Enquanto a seleção brasileira de 1970 encantava o mundo na Copa do México, comandada pelo lendário Zagallo e formada por craques eternos como Pelé, Gérson, Jairzinho, Rivellino e Tostão — tido como um dos melhores times da história —, o Brasil vivia os “anos de chumbo” da Ditadura Militar. A época sombria do País tinha como presidente o general Emílio Garrastazu Médici, que pertencia à ala mais radical dos militares.
Em meio à violência exacerbada da Ditadura, marcada por mortes, censura e tortura de pessoas que faziam oposição, sobretudo entre 1968 e 1974, o regime utilizou o futebol como ferramenta de propaganda. Não poderia ser diferente. O esporte mais popular era o instrumento perfeito: carregava uma grande importância racial, política e econômica no Brasil.
No ano de 1964, quando a Ditadura foi instaurada no País após o golpe, João Havelange, figura histórica no futebol, manteve-se no comando da Confederação Brasileira de Desportos (CBD), atualmente a Confederação Brasileira de Futebol (CBF). O então dirigente, figura de boas relações políticas e que almejava a presidência da Fifa — o que se concretizou posteriormente —, aproximou-se do governo dos militares. A seleção brasileira, claro, foi impactada com uma “militarização”.
A eliminação humilhante da seleção brasileira na Copa do Mundo de 1966, ainda na fase de grupos, foi consequência de um desleixo preparatório. Naquela época, o futebol passava por mudanças. As escolas europeias se fortaleceram fisicamente e deram muito mais atenção para os aspectos táticos, o que se sobrepôs à habilidade individual das seleções sul-americanas.
O anseio do Regime Militar pelo título mundial foi depositado na Copa de 70, no México. Antes, foi preciso superar uma forte crise que assolou a seleção brasileira, principalmente pelo risco iminente de sequer conquistar uma vaga para disputar o torneio.
A classificação veio, ironicamente, sob o comando do treinador João Saldanha, crítico dos militares e amigo de Carlos Marighella, um dos principais organizadores da luta armada contra a ditadura que foi assassinado um ano antes do torneio.
“Chamaram o João Saldanha, que era um comunista e uma figura crítica do regime militar. Ele consegue dar uma cara para a seleção, os resultados começam a aparecer e o Brasil se classifica. Após isso, porém, ele acaba dispensado do comando da CBD. Existe o boato sobre o Saldanha ter se negado a convocar o Dadá Maravilha a pedido de Médici, mas isso nunca se comprovou.
Para o regime, era mais confortável se livrar de uma figura como o Saldanha”, contou o historiador e professor Airton de Farias, autor do livro "Uma História Das Copas do Mundo - Futebol e Sociedade". Vale ressaltar que quando Médici assumiu o governo brasileiro, em 1969, Saldanha já era o treinador da Amarelinha.
Veio então o revolucionário Zagallo. Nos bastidores da preparação para a Copa de 1970, a “militarização” se intensificou na Amarelinha. “A seleção e os jogadores foram militarizados. O corte de cabelo, não podiam falar com a imprensa.
Tinham agentes do SNI (Serviço Nacional de Informações) dentro da seleção. Era uma espécie de soldados atletas. Todos fazendo o máximo esforço pelo bem da pátria. Então houve uma grande militarização da seleção do Brasil”, explicou Airton.
Internamente, o brigadeiro Jerônimo Bastos foi designado como diretor de esportes da CBD, enquanto o major Roberto Câmara Lima Ypiranga de Guaranys foi nomeado como chefe de segurança da seleção. Guaranys, apontado pela Comissão Nacional da Verdade como um dos torturadores do Regime Militar — segundo o El País —, era uma das principais fontes de informação de Médici sobre o dia a dia da seleção.
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A seleção de 70 encantou a todos, foi campeão com autoridade após um imponente 4 a 1 sobre a Itália na final. O título foi muito bem explorado pela Ditadura como forma de demonstrar a força dos militares. Desfile em carro aberto e frases de impacto em revistas que exaltavam o nacionalismo.
O fato daquele Mundial ter sido o primeiro a ter transmissão ao vivo na TV também foi utilizado como trunfo. Afinal, acabou sendo um mecanismo para ofuscar a forte repressão no início do Governo de Médici.
Nos anos seguintes, o futebol se fortaleceu como um mecanismo de propaganda do regime. Diversos estádios foram construídos pelo país, além da criação de um campeonato nacional em 1971. Nos bastidores, os militares seguiam no controle.
“De um modo geral, o futebol do Brasil foi militarizado. Os dirigentes esportivos tinham que passar pela aprovação do regime. Vários militares comandaram, por exemplo, a Federação Cearense de Futebol. Isso aconteceu no país todo.
O Regime passou a controlar. Vários estádios foram erguidos. Então o Campeonato Brasileiro foi usado para dar apoio político ao regime. Há uma relação muito ampla do futebol com o regime militar”, comentou Airton.
Dos jogadores que questionavam o Regime, muitos foram postos de lado no futebol, boicotados. Foi o caso de Afonsinho, ex-Botafogo, Vasco e Flamengo e campeão da Taça Brasil de 1968, que bateu de frente com cartolas e a Ditadura Militar — conseguiu, na Justiça, ser o primeiro jogador a ter posse do próprio passe. Outro perseguido foi Fernando Antunes, irmão de Zico e ex-jogador do Ceará. Ele foi preso e torturado.
