Antes de a mão humana alterar todas as coisas de lugar, o mundo funcionava pelo toque dos dedos dos deuses. Mal o inverno ia-se embora, dando lugar a radiosos dias de primavera e verão, Perséfone deixava sua casa no submundo. Vinha fertilizar a superfície da Terra, com as mais belas flores de sua criação.
Entre elas, a de um pequeno bulbo, que a deusa caprichosa deixava de propósito, de um ano para o outro, dormindo sob as beiras úmidas de rios, às sombras frescas das árvores e nas vastas planícies das florestas da África tropical. Desde estes tempos primeiros, repete-se o mesmo milagre floral.
Da segurança de um rizoma invisível debaixo do chão, protegido dos meses chuvosos e dos frios do outono-inverno, um pequeno filhote bulboso cria raízes e ganha forças. Louco para nascer. Quando está pronto, já nem precisa mais ouvir o farfalhar das vestes celestiais.
Com seu pendão verde, rompe vigoroso a pele do Planeta, desenrola na paisagem suas folhas verde-escuras, e fica à espera do relógio do tempo, para abrir uma rara flor. E o tempo da flor imaginada por Perséfone é dezembro.
O tempo da flor-diadema-real é o do nascimento de Jesus. O tempo da flor-coroa-imperial é o tempo dos nossos Natais. Tempo de celebração da vida, de esperança e de renovação.
Vendo tal espetáculo de fogo-de-artificio em uma única flor, os homens e as mulheres chamaram logo a cilíndrica florescência de lírio-de-sangue, lírio-de-fogo ou lírio-sangu-salmão. E por aí a fora foram multiplicando nomes, todos eles majestosos.
"Ficamos nós, humanos e abelhas, na lembrança da estrela anunciadora, à espera do ano que vem, já que a transitória flor viaja no ciclo eterno da natureza e da vida"
Mesmo se, para os botânicos, a flor não é um lírio de verdade — nos livros científicos, o nome da espécie foi descrito como scadoxus multiflorus. O fato é que ninguém quis saber do batismo dos naturalistas, que juntaram em uma as duas palavras gregas: doxus, para glorioso e sca, para oculto.
Por exemplo, para os que creem nos Natais, a coincidência da florescência justo em dezembro de um lírio assim, cilíndrico e vermelho, vibrante como uma bola natalina, não poderia ter outro nome. Foi assim que, nos dias atuais, o Ocidente cristão passou a chamar a flor dos verões e dos dezembros de lírio-estrela-de-Natal.
Parece até que Perséfone tinha dons adivinhatórios. Formada por uma multitude de frágeis florzinhas minúsculas, o lírio-estrela dura apenas o tempo do Natal.
Floresce deslumbrante, encanta olhos e corações e, dias depois, desfloresce e murcha. Derruba secas no chão todas as pequenas antenas amarelas que alimentaram também o Natal das mais sabidas borboletas e abelhas operárias.
Ficamos nós, humanos e abelhas, na lembrança da estrela anunciadora, à espera do ano que vem, já que a transitória flor viaja no ciclo eterno da natureza e da vida. Existe, existiu, existirá.
Única vez no ano, mas que espetáculo. Dos verões africanos, o lírio saiu para os dezembros mundiais — brasileiros, inclusive. Dezembros cearenses também.
Floresceu no chão da serra de Maranguape, depois migrou para um vaso, com a ajuda de uma mão cheia de bem-querer, veio viver para Fortaleza.
Migrante, como toda estrela. Corisca na Terra, quando a de Belém corisca no céu. Trazem anúncios de prosperidade e renovação, uma e outra. Mas a de cá tem seus mistérios — como todo ser vivo, equilibra na sua seiva a vida e a morte.
Decidam os humanos o que fazer com esta flor, para além de admirá-la e amá-la por sua beleza, potência e simbolismos.
Pode ser tóxica e venenosa, também fonte de cura e de boa-sorte. Na medicina tradicional de muitos povos africanos, a flor ajuda a tratar edemas, sarnas e feridas difíceis. Nos rituais e celebrações, transforma-se em talismã — afasta energia negativa, espíritos malignos, traz prosperidade e é purificadora.
Funciona também como potente veneno para as pontas de flechas que vão para a caça e as pontas de lanças fabricadas para a pesca. Só os inocentes carneiros e cabras, que não conhecem a dupla face da bela flor, vêm atraídos pelo apetitoso cilindro vermelho-alaranjado, e morrem fulminados. Neste caso justifica-se o nome de lírio-de-sangue.
"Quando alguém diz: vem ver, nasceu a flor-estrela, ouvimos também no eco: vem ver, nasceu Jesus; vem ver, já é Natal"
Nos nossos Natais, o lírio-estrela acorda-nos para coisas importantes. Na sua efemeridade, lembra-nos que nada é para sempre. Que a vida é um avançar entre o que dura e o que muda.
Quando caem as florezinhas do seu diadema, é como se nos dissesse que partilhamos todos a mesma vulnerabilidade — viver é assumir a possibilidade de ser ferido, de cair, de sofrer, de morrer. Não foi assim também para o menino Jesus, já nascido sob a perseguição de Herodes?
Embora tenhamos nossa fortaleza, somos frágeis e incompletos. Podemos murchar e desflorescer. Mas também nos regenerar e crescer, na solidariedade rizomática de amigos, família e afetos. Ressurgir das feridas, ressuscitar das mortes simbólicas.
Uma única vez no ano, e apenas por alguns dias, no tempo do Natal. Do lírio-estrela podemos tirar o mais importante ensinamento: a transitoriedade da nossa existência torna a vida mais preciosa e ainda mais bela. Tal e qual a flor-estrela, uma joia rara.
Com ela, falamos de flor para flor, de vivente para vivente — entre seres impermanentes que somos. Na existência dela, vemos a nossa. Será que Perséfone, jogando suas sementes para frutificar a Terra, imaginou que nós, os mortais, aprenderíamos tanto com a natureza de uma flor?
Quando alguém diz: vem ver, nasceu a flor-estrela, ouvimos também no eco: vem ver, nasceu Jesus; vem ver, já é Natal.
Nestes chamados, temos a sabedoria aprendida de Heráclito de Éfeso que, muito antes do nascimento de Cristo, falava aos contemporâneos sobre o movimento perpétuo do mundo. Dizia: tudo flui. Isso significa que não nos banhamos duas vezes no mesmo rio, pois nem a água nem nós seremos os mesmos.
A flor já é outra, ainda mais bela. Este Natal não é igual ao do ano passado, é o de 2024. E nós não somos os mesmo de ontem, porque acordamos hoje com esse lírio africano a nos lembrar que só a mudança permanece. A mudança que evolui de agora em agora — infinitamente, até deitarmos nosso bulbo na terra, à espera do renascer. Só Cristo, que transitou na vida e na ressurreição, não muda mais. Atravessa os tempos.
Neste dezembro natalino, o fugaz lírio-estrela será nossa prenda-mensagem de Natal. Que ele ilumine nossa guirlanda imaginária, na consoada dos leitores. Que as festas sejam felizes e para todos, crentes e não-crentes. Já que a nossa flor-estrela-guia não tem fronteiras nem vê diferenças.
Bom Natal.
Em clima de reencontro, atravessamos mais um ano e trazemos histórias de personagens que emocionaram, envolveram e encantaram o público em 2024, em reportagens veiculadas nas plataformas do O POVO. São protagonistas da vida cotidiana que encaram passado, presente e futuro