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Exposição de crianças nas e às redes sociais exige limites e cuidados
Reportagem Seriada

Exposição de crianças nas e às redes sociais exige limites e cuidados

Internet abre possibilidades para os pequenos, mas superexposição – seja na frente ou atrás das telas – oferece riscos como a erotização precoce e efeitos como a perda de vínculo entre pais e filhos ou prejuízos no desenvolvimento. Em entrevista ao O POVO, Morgana Secco, mãe da bebê Alice, fala sobre limites e cuidados
Episódio 1

Exposição de crianças nas e às redes sociais exige limites e cuidados

Internet abre possibilidades para os pequenos, mas superexposição – seja na frente ou atrás das telas – oferece riscos como a erotização precoce e efeitos como a perda de vínculo entre pais e filhos ou prejuízos no desenvolvimento. Em entrevista ao O POVO, Morgana Secco, mãe da bebê Alice, fala sobre limites e cuidados
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Na era da tecnologia em uma “sociedade do espetáculo” "Em 1967, o escritor francês Guy Debord cunhou esse termo na obra de mesmo nome onde discorre sobre o espetáculo como algo que está inserido nas relações sociais. Para ele, há uma mediação entre pessoas por imagens, narrativas e enquadramentos, contribuindo para a criação de uma realidade coletiva onde a plateia passou a ser cada um. Aplicado à lógica do Instagram, esse conceito critica a relação entre influenciadores e seguidores como uma representação de aparências, ou a exibição de belas paisagens e corpos perfeitos como uma maneira de agregar valor a si próprio." , compartilhar fotos e vídeos de crianças nas redes sociais se tornou uma prática comum por parte de pais e responsáveis — principalmente os famosos, cujos filhos começam a fazer sucesso antes mesmo de nascerem.

É o caso da ex-BBB Viih Tube, que criou um perfil para a filha logo após anunciar que estava grávida e já tem mais de 1 milhão de seguidores na conta da bebê que ainda nem chegou ao mundo.

Ou da influenciadora digital Virginia Fonseca, que publicou imagens do pós-parto onde aparecia maquiada ao lado da filha recém-nascida, além de vídeos dançando uma coreografia com a bebê com poucas horas de vida para divulgar uma música do marido, o cantor Zé Felipe.

 

Além da publicação, a influencer apareceu poucas horas depois do parto para fazer uma tradicional "dancinha" com a bebê, ainda no hospital e com soro na veia(Foto: Reprodução/Instagram)
Foto: Reprodução/Instagram Além da publicação, a influencer apareceu poucas horas depois do parto para fazer uma tradicional "dancinha" com a bebê, ainda no hospital e com soro na veia

A forma como os registros são feitos vai mudando: dos ensaios fotográficos durante a gravidez até os momentos do nascimento e do crescimento: o parto, o primeiro banho, os primeiros passos, tudo é acompanhado com internautas.

Como em um “Show de Truman” "Nesse filme, Truman é um vendedor de seguros que leva uma vida simples até notar acontecimentos estranhos ao seu redor. Após conhecer uma mulher misteriosa, ele fica intrigado e acaba descobrindo que toda a sua vida foi monitorada por câmeras e transmitida em rede nacional como um reality show." da vida real, tudo está conectado em todo lugar ao mesmo tempo, e aquilo que não é registrado e publicado parece que não aconteceu.

Assim, pouco depois de abrirem os olhos pela primeira vez, os pequenos são inseridos nas mídias e, seguindo o exemplo das pessoas que os cercam, começam também a acessar por conta própria seus perfis, iniciando a jornada de interação com a internet.

 

Compartilhar imagens dos filhos nas redes sociais se tornou uma prática comum por parte dos pais, principalmente os famosos(Foto: Freepik)
Foto: Freepik Compartilhar imagens dos filhos nas redes sociais se tornou uma prática comum por parte dos pais, principalmente os famosos

O que antes ficava restrito aos álbuns de fotos e era mostrado apenas às visitas que apareciam em casa, mudou de forma e ganhou o mundo — fenômeno que tomou proporções com a pandemia de Covid-19.

