Logo O POVO+
História do Brasil pode ser contada pela perspectiva travesti
Reportagem Seriada

História do Brasil pode ser contada pela perspectiva travesti

Amara Moira busca transformar a memória LGBT, reