"Para mim, era bem claro: era Dionísio que estava na mesa. E estava lá por quê? Porque, na mitologia grega, ele é o deus da festa, o deus do vinho, que é uma das joias da França. Além disso, ele é pai de Sequana, a deusa do rio Sena. A ideia era fazer uma grande festa pagã ligada aos deuses do Olimpo e, portanto, do
A fala é do diretor artístico francês Thomas Jolly, responsável pela cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos de Paris 2024, em entrevista ao canal de televisão francês BFMTV. A explicação foi necessária após a repercussão negativa de um trecho da cena "Festividade" protagonizado por
A performance virou polêmica entre grupos religiosos e de extrema-direita por supostamente satirizar a última ceia de Jesus Cristo quando, na verdade, segundo o autor, a referência era o culto aos deuses do Olimpo — cultura que rege as Olimpíadas.
O momento do espetáculo foi considerado ofensivo para a cultura cristã e recebeu repúdio imediato à tida referência ao quadro "A Última Ceia", obra de
Durante a transmissão da cerimônia, que foi acompanhada por milhares de brasileiros, o termo "blasfêmia" chegou a figurar entre os tópicos mais comentados do X (antigo Twitter).
Entidades da Igreja Católica e líderes religiosos globais se manifestaram e cristãos foram às ruas da capital francesa protestar contra o que classificaram como "zombaria". A Conferência dos Bispos da Igreja Católica Francesa disse, em comunicado: "infelizmente, esta cerimônia apresentou cenas de escárnio do Cristianismo, o que deploramos profundamente".
A deputada Marion Marechal, líder da direita francesa, fez coro às críticas: "Para todos os cristãos do mundo que estão assistindo à cerimônia #Paris2024 e se sentiram insultados por esta paródia drag queen da Última Ceia, saibam que não é a França que está falando, mas uma minoria de esquerda pronta para qualquer provocação".
E acrescentou, em um post no X: "Este acontecimento, que deveria ser um trunfo diplomático, tornou-se uma vergonha internacional devido às provocações egocêntricas de uma minoria de ativistas de esquerda que tomaram a cerimônia como refém ideologicamente".
O bisco Andrew Cozzens, presidente do Comitê Episcopal dos Estados Unidos para Evangelização e Catequese, emitiu uma declaração e pediu aos católicos que "respondam ao incidente de Paris com oração e jejum".
Na cobertura do evento, no entanto, o perfil oficial dos Jogos Olímpicos no X apontou a referência à Grécia antiga: "A interpretação do deus grego Dionísio nos conscientiza do absurdo da violência entre os seres humanos".
No centro, pintado de azul, o ator Philippe Katerine interpreta Dionísio (ou Baco), o deus do vinho e da festividade, como explicou Thomas Jolly.
A inspiração, portanto, teria origem em quadros que retratam o Olimpismo, como é o caso de "Le festin des dieux" (A festa dos deuses, em tradução livre), de Jan Harmensz van Bijlert, obra de 1635.
Esse entrelaçamento entre esporte e religião que persiste até a atualidade remonta a tempos antigos, quando rituais e sacrifícios em honra aos deuses criaram a cultura que hoje se traduz nas milhões de pessoas encantadas com a motivação, o talento e o atletismo das Olimpíadas.
Na capital da França, são quase 11 mil atletas que disputam 32 modalidades em 329 eventos por 19 dias ininterruptos — o maior torneio esportivo mundial.
Os Jogos Olímpicos de Paris 2024 são a 33ª edição do evento, que acontece nesse formato desde 1896, quando a chama Olímpica foi acesa pela primeira vez em Atenas, na Grécia. Mas você conhece o elo que existe entre os Jogos antigos e os modernos e por que isso tem a ver com a polêmica da cerimônia de abertura?
Os Jogos Olímpicos da Era Moderna, como são hoje, foram criados em 1894 pelo Barão de Coubertin, um historiador francês.
Na mesma Paris cortada pelo rio Sena que foi palco da cerimônia de abertura polêmica 130 anos depois, Pierre de Coubertin não imaginava que sua ideia iria tão longe.