Personagens mais emblemáticos, como Pelé, viveram uma relação dúbia com o Regime. De acordo com Airton de Farias, o Rei chegou a dizer, na década de 1980, que não poderia falar tudo que queria. Tostão, em entrevista ao semanário alternativo Pasquim, publicado em 10 de maio de 1970, também comentou sobre a pouca liberdade de expressão que os atletas tinham na época da ditadura.
“Às vezes, a gente tem que ficar sujeito a coisas que vêm de cima, então a gente não pode dizer o que quer, o que pretende. O certo seria que todo mundo tivesse as suas ideias, falasse as suas ideias e mostrasse o que pensa, o que acha, e não a gente ficar numa coisa só e ficar sujeito a aceitar isso e não poder dizer mais nada, eu acho isso errado”, disse o ex-atacante.
Entre 1982 e 1984, um grupo de jogadores resolveu revolucionar. Sócrates, Casagrande, Wladimir e outros jogadores do Corinthians se uniram em prol da democracia em meio à ditadura militar. O movimento de coragem contra o regime autoritário ficou conhecido como “Democracia Corinthiana” e se tornou um marco na história do futebol e da política brasileira.
A luta era clara: eleições democráticas, em que os brasileiros pudessem ir às urnas votar e escolher o Governo. Os jogadores do Corinthians utilizavam as partidas de futebol como palco para expor suas ideias. Em alguns jogos, o Timão entrou em campo estampando frases na camisa como “Dia 15 vote”, “Diretas-Já”, “Democracia Corinthiana” e “Eu quero votar para presidente”.
Além disso, a equipe paulista também estampava faixas. Uma delas com a frase “Ganhar ou perder, mas com democracia”.
Internamente, o Corinthians também sofreu mudanças. As decisões no dia a dia passaram a acontecer em conjunto, como viagens, contratação, concentração. Tudo por meio de votações, em que o peso era igualitário, independentemente do status dentro do clube. Casagrande, que participou ativamente do processo, contou detalhes da Democracia Corinthiana em entrevista às Páginas Azuis do O POVO, em 2022. Clique na foto abaixo para ler trecho da entrevista:
“A Democracia Corinthiana, lá no começo dos anos 1980, foi destino, encaixando um monte de coisas para acontecer aquilo: jogadores que pensavam da mesma forma no mesmo time, em um time do povo, como era o Corinthians; uma torcida que já tinha se posicionado politicamente na época da anistia; o país ainda na Ditadura Militar pesada, não estava leve como algumas pessoas pensam. Em 81 tinha acontecido o atentado no Riocentro, no Rio de Janeiro, a Democracia começou em 82. Então, muitas coisas estavam acontecendo ali, e o jogador de futebol sempre em uma situação confortável: 'Tudo bem, não é comigo, eu jogo, ganho meu dinheiro, me divirto, mas não me envolvo no que está acontecendo no país'. E ali, de repente, tinha o Magrão (apelido de Sócrates), eu, Vladimir, Adilson Monteiro Alves, que era vice-presidente de futebol... Sem apoio de uma direção não dava para fazer uma Democracia Corinthiana.
As pessoas foram se encaixando, e nós começamos a ter opiniões internas, de decisões de viagens, contratação, concentração e tudo mais, e levamos isso para fora. Em 82 foi a primeira eleição direta para Governo do Estado depois do Golpe de 64 e ali já começamos a participar, pôr a cara. Mas no futebol, para deixar bem claro, nada acontece, você não consegue fazer movimento nenhum se a bola não estiver rolando direito. E a coisa principal do nosso time era que todos nós tínhamos consciência de que tínhamos que jogar muito, ganhar os jogos, ganhar jogando bem, tínhamos que ser campeões naquele ano de 82 .Todo mundo tinha isso na cabeça e nunca teve uma reunião para falar: 'Olha, gente, vocês sabem que nós temos que jogar bem e ganhar, essa é a nossa responsabilidade'. Nós nunca precisamos fazer isso porque todos tinham essa consciência, nunca precisou fazer uma reunião para chamar a atenção de um jogador. 'Ô, meu, você não está se esforçando', nunca teve.
Aquele movimento começou a crescer. É claro que vivenciando você não sabe a dimensão do que está acontecendo. Teve a participação das Diretas Já, que foi uma coisa impactante, em 84, eu, Vladimir, Magrão e o Adilson no palanque do Vale do Anhangabaú, um mar de gente lá. A única participação do esporte naquilo era da Democracia Corinthiana. A única participação de 82 até 84 em relação à política social do país era só da Democracia Corinthiana. Eu não tenho dúvida que foi o movimento mais importante do futebol mundial. Já participei de diversos documentários pelo mundo afora, entrevistas... Não tem uma entrevista, com qualquer jornalista do mundo, que a segunda ou terceira pergunta não seja: 'Me conta como é a Democracia Corinthiana'. Então, foi um marco na história do futebol mundial e dentro do Corinthians”
Especial do O POVO+ lembra os 60 anos no golpe militar no Brasil e as repercussões no Ceará