A necessidade de isolamento social impulsionou a tendência da exposição online, com um aumento da midiatização do cotidiano e o compartilhamento da rotina no ambiente virtual na intenção de deixar momentos especiais guardados, gerar troca de experiências sobre criação ou ajudar pais de primeira viagem.

Dessa forma, familiares intensificaram o hábito de publicar imagens dos filhos, uma prática que se tornou tão comum que recebeu um termo para designá-la — sharenting, união das palavras da língua inglesa “share” (compartilhar) e “parenting” (cuidado parental).

 

Por vezes confundidos como autismo ou hiperatividade, alguns comportamentos são resultado da desvinculação entre pais e filhos, uma consequência da exposição excessiva nas e às telas(Foto: Freepik)
Foto: Freepik Por vezes confundidos como autismo ou hiperatividade, alguns comportamentos são resultado da desvinculação entre pais e filhos, uma consequência da exposição excessiva nas e às telas

E esse movimento não surgiu sozinho: veio acompanhado do tempo de lazer e de estudos substituído intensamente pelas telas — do computador, da televisão, do tablet, do celular. O ato de deslizar o dedo para cima passou a materializar a normalização de uma nova realidade: estar constantemente com o mundo na palma da mão, a um toque de distância.

De acordo com a pesquisa mais recente da TIC Kids Online Brasil, 93% dos brasileiros na faixa etária entre 9 e 17 anos são usuários de internet, com o telefone celular como principal meio de conexão desses cerca de 22,3 milhões de brasileiros.

O contato dessa população com a internet é um meio para a busca por assuntos relacionados à saúde, como informações sobre alimentação (55%), prevenção e tratamento de doenças (38%), exercícios e meios para ficar em forma (36%), informações sobre medicamentos (22%) e discussões sobre saúde sexual e educação sexual (21%), conforme mostra o levantamento.

 

Contato de crianças e adolescentes do Brasil (9 a 17 anos) com temas sobre saúde pela internet


Entretanto, como diz o ditado, tudo demais é veneno. A exposição em excesso nas e às redes sociais, que abre possibilidades de aprendizagens e descobertas, também oferece muitos riscos em se tratando de crianças e adolescentes: desde prejuízos no desenvolvimento e a perda de vínculo entre pais e filhos até a erotização precoce.

Tanto a superexposição da imagem desses indivíduos por parte dos pais na internet como o uso excessivo da web por parte dos pequenos pode causar sérios danos, segundo especialistas. Isso porque, no primeiro caso, o conteúdo publicado sem o consentimento daquele pequeno ser está sujeito a uma infinidade de apropriações indevidas por parte dos usuários, e ao crescer isso pode ser motivo de constrangimento ou humilhação.

No segundo, além da falta de tempo de qualidade e interação que prejudicam gravemente a formação social, há uma série de materiais impróprios disponíveis a fácil acesso que podem afetar a infância de maneira psicológica, afetiva e comportamental, envolvendo as crianças no mundo adulto precocemente e transformando-as em adultos de miniatura — o que elas não são.

 

Assim como ensinar noções de segurança do tipo atravessar a rua, é papel dos pais e responsáveis orientar sobre uso da internet e do celular pelos filhos(Foto: Freepik)
Foto: Freepik Assim como ensinar noções de segurança do tipo atravessar a rua, é papel dos pais e responsáveis orientar sobre uso da internet e do celular pelos filhos

Nas redes “do momento” como Instagram e TikTok, não é raro se deparar com conteúdos protagonizados por crianças nas mais diversas situações, em que elas aparecem dançando músicas impróprias para menores de 18 anos, recebendo bronca ou castigo por algum comportamento e até sendo sendo “trolladas” pelos próprios pais (uma gíria da internet que significa zoar, constranger, tirar sarro).

O TikTok, aliás, é a rede social mais usada por crianças e adolescentes de 9 a 17 anos no Brasil, de acordo com a pesquisa da TIC Kids Online Brasil. E as empresas estão de olho nisso: sites de vídeos e redes sociais são as plataformas que mais exibem propaganda de produtos ou marcas.

O contato com a divulgação de conteúdos mercadológicos acontece principalmente através dos vídeos de unboxing, que são aqueles em que o produtor de conteúdo aparece abrindo embalagens ou ensinando como usar algum produto.