Em homenagem ao “pai das Olimpíadas”, foi criada a Medalha Pierre de Coubertin, considerada a maior e mais rara honraria entregue aos atletas que se entregam ao espírito olímpico com ética, humanidade e esportividade.
Na época, algumas descobertas arqueológicas nas ruínas de Olímpia, na Grécia, fizeram crescer o interesse mundial por essa tradição — que até então estava esquecida.
Coubertin organizou um congresso internacional na capital francesa para propor a realização de um evento nos padrões do que acontecia antigamente: era a fundação do Comitê Olímpico Internacional (COI), que dois anos depois organizou a primeira edição dos Jogos — e assim o faz até hoje.
Entre essas descobertas arqueológicas encontradas em Olímpia estavam inscrições sobre os vencedores de uma corrida a pé realizada a cada quatro anos a partir de 776 antes de Cristo (a.C.), reproduzindo a prática dos deuses da mitologia em culto a eles.
Os deuses do Olimpo
Essa data ficou marcada como o início oficial das competições olímpicas. Era uma época de muitas guerras entre os diferentes reinos da Grécia e estima-se que, nesse período, os reis selaram uma trégua de verão que seria celebrada com os Jogos Olímpicos. É daí que se concebe a ideia de que as Olimpíadas são uma celebração da paz entre os povos.
Quando criou a bandeira olímpica, em 1914, aliás, Pierre de Coubertin esperava expressar justamente isso: os cinco anéis representam os cinco continentes que, interligados, estão unidos por meio dessas competições internacionais.
As cores escolhidas não são azul, amarelo, preto, verde e vermelho à toa: elas aparecem pelo menos uma vez nas bandeiras de todos os países do mundo, e por isso representariam a todos.
A historiadora Marisnanda Mora explica que os jogos antecedem a existência da Grécia e que sempre fizeram parte da cultura religiosa, principalmente de civilizações da América.
“Os incas e os maias, por exemplo, existem indícios de que esses povos tinham várias competições de jogos e de torneios na Grécia antiga. Temos a
Mota, que é professora de História, aponta que esses jogos “estavam sempre ligados à agricultura, à necessidade dos seres humanos de purificarem a terra, de agradarem aos deuses para que a produção agrícola fosse positiva”.
O que contribuiu para marcar o mundo ocidental com a tradição e o gosto pelos esportes e Jogos Olímpicos foi, na opinião da professora, “a cultura formada a partir da colonização de povos que tiveram influência dos gregos e dos romanos, como os portugueses e os espanhóis, por exemplo”.
A morte do rei grego Alexandre, o Grande, em 323 a.C., marcou o início de um período de transição entre a expansão da civilização grega e o domínio de todo esse território pelo Império Romano. À medida em que Roma avançava, guerras e conflitos aconteciam e a tal "trégua sagrada" firmada pelo reis ia sendo esquecida.
Não existe um consenso, mas a data mais aceita como o fim dos Jogos da Antiguidade é 393 d.C., quando o imperador romano Teodósio I (o mesmo que definiu o Cristianismo como a religião oficial do império) determinou a extinção de todas as práticas e cultos pagãos — inclusive os Jogos, considerados uma homenagem a deuses que em nada tinha a ver com o Cristianismo.
"O avanço do cristianismo pode, sim, ser considerado um elemento crucial para o declínio da tradição olímpica da idade antiga", afirma a historiadora Marisnanda, que é mestre no ensino em História pela Universidade Federal do Ceará (UFC).
E continua: "Apesar de os jogos terem continuado após a Grécia ter sido conquistada por Roma, quando o cristianismo começa a se tornar popular, o culto pagão que os jogos promoviam se tornou um problema entre os povos gregos e romanos".
"Quando os imperadores romanos começaram a se converter ao Cristianismo (como Constantino, que com o Édito de Milão imprimiu a liberdade de culto para o Império Romano em 313 d.C., e Teodosio I, em 390 d.c, que tornou o Cristianismo a religião oficial de Império), os Jogos Olímpicos entraram em decadência, sendo retomado somente no final do século XIX", pontua.
