"Eu comecei a gravar quando começamos a desaparecer”, murmura Basel Adra enquanto filma a estrada noturna até seu vilarejo em Masafer Yatta, no sul da Cisjordânia. A área vem sendo ocupada por militares israelenses que delegam a posse daquele território, operando de forma insistente, por décadas, a expulsão de todos os seus moradores.
O documentário Sem Chão (No Other Land, no título original) é, antes de tudo, um registro muito pessoal que testemunha o olhar de quem é invadido. A constante repetição de cenas do exército derrubando casas, escolas e até parques infantis, todos construídos de forma precária e clandestina, provoca uma angústia profunda pela imobilidade de um povo constantemente marginalizado.
Como retaliação a imobilidade dessa resistência, Basel pega a câmera e filma. Os soldados, cada vez mais acostumados com esse gesto, não temem mais se expor ao mundo. Ele conta, no início, sobre ter nascido em meio a um conflito alheio à sua noção de mundo, lembrando o momento em que percebeu que seus pais eram ativistas e como ele, mesmo criança, já estava na mira. Para criar um contraponto, o filme narra também sua amizade com Yuval, jornalista israelense que apoia sua causa.
Esse dispositivo de criação de imagens é algo recorrente como arma de resistência desde que o cinema digital se tornou mais amplo. Cinco Câmeras Quebradas, de 2011, é um dos grandes exemplos que percorreram o mundo – nele, o agricultor Emad Burnat aponta sua câmera até que ela seja destruída pelos tiros do exército. Então ele saca outra, e depois outra, até o fim do filme.
Sem Chão vem sendo tratado como favorito ao Oscar de Melhor Documentário, mas será mesmo que a classe artística dos EUA está a fim de defender a Palestina? Mesmo que a ofensiva deste novo Governo Trump com o Estado de Israel soe ainda mais cruel do que a aliança estabelecida entre Biden e Netanyahu, o sionismo ainda parece algo relativizado na cultura americana.
No ano passado, quando Jonathan Glazer subiu no palco do Oscar para receber seu troféu de Melhor Filme Internacional por Zona de Interesse, filme sobre uma família nazista que tem no seu quintal um muro que os separa do campo de concentração de Auschwitz, ele declarou que seu filme foi feito “para nos confrontar no presente”. Ao invés de só olhar a crueldade do passado, olhar “o que estamos fazendo agora”.
Em 2023, o conflito entre Hamas e Israel trouxe a guerra histórica para o debate público, mais uma vez, especialmente pela diferença bélica entre as duas forças do jogo. Sob defesa de eliminar o grupo terrorista, quem pagou o maior preço foi o povo palestino. Uma semana após o Oscar, um carta aberta assinada por artistas de Hollywood repudiou a considerada “comparação” entre o regime nazista e a ação gerenciada pelo governo de Netanyahu.
Judeu, Glazer disse se colocar no lugar de quem refuta que o “judaísmo e o Holocausto” fossem sequestrados por “uma ocupação que levou o conflito para tantas pessoas inocentes. Sejam as vítimas do 7 de outubro em Israel ou do ataque contínuo a Gaza”. Parte dos artistas, porém, incomodou-se com a menção dos dois lados.
Sem Chão, de Yuval Abraham, Basel Adra, Rachel Szor e Hamdan Ballal, concorre neste ano com outros dois filmes em contextos de guerras políticas: Porcelain War, de Slava Leontyev e Brendan Bellomo, retrata artistas ucranianos que convivem com a invasão russa; e Trilha Sonora para um Golpe de Estado, de Johan Grimonprez, destrincha o trâmite que levou ao assassinato de Patrice Lumumba, em 1961, líder congolês.
Os demais filmes da categoria se debruçam sobre investigações. Diários da Caixa Preta acompanha a jornalista Shiori Ito, também diretora do filme, na investigação da sua própria agressão sexual cometida por alguém de alto escalão. Sugarcane, de Julian Brave NoiseCat e Emily Kassie, investiga túmulos sem identificação em uma escola indígena canadense.
Com essa seleção, será que Hollwood vai escolher um filme tão cru e pessoal sobre uma visão palestina da repressão israelense? No Bafta, chamado de Oscar Britânico, perdeu para documentário sobre uma tragédia americana, a trajetória de Christopher Reeve como Super-homem. Mas a principal pergunta parece outra: caso Sem Chão vença, será que isso dirá algo sobre o engajamento da classe artística contra o genocídio ou apenas contra a liberdade bélica de Donald Trump?
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