Principais produtos ou marcas vistas por crianças e adolescentes (9 a 17 anos) do Brasil no ambiente online

 

Do lado de cá das telas, um estudo da Universidade Federal do Ceará (UFC) em parceria com a Universidade de Harvard e outras instituições de ensino aponta que o uso de dispositivos eletrônicos diminui consideravelmente a capacidade de comunicação, resolução de problemas e sociabilidade de crianças com até 5 anos.

Na pesquisa, realizada com famílias cearenses, os cientistas acompanharam 3.155 crianças desde o nascimento até completarem 5 anos de idade e descobriram que, em média, 69% de todos os participantes foram expostos a um tempo excessivo de tela.

Conforme os pesquisadores, nos primeiros 12 meses de vida, 41,7% dos recém-nascidos tiveram acesso a vídeos e outros estímulos visuais passivos além da medida, porcentagem que aumenta e bate os 85,2% quando eles chegam aos 4 e 5 anos.

É comum que haja confusão entre as crianças terem acesso a conteúdos das redes sociais com serem registrados nas redes dos pais, mas são assuntos que precisam ser tratados de maneira diferente(Foto: Freepik)
Foto: Freepik É comum que haja confusão entre as crianças terem acesso a conteúdos das redes sociais com serem registrados nas redes dos pais, mas são assuntos que precisam ser tratados de maneira diferente

“Me preocupo muito com isso, me questiono e sigo escolhendo com cuidado o que compartilho”, comenta a fotógrafa Morgana Secco, mãe da pequena Alice, famosa pela habilidade de pronunciar palavras difíceis.

Além do carisma e da fofura, o que chama a atenção nos vídeos compartilhados pela mãe para os mais de 4 milhões de seguidores do Instagram é a dicção e a capacidade da menina ao construir frases complexas com apenas 2 anos — idade que ela tinha quando começou a viralizar na internet, em 2021.

Diante do sucesso nas redes, a família começou a receber convites para que Alice participasse de publicidades pagas — entre elas uma que recebeu grande visibilidade, o comercial de fim de ano de um banco estrelado pela pequena ao lado de artistas famosos como Fernanda Montenegro.

 

Após estrelar um comercial de fim de ano do banco Itaú, Alice teve sua imagem replicada em diversos contextos nas redes sociais(Foto: Reprodução/Youtube)
Foto: Reprodução/Youtube Após estrelar um comercial de fim de ano do banco Itaú, Alice teve sua imagem replicada em diversos contextos nas redes sociais

Mas a internet não perdoa, e logo as imagens da propaganda com a bebê passaram a ser reproduzidas em forma de memes e figurinhas de WhatsApp. O uso indevido do rosto de Alice passou a estampar conteúdos de cunho religioso e até político, como críticas ao ex-presidente Bolsonaro, o que incomodou os pais e levantou debates sobre a utilização indiscriminada de imagens infantis na web como meme.

A foto da criança ganhou outros significados nas redes sociais, o que nem sempre preserva os direitos dela. O material chegou a ser usado em peças de divulgação de serviços por empresas e órgãos públicos como prefeituras.

Para muitos que compartilharam, o fato de ser um anúncio publicitário de circulação na TV pelo qual a família recebeu dinheiro torna a imagem de domínio público — mas não é bem assim. Em vídeo, Morgana expressou preocupação com as brincadeiras e piadas tendo Alice como personagem.

No mesmo dia em que Morgana usou as redes sociais para criticar o uso indevido da imagem da filha, a prefeitura de Diadema (SP) reproduziu o frame em uma campanha de vacinação contra Covid(Foto: Reprodução/Instagram)
Foto: Reprodução/Instagram No mesmo dia em que Morgana usou as redes sociais para criticar o uso indevido da imagem da filha, a prefeitura de Diadema (SP) reproduziu o frame em uma campanha de vacinação contra Covid

 

“Queria deixar claro que a gente não deu autorização para nenhum deles e a gente não concorda em associar a imagem da Alice com fins políticos ou religiosos, por exemplo. Além disso, a gente não autorizou nem o uso dela de empresas ou de instituições. (...) Então a gente também não autoriza campanhas de divulgações”, disse, por meio dos stories.