A cada quatro anos, cerca de 50 mil pessoas viajavam de todas as regiões da Grécia até Olímpia, entre agosto e setembro, para assistir à competição em honra de Zeus, o maior Deus da mitologia grega.
Àquela altura não existiam ainda as medalhas de outro, prata e bronze, o que só viria a ser adotado na era moderna, em 1908.
Os atletas que se sagravam campeões eram premiados com uma coroa de oliveira, conhecida como "kotinos", símbolo de vitória na Grécia Antiga, e vistos como heróis “tocados pelos deuses”.
Esportes dos Jogos antigos
De acordo com a professora Marisnanda, essa não foi a única característica que mudou: “na Grécia antiga não era permitido que as mulheres participassem das competições".
"Isso se dava pela formação patriarcal da sociedade grega, que ainda via as mulheres como seres pertencentes ao ambiente doméstico, apesar de existirem mulheres intectuais filósofas, por exemplo (Theana, que viveu no século VI a.C. e Hipatia de Alexandria, que viveu no século V d.C.)”, lembra.
Hoje, as mulheres participam de todas as modalidades — e a delegação brasileira junto com a da Espanha são as duas que têm mais mulheres do que homens.
Outro elemento modificado foi o fato de que os jogos antigos nasceram para servir aos deuses, enquanto os modernos surgiram sem esse ideal religioso.
Outro fator interessante citado pela historiadora é que os jogos acontecem em vários países diferentes, quando antes era somente na Grécia.
Por outro lado, há elementos preservados: “os jogos ainda acontecem de 4 em 4 anos e permanecem sendo essencialmente uma competição”.
“Tanto no passado quanto no presente, celebram o esforço e a excelência física. Há a participação de várias nações. Os jogos gregos eram chamados pan-helênicos (várias cidades-estados). É um evento que continua cheio de simbolismos e buscam a glória, vide as cerimônias de abertura e encerramento”, arremata.
O que permanece
E conclui: “É interessante observar como esses povos valorizavam muito a figura humana, o corpo humano físico, a beleza, a questão da nudez. A exposição do corpo para os gregos antigos era uma questão de honra, era como se eles se sentissem mais próximos dos deuses, das divindades”.
A historiadora lembra que ainda hoje, é nas ruínas do altar da deusa Hera, que fica na cidade de Olímpia, na região do Peloponeso, que se acende a tocha olímpica antes de ser destinada ao país que sediará as Olimpíadas. Esse é um dos mais importantes elos entre os Jogos antigos e modernos.
Para os gregos, o fogo era um elemento sagrado, e chamas perpétuas eram mantidas acesas em frente aos principais templos.
Durante os Jogos Olímpicos antigos, uma chama ficava acesa permanentemente no altar do santuário da deusa Hestia, e chamas adicionais iluminavam os templos de Zeus e Hera.
Hoje, a chama Olímpica é acesa em frente às ruínas do templo de Hera por uma atriz que representa a alta sacerdotisa, utilizando um recipiente parabólico (conhecido pelos antigos gregos como Skaphia) que reflete os raios solares para acender a chama.
A chama Olímpica é colocada em uma urna e levada ao palco original dos Jogos Olímpicos por Hestiada (a sacerdotisa guardiã do fogo).
Ali, é entregue junto com um ramo de oliveira, símbolo universal da paz, à primeira pessoa que vai carregar a tocha Olímpica.
O portador da tocha segue para o Coubertin Grove, memorial que abriga a Academia Olímpica Internacional, em Olímpia.
A chama carregada é usada para acender o altar principal, que fica lado do monumento onde o coração de Pierre de Coubertin, fundador do movimento Olímpico moderno, está enterrado.
A chama Olímpica é repassada para um segundo portador da tocha, que representa o país anfitrião dos Jogos Olímpicos — em 2024, a França — e a partir dali se inicia o revezamento.
"Oie :) Aqui é Karyne Lane, repórter do OP+. Te convido a deixar sua opinião sobre esse conteúdo lá embaixo, nos comentários. Até a próxima!"
Série mostra alguns recortes sobre as Olimpíadas 20024 em Paris