive a oportunidade de viver perto do mar; mesmo quando eu estava em Manaus, era o Rio Negro, mas era gigante”, ri.

 

 

Fortaleza em palavras

 

"Para mim, uma palavra que define perfeitamente Fortaleza é sol", crava a baiana Manuella Ferreira, 33, professora do ensino básico. "Mesmo quando você acha que vai chover, quando tudo se organiza pra chover, vai lá e abre o sol", ri. "Durante muito tempo fui enganada!"

Nascida em Salvador (BA), Manuella nunca imaginou que moraria em Fortaleza. Foi a aprovação em um concurso público em 2016 que a fez migrar, e seis meses depois ela entrou para a graduação de Letras - Libras na Universidade Federal do Ceará (UFC). "Eu já ouvia falar de Fortaleza, em 2010 eu vim turistar. Mas turistas é muito diferente de viver."

Acompanhada do próprio sotaque, houve várias situações em que ela precisou pedir a tradução das palavras do dialeto cearense. "Eu sinto esse choque, ainda me é estranho. Mesmo assim, algumas falas eu acabei adquirindo", confessa, permitindo o 'valha' ocupar espaço no dicionário. 

Para Manuella, o Planetário Rubens de Azevedo é um dos destaques de Fortaleza(Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal Para Manuella, o Planetário Rubens de Azevedo é um dos destaques de Fortaleza

"Fortaleza é uma cidade muito acolhedora, que ainda não tá um beco de cidade grande", reflete a baiana. "Em outras capitais, a gente sente uma movimentação muito intensa, mas aqui é mais tranquilo." Por aqui, visitar os pontos gastronômicos, passear no Mercado dos Peixes e admirar o por do sol a partir das quatro da tarde, além de admirar as maravilhas do Planetário Rubens de Azevedo são os momentos mais memoráveis com a Capital. Principalmente quando partilhados com o amor: foi por aqui que ela conheceu o marido, imigrante de Guiné-Bissau.

Entre trabalho, estudo e família, os migrantes inevitavelmente chegam à Fortaleza munidos de sonhos. Acolhidos pelas ondas e pelo sol, apaixonam-se por uma metrópole capaz de abraçar os recém-chegados como familiares distantes e de oferecer oportunidades e estilos de vida como nenhum outro lugar.

 

 

 

Ponto de vista

“Vida longa a minha anfitriã”

Por Fábio Lima*

*O repórter fotográfico Fábio Lima, do O POVO, é natural de São Paulo (SP) e divide aniversário com Fortaleza. O trabalho fotográfico de Fábio investiga os contrastes sociais da Capital, ao mesmo tempo que revela o humor, a resiliência e a gentileza do povo fortalezense. Confira o relato do repórter e admire a galeria de fotografias selecionadas para representar Fortaleza:

Nasci em São Paulo capital em 1971. Minha mãe era de lá e morreu quando eu tinha cinco anos. Meu pai, um cearense da região do Pecém, foi pra São Paulo com 20 anos tentar a vida, era um destino muito buscado naquela época, já que o Ceará não oferecia muitos recursos à época; já eu, fiz o caminho contrário ao dele, e em 1997 vim morar aqui.

Na realidade nunca gostei de São Paulo, me sentia muito só naquele lugar. Conheci o Ceará em uma viagem de férias com meu pai, quando ainda era adolescente e me apaixonei por essa terra. Desde então nasceu em mim a vontade de vir viver aqui. Esse ano completo 53 anos de vida no mesmo dia do aniversário da minha anfitriã. Fazendo uma continha rápida, já sou mais cearense que paulista.

 

 

Sou uma pessoa muito urbana, não conseguiria viver no interior, mas em Fortaleza tenho a sensação de viver em uma metrópole com o aconchego das pequenas cidades. Aqui, todo mundo se conhece, não se fica sozinho se não quiser. Mas o que mais me atraiu aqui, além da hospitalidade acolhedora, foi o ritmo leve e lento em que a vida passa ou que passamos por ela. Aqui, a vida funciona em um tempo mais suave — se não der tempo hoje, faço amanhã e tudo bem.

Quanto ao meu trabalho fotográfico, além dessa imensidão de luz que a cidade proporciona, consigo enxergar muitos contrastes na vida cotidiana. Essa contraposição é fundamental para minha fotografia, muito baseada na crítica social.

Eu desejo parabéns e vida longa a mim e a essa cidade que me recebeu de braços abertos e me faz continuar, a cada sol que nasce e se põe em seu horizonte.


 
 

Ponto de vista

À Fortaleza que me acolheu

por Catalina Leite*

Praticamente todas as experiências são igualmente únicas e universais. Sendo eu mesma uma migrante dentro do meu próprio país, filha também de migrantes, conversar sobre Fortaleza com quem escolheu viver aqui foi divertido.

Com Manuella, ri sobre a secura do ar, das rinites atacadas e da adesão ao vocabulário cearense recheado de ‘valhas’. Lembro de mudar para Fortaleza e ficar encucada com palavras novas (o que diabos é quiboa, pirangueiro, rebolar no mato?), mas desejar do fundo do meu coração aderir ao ‘valha’. Achava lindo e suave ouvir meus amigos da faculdade soltando um “valha, meu Deus!”. Peguei primeiro foi o ‘mulher’.

Catalina em 2017, após mudar-se para Fortaleza(Foto: Arquivo pessoal)
Foto: Arquivo pessoal Catalina em 2017, após mudar-se para Fortaleza

Na conversa com Fernanda, ressoou em mim a experiência de ser uma pessoa completamente diferente da que era quando estava em Manaus. Cheguei na capital cearense com 17 anos, apenas uma caloura da Universidade Federal do Ceará (UFC). Assim como Fernanda, me vi sozinha em uma cidade desconhecida, sem família próxima. Pela primeira vez, morei longe dos meus pais e dos bichinhos de casa — demorei talvez uns três meses para adotar a minha gatinha, Luna, e então descobri o que é ser responsável para além de mim.

Naturalmente, o casal Márcia e Fernando foi um deleite de ouvir. Tendo eles também morado em Manaus, foi como compartilhar histórias com novos amigos, saudosos da culinária, do céu, do rio e do ar. Dividi com eles também o amor infinito que nutrimos por Fortaleza.

No final das contas, as cidades sempre terão contras, sempre poderão melhorar. Mas há de se concordar que as terras mágicas, ensolaradas e amigáveis de Fortaleza encantam. Obrigada, Fortaleza, por transformar a vida de todos nós. Feliz aniversário!

*Catalina Leite é repórter do O POVO+ nascida em Belém (PA) e criada em Manaus (AM)


 

Uma linha do tempo de Fortaleza

 

  • Edição O POVO+ Fátima Sudário e Regina Ribeiro
  • Texto e Recursos Digitais Catalina Leite
  • Identidade visual e Design Gil Dicelli e Cristiane Frota
  • Imagens Fábio Lima, Fco Fontenele, Yuri Allen, Samuel Setubal/O POVO
O que você achou desse conteúdo?

Fortaleza 298 anos

No aniversário de 298 anos de Fortaleza, O POVO+ traz três abordagens sobre a cidade: a luz e o sol, as maravilhas da Capital cearense e o olhar estrengeiro de quem escolheu aqui viver. Acompanhe!