De acordo com a advogada Júlia Mendonça, a situação pode ser abordada tanto sob a perspectiva do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) quanto pela Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD).

Conforme o Estatuto, menores de 18 anos só podem ter imagens utilizadas com autorização dos pais ou dos responsáveis legais, condição que está prevista no artigo 17: “O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, ideias e crenças, dos espaços e objetos pessoais”.

Já sob o ângulo da LGPD, trata-se de um dado bastante sensível (a foto de uma criança), e o tratamento de dados como esses só poderá acontecer no seu melhor interesse — ou seja, qualquer uso com finalidade alheia à proteção ou que possam acarretar danos é ilegal.

Enquanto pesquisadora da área jurídica, Júlia, que é autora do artigo “O fenômeno do sharenting e o compartilhamento na internet pelos pais de fotos de crianças com censura dos genitais: proteção ou sexualização?”, alerta que a exposição precoce pode fazer com que sejam criados muitos “rastros digitais”.

“Tais rastros podem englobar informações sobre localização, aniversário, ou até mesmo sobre saúde, construindo uma considerável base de dados, muitas vezes sensíveis, que podem acompanhar o indivíduo por toda a sua vida e influenciar no seu âmbito social, escolar e até profissional”, ressalta.

Isso porque, conforme aponta a mestranda em Direito da Universidade Federal da Bahia (Ufba), quando tirados de contexto, esses rastros deixados podem gerar as mais diferentes inferências sobre o perfil e a personalidade da pessoa.

 

A advogada Júlia Fernandes de Mendonça é pesquisadora na área de direitos e novas tecnologias e proteção de dados pessoais(Foto: Acervo pessoal)
Foto: Acervo pessoal A advogada Júlia Fernandes de Mendonça é pesquisadora na área de direitos e novas tecnologias e proteção de dados pessoais

“Por exemplo, uma foto de uma criança dormindo assistindo uma aula online - registros que foram compartilhados excessivamente durante a pandemia do Covid-19-, quando trazidos para o contexto profissional/escolar no futuro, podem sugerir uma ideia de ‘preguiça’ ou ‘desinteresse’”, demonstra.

No Brasil, casos semelhantes mostram que nem sempre os memes que divertem a internet são engraçados para quem os protagoniza.

Depois de virarem piada entre amigos, sofrerem bullying ou serem prejudicadas de alguma forma pela viralização de uma imagem com seu rosto, muitas dessas pessoas precisam de tratamento psicoterápico ou psiquiátrico, e algumas buscam a Justiça para que as plataformas monitorem ou filtrem tais conteúdos.

 

Após viralizar em uma briga, jovem do meme "Já acabou, Jessica?" revelou ter abandonado os estudos e caído em quadro de depressão(Foto: Reprodução)
Foto: Reprodução Após viralizar em uma briga, jovem do meme "Já acabou, Jessica?" revelou ter abandonado os estudos e caído em quadro de depressão

Júlia pondera que entender quais são os limites para a prática da superexposição de crianças e adolescentes é uma tarefa complexa, considerando os diferentes contextos e vivências possíveis.

“Algumas exposições são feitas com o objetivo de compartilhar experiências de maternidade/paternidade, como no caso de famílias com crianças neurodivergentes, em que as trocas com outras famílias na internet pode ser uma das poucas fontes de compartilhamento de experiências semelhantes, ou mesmo de conhecimento sobre a situação específica da criança”, indica.

Por outro lado, a advogada frisa que existem casos em que essa exposição é feita principalmente com o objetivo de obter algum retorno financeiro, o que acaba gerando constrangimentos e situações desconfortáveis para as crianças, em troca de engajamento nas redes sociais.

 

 

Em entrevista ao O POVO, Morgana Secco, que recentemente se tornou mãe pela segunda vez, falou sobre a relação entre maternidade e redes sociais, as diferenças de exposição nas e às telas, além dos cuidados que toma para proporcionar uma relação saudável e segura de Alice — e agora também Julia — com a internet.

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“Percebo que é bem comum que haja confusão entre ‘as crianças terem acesso aos conteúdos das redes sociais’ com ‘serem registrados e aparecerem nas redes dos pais’, mas são assuntos que precisam ser tratados de maneira diferente”, explica.

Com relação a serem filmados ou fotografados e terem esses registros compartilhados, ela ressalta que cabe a cada família avaliar até onde se sentem seguros ou confortáveis para tentar minimizar possíveis arrependimentos.

 

"Me preocupo muito com isso, me questiono e sigo escolhendo com cuidado o que compartilho", comenta Morgana Secco, mãe da pequena Alice, famosa pela habilidade de pronunciar palavras difíceis(Foto: Acervo pessoal)
Foto: Acervo pessoal "Me preocupo muito com isso, me questiono e sigo escolhendo com cuidado o que compartilho", comenta Morgana Secco, mãe da pequena Alice, famosa pela habilidade de pronunciar palavras difíceis

“Prestar atenção na criança é fundamental, algumas são mais tímidas, e é importante respeitar o espaço e a personalidade delas. Além disso, para crianças maiores que já conseguem opinar, acho sempre importante ter o consentimento delas”, indica.

Quanto ao consumo de conteúdo por parte dos pequenos, Morgana revela que é bem cuidadosa: “Já existe muita pesquisa demonstrando os malefícios para as crianças. Alice tem um acesso muito restrito ao consumo de telas. Ela não tem acesso a celular nem iPad e começou a assistir os primeiros desenhos na TV somente agora com 3 anos e meio, ainda assim somente aos finais de semana”.

“Acho importante prestar atenção nisso pois o consumo exagerado pode ter muitos impactos na saúde emocional e no desenvolvimento das crianças, que possuem um cérebro em formação e precisam de outros tipos de atividades nessa fase importante da vida. Mesmo para crianças maiores e adolescentes é importante ter controle do tempo de uso e dos conteúdos acessados”, salienta.

 

Deixar o celular de lado e estar presente, especialmente quando se está com os filhos, é o primeiro ponto elencado por Morgana Secco para ter uma relação saudável das crianças com a internet(Foto: Reprodução/Instagram)
Foto: Reprodução/Instagram Deixar o celular de lado e estar presente, especialmente quando se está com os filhos, é o primeiro ponto elencado por Morgana Secco para ter uma relação saudável das crianças com a internet

Além de evitar o compartilhamento de informações que comprometam a segurança, como em qual escola a Alice vai, em Londres, onde a família vive, a fotógrafa também não compartilha situações que avalia que possam gerar constrangimentos ou arrependimentos futuramente, nem situações muito íntimas.

“Sempre tivemos alguns cuidados que considero básicos, e o critério às vezes é avaliar se postaria uma cena parecida de algum adulto ou minha. Não me posto chorando, por exemplo, então prefiro evitar postar as crianças nessas situações”, cita.

Um importante ponto, sinaliza Morgana, é perceber até onde elas se sentem confortáveis, pois a prioridade é o bem estar. “Alice é super tranquila, extrovertida e nada envergonhada, então o comportamento dela também é meu termômetro. Se em algum momento ela me pede para não filmar, eu não filmo. Por último, também temos um cuidado para que as filmagens não interfiram nas brincadeiras ou na naturalidade delas”, evidencia. 

 

 

Outro lado da questão, aborda a fotógrafa, é a relação dos pais com a internet, que também pode se tornar um problema para as crianças: “é preciso ter bastante consciência do nosso próprio comportamento e como isso está impactando na nossa saúde e na saúde dos nossos filhos. Acho que o primeiro ponto é prestar atenção no nosso uso exagerado, o que é especialmente difícil para quem trabalha com celular e pode resolver questões de trabalho a qualquer momento, mas também muito necessário”.

Deixar o celular de lado e estar presente, especialmente quando se está com os filhos, é o primeiro ponto elencado por ela. “Dedicar atenção a eles é indispensável para o desenvolvimento e para a nossa relação com eles. Ter consciência de que o acesso irrestrito de conteúdos online é prejudicial para crianças e adolescentes e é nossa responsabilidade como pais esse controle”, destaca.

“No fim das contas o exemplo realmente conta muito, as crianças usam seu tempo de acordo com as referências que têm. Pais presentes e interagindo fazem as crianças terem prazer em atividades offline e logo isso será o que elas vão querer fazer com seu tempo livre”, finaliza.

 

 

Pais ou filhos: quem passa mais tempo no celular?

