Por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI), O POVO fez a seguinte pergunta aos órgãos de gestão do serviço público estadual das 27 unidades federativas: caso a criança ou adolescente seja adotada por um casal de homens, qual a licença a ser concedida ao solicitante, licença-maternidade ou paternidade?
As respostas obtidas são preocupantes: apenas 10 unidades da federação concedem o mesmo tempo de licença maternidade a casais homoafetivos masculinos no serviço público estadual, sem restrições: Espírito Santo, Rondônia, Amapá, Maranhão, Rio de Janeiro, São Paulo, Goiás, Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Acre. Acre, Amapá e São Paulo também não fazem diferenciação entre os tipos de licença, mas as condicionam às idades das crianças ou adolescentes adotados, regra que é a mesma quando as adotantes são mulheres.
Um dos pontos principais do levantamento é que ao excluir os 10 estados que concedem licença sem distinção, percebe-se que o tempo do benefício que mais se repete é o de apenas cinco dias. O tempo máximo é de 30 dias, mas só o Ceará tem esse benefício. Os períodos mais longos deste tipo de licença são concedidos pelo Amazonas, Distrito Federal, Pernambuco e Pará.
Outra informação que se destaca é que os estatutos dos servidores estaduais remetem a concessão da licença maternidade ou adotante como um benefício da servidora, e aos homens seria concedida a licença-paternidade. Ao se perguntar diretamente sobre o tempo de licença a casais homoafetivos masculinos, 38% dos respondentes atribuíram a esse tipo de relação o benefício da licença paternidade. É como se o norteador para a concessão do benefício seguisse a seguinte lógica: mulheres recebem licença maternidade, e homens, licença-paternidade.
O estudo foi feito pelo Data.doc — Núcleo de Dados do O POVO — com base nos estatutos e em 27 pedidos de Lei de Acesso à Informação (LAI) para checagem de atualizações. Até o fechamento desta reportagem, os seguintes estados não enviaram respostas: Amazonas, Piauí e Roraima. No entanto, seus estatutos consideram a licença maternidade como um benefício apenas das servidoras mulheres. No estado da Paraíba, não foi encontrada menção à licença-paternidade no estatuto do servidor.
“Esse prazo de cinco dias é o que a Constituição fixou para a licença-paternidade, mas no caso da adoção solo por um homem, por exemplo, ele vai ter direito à licença-maternidade, por uma questão de isonomia, já que a adoção é um direito da criança, e isso vale tanto para quem é do regime geral quanto quem é do regime próprio. Os estatutos podem até dizer que o homem adotante tem direito a apenas cinco dias de licença, já que os estados têm autonomia para decidir isso, mas no Direito Previdenciário, prevalece sempre a condição mais benéfica. Ou seja, o mínimo de 120 dias”, explica Zeu Palmeira Sobrinho, professor do Departamento de Direito Privado da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
“Resumindo, ao dar cinco dias de licença-paternidade a um pai solo ou servidor adotante em relação homoafetiva, o regimento estadual fere frontalmente a Constituição no seu artigo 227, que diz que não pode diferenciar quem foi adotado por servidor público ou por empregado do regime geral da Previdência", ressalta.
O Ceará é um dos estados — junto a Paraíba, Alagoas, Sergipe e Minas Gerais — que respondeu não haver regulamentação sobre a questão ou não existir um entendimento sobre a indagação por parte da Procuradoria Geral. O Estado informou ainda ter ocorrido somente um caso desta natureza, e para o servidor foi concedido o mesmo tempo de licença maternidade.
Acho muito improvável que a gente, com quase 150 mil servidores públicos estaduais, segundo dados do site Ceará Transparente para o mês de maio deste ano, tenha tido apenas um pedido de licença-adotante formalizado por casal homoafetivo masculino. O mais provável é que essa informação nem tenha sido levantada, o que é um indicativo de uma invisibilidade estrutural do sistema”, aponta José Almeida, sociólogo, militante LGBTQIA+ e filiado à Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos (ABGLT).
Por Marine Barros (*)
O levantamento do O POVO mostra como os Estados permanecem defasados. Pela nossa experiência de acompanhar os adotantes, vemos que, aqui no Ceará, os servidores públicos estaduais que vivem relações homoafetivas obtêm o mesmo prazo da licença-maternidade e paternidade, e tudo isso é feito no âmbito administrativo, ou seja, nos próprios órgão onde trabalham, sem necessidade de acionar a Justiça.
No entanto, para as servidoras, para que uma delas receba a licença-paternidade, é necessária a judicialização. Ou seja, já há aí uma discriminação para casais formados por dois homens ou duas mulheres, sendo mais simples a concessão desse tipo de licença para casais masculinos.
Outro problema é sentido também pelos adotantes monoparentais, que são as pessoas que fazem a adoção sozinhas. Vale lembrar que todas essas licenças são direitos da criança, e elas não deveriam ter esses direitos limitados em virtude da idade delas. O levantamento mostra que isso [a diferenciação por idade] é prática comum, ainda que ferindo a Constituição e o Estatuto da Criança e do Adolescente. Expõe também como os Estados permanecem defasados em relação à Constituição e à Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) no que diz respeito aos seus servidores.