Quando se trata do desenvolvimento infantil, os pais precisam se preocupar não só com o tempo de tela de seus filhos, mas também com o seu próprio. Isso porque um dos principais efeitos da exposição às redes sociais em excesso por ambas as partes pode ser a perda de vínculo — e alguns comportamentos confundidos com autismo ou hiperatividade às vezes são consequência dessa desvinculação.

Em um mundo onde os celulares se tornaram o principal meio de comunicação para assuntos profissionais e pessoais, é fácil se deixar consumir pela demanda de atenção dos aparelhos.

Um exemplo comum é quando a família inteira está junta em um restaurante e todos estão olhando o celular, ou quando durante um passeio os adultos estão resolvendo problemas ao telefone, sem olhar minimamente os pequenos que estão junto.

 

Dr. Marco Antônio é membro do Grupo de Trabalho de Saúde Digital da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP)(Foto: Acervo pessoal)
Foto: Acervo pessoal Dr. Marco Antônio é membro do Grupo de Trabalho de Saúde Digital da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP)

Isso não quer dizer que não seja necessário prestar atenção na relação das crianças com a tecnologia, mas também é fundamental falar mais sobre a divisão de atenção que os adultos fazem entre seus smartphones e as crianças, pois a distração em função do celular pode ter efeitos duradouros no desenvolvimento cognitivo e emocional.

É o que chama a atenção o médico Marco Antônio, da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP):

“Os processos de aprendizagem se dão por meio de interações de qualidade entre as crianças e seus cuidadores. Quando adultos estão fisicamente com os filhos, mas com a concentração voltada para o celular, as crianças são impactadas de diferentes maneiras. Há riscos de aprendizagem, emocionais e até físicos, estudos mostram correlação entre a falta de atenção parental devido ao uso de tecnologia e maior incidência de ferimentos infantis no parquinho”.

Segundo Marco, “os prejuízo são enormes, fala, coordenação motora, até a interação com os outros. A evolução é um processo que vai prejudicando principalmente a parte psíquica e os outros sintomas vão vindo de forma correlata. Isso vai cair em distúrbios alimentares, quadros depressivos, cada uma vai encontrar um caminho. Ela [criança] pode se aproximar de situações de risco, informação sexual precoce, uso de drogas”.

Do ponto de vista emocional, explica o pediatra, essa desatenção crônica também pode ter consequências, como quando as crianças sentem que precisam competir pelo olhar dos adultos e começam a escalar seu comportamento para chamar atenção. Isso leva a adotarem atitudes de risco, ou mesmo espelhar — e também usar excessivamente o celular.

“Uma criança que não se sente amada pode ter comportamentos confundidos com autismo, hiperatividade, quando é uma série de ações que ela encontra como saída para sobreviver ao abandono. Pessoas muito agressivas às vezes são pessoas que não receberam afeto e tampouco acolhimento. Uma série de perigos é oferecida pelo mundo virtual na ausência de um afeto familiar”, evidencia.

 

 

Erotização e adultização precoce: a infância roubada

 

Do outro lado dessa exposição, ao criarem perfis para os filhos, seja para introduzir a internet ou para comercializar a imagem deles, muitos pais acabam incentivando o consumismo, a erotização precoce e a violência cibernética, corrobora o Dr. Marco Antônio.

Um exemplo é o caso da adolescente Gabriella Severino, conhecida como “MC Melody”: atualmente com 16 anos, a cantora mirim ganhou notoriedade nacional em 2015, quando tinha apenas 8, através de vídeos no Youtube publicados pelo pai, o também cantor Thiago Abreu, conhecido como “MC Belinho”.

Thiago é alvo de inquérito civil pelo Ministério Público de São Paulo pelo forte conteúdo erótico e apelos sexuais nas produções e publicações nas mídias, com investigação pela suspeita de violação ao direito e respeito à dignidade de crianças/adolescentes.