As perguntas que não querem calar são estas: como vamos conseguir o sucesso de uma adoção em casos que envolvam de adolescentes ou crianças que passaram anos em abrigos, se as pessoas que os adotam não conseguem ficar mais tempo afastadas do trabalho? Como elas vão conseguir fortalecer os vínculos afetivos, que é o objetivo principal de toda adoção? Se já há a repercussão geral do STF, que garante a igualdade das licenças sem diferenciação para quem tem o filho por meios biológicos ou por adoção, por que isso não é cumprido, sem a necessidade de se acionar a Justiça?
Na Acalanto, recebemos muitos pais preocupados com a possibilidade de seus pedidos de licença serem negados nos órgãos onde trabalham, e a primeira orientação que damos é a de fazer o pedido de licença anexando à documentação o julgado do STF para usar o argumento da repercussão geral. Se o órgão não aceitar, provavelmente o servidor vai ganhar na Justiça depois, mas é um desgaste desnecessário para quem já veio de um processo de adoção, que por si só é trabalhoso. É vergonhoso que alguns Estados submetam suas crianças a mais uma dificuldade.
A técnica judiciária Daniela Mendes, 43 anos, e a artista plástica Helena Gomes, 45 anos, adotaram Anderson, atualmente com 10 anos, mas tiveram que entrar na Justiça para garantir um pouco mais de tempo na adaptação do filho ao novo lar.
“Como ele tinha nove anos, inicialmente eles me negaram. Eu trabalho, ironicamente, no Tribunal de Justiça de Pernambuco, e o tribunal só prevê, em lei, a concessão de licença adotante até uma determinada idade. Então eu entrei com um pedido de reconsideração embasado em toda a legislação e decisão que já tinha sobre o assunto. O setor de análise jurídica viu a situação e concedeu os seis meses de licença-maternidade”, lembra Daniela.
“A decisão deixou bem claro que a licença é um direito da criança, corroborando com o embasamento legal e de jurisprudência, juntamente com o fato de já ter tido um caso semelhante em que uma juíza também determinou a concessão de licença-maternidade”, completa.
O casal trilhou um longo caminho até decidir pela adoção, mas a chegada de Anderson, por si só, foi rápida. “Como não procurávamos uma criança com um perfil amplo, a adoçãonão demorou tanto. Queríamos aumentar nossa família porque sentimos que chegamos no momento de compartilhar com mais alguém aquele sentimento tão especial que tínhamos uma pela outra”, destaca.
Daniela ainda está aprendendo a ser mãe, mas se diz envolta no que chama de turbilhão de emoções. “Não faz diferença se ele nasceu de nós ou não. Nós estamos bem felizes e nos sentimos uma família plena desde sempre”, afirma.
A história dos professores Emiliano Aquino, 55, e Estênio Azevedo, 44, docentes da Universidade Estadual do Ceará (Uece), foi contada por Emiliano entre muitos sorrisos. É que em 2009, quando o casal recebeu a resposta de que seriam pais do pequeno Diogo, que tinha três anos, Emiliano disse ter ficado tão emocionado que esqueceu por meses que poderia ter pedido a licença-adotante.
“Falando agora sobre isso, juro que não sei explicar que sentimento tão forte foi esse que aconteceu. Vou colocar na conta da cegueira que ocorre a nós, seres humanos, quando tomados pela felicidade extrema”, brinca Emiliano. “Mas olhe, não foi fácil não, viu? Porque eu dava aulas e Estênio estava no doutorado, e tivemos que aprender a colocar as crianças para dormir, a cuidar quando estava doente, essas coisas. Mas de algum jeito tudo foi dando certo”, lembra.
Deu tão certo que um ano depois, o casal resolveu aumentar a família. Em 2010, Fabrício chegou e, do alto de seus três anos de idade, ensinou aos professores que o amor sempre pode ser maior do que já se tem. "É importante ressaltar que a licença é importantíssima para a criança e para a nova família. É nesse tempo que a gente aprende a ser pai ou mãe. Outra coisa: peço para que as pessoas adotem. Ainda se tem a concepção de que o processo de adoção demora muito. No entanto, só demora nos casos em que os adotantes fazem muitas exigências, especificamente sobre características físicas. Da mesma forma que os pais biológicos recebem suas crias, mesmo sendo diferentes do que elas idealizaram, deve-se ter os corações abertos para alguém que vem. É uma proposta de amor”, conclui.
Metodologia e dados utilizados
Para a construção desta reportagem, o Data.doc coletou os estatutos dos servidores públicos de cada Unidade da Federação e baseado nos documentos oficiais, sistematizamos por Estado e tempo de licença oferecidos aos servidores públicos que adotam no país. Os dados foram extraídos dos sites institucionais dos governos e checados via Lei de Acesso à Informação (LAI). Foram submetidos 27 pedidos de LAI a todos os estados brasileiros, essas solicitações requeriam os tipos e os tempos de licença concedidos aos servidores gays que adotam crianças ou adolescentes, e as normas que regem os benefícios.
Nossos dados são auditáveis. Como forma garantir a integridade e confiabilidade da nossa análise, disponibilizamos aqui as bases e documentos utilizados na produção deste material.
A adoção de crianças e adolescentes por servidores públicos estaduais esbarra em regimentos anticonstitucionais que estabelecem diferenças entre os filhos de pais adotivos e os biológicos. Maioria das licenças concedidas aos adotantes é de apenas 30 dias