 

Com apenas 8 anos, Melody se tornou alvo de polêmica nas redes sociais após ter vídeos cantando funk com letras obscenas publicados pelo pai na internet(Foto: Reprodução)
Foto: Reprodução Com apenas 8 anos, Melody se tornou alvo de polêmica nas redes sociais após ter vídeos cantando funk com letras obscenas publicados pelo pai na internet

“Se você não tem estrutura familiar ou alguém que te protege, fica à mercê de terceiros. Há pessoas que vão aproveitar esse ser humano indefeso e vão fazer com eles o que tiverem vontade. Esses crimes sexuais que estão cada vez mais crescentes são favorecidos por essa situação. Viram presa fácil porque eles vão pesquisando e descobrem a fragilidade, criam um personagem, envolvem a pessoa e dominam de forma a explorar”, reforça.

Ativista pela erradicação da violência sexual, a educadora Sheylli Caleffi aproveitou o Carnaval para alertar adultos sobre uma questão impulsionada pelo período festivo, as famosas dancinhas — só que protagonizadas por crianças em posições erotizadas e usando pouca roupa, todas publicadas em um perfil pornográfico no Instagram.

A professora fez um compilado de vídeos em que mostra como um conteúdo aparentemente indefeso e “engraçadinho” para os pais pode sujeitar menores a perigos de diversas naturezas.

 

 

O que os pais podem fazer?

Celulares fazem parte da vida, e a tendência não é deixarem de existir. Por isso, em vez de fingir que a realidade não existe, é necessário se adaptar. Entretanto, os pais podem e devem fazer o esforço de controlar o próprio uso na presença das crianças e resguardar a privacidade, para que os momentos de convívio sejam interações de qualidade, com atenção e intenção de se conectar.

De acordo com Andrea Pinheiro, do Laboratório de Pesquisa da Relação Infância, Juventude e Mídia (Labgrim/UFC), a internet é um espaço público com riscos, mas também com possibilidades de muitas descobertas e aprendizagens para crianças e adolescentes, portanto orientar sobre usos mais saudáveis da internet e dos dispositivos móveis é o mais adequado.

Para a professora, situar o ambiente digital apenas como perigoso não é o melhor caminho, pois a perspectiva proibitiva ou prescritiva tira oportunidades de orientar sobre como estar presente nesse espaço de forma mais segura e consciente. 

Andrea Pinheiro é professora do curso Sistemas e Mídias Digitais da UFC e integrante do Laboratório de Pesquisa da Relação Infância, Juventude e Mídia (Labgrim)(Foto: Arquivo pessoal)
Foto: Arquivo pessoal Andrea Pinheiro é professora do curso Sistemas e Mídias Digitais da UFC e integrante do Laboratório de Pesquisa da Relação Infância, Juventude e Mídia (Labgrim)

“Ensinamos nossas crianças noções de segurança, tais como atravessar a rua ou não falar com pessoas desconhecidas, por exemplo, mas de modo geral, ignoramos que precisamos fazer o mesmo em relação ao uso da internet e do celular. Não apenas sobre o tempo de uso, mas sobre o que acessar e sobre como se comportar, a importância de respeitar as pessoas com as quais interagimos, por exemplo”, realça.

Ela enfatiza que não adianta fazer um discurso sobre limites do uso do celular, se os adultos da família usam o dispositivo de forma excessiva, já que as crianças aprendem com os exemplos.

“Acho preocupante o uso naturalizado do celular para crianças desde muito cedo porque estão deixando de viver outras experiências importantes como brincar, ter contato com a natureza, imaginar, interagir com outras crianças, porque estão limitadas ao dispositivo, em uma espécie de confinamento virtual”, defende.

Pinheiro elenca algumas perguntas importantes: “Quais são as lembranças dos momentos em família que queremos construir com os nossos filhos? Será que a exposição indiscriminada e certos constrangimentos justificam os likes? Como será que as crianças quando crescerem vão lidar com os excessos dessa exposição? Será que tudo precisa ser publicado nas redes sociais?”.

“Estamos perdendo oportunidades incríveis de convivência com as crianças porque nos momentos em família, em que deveríamos priorizar a troca, a interação, o diálogo, conversar com as crianças sobre questões cotidianas, cada qual está com um celular na mão. Como adultos, precisamos estar atentos aos excessos. Nenhum excesso é saudável”, acrescenta.

"Olá! Aqui é Karyne Lane, repórter do OP+. Te convido a deixar sua opinião sobre esse conteúdo lá embaixo, nos comentários :) até a próxima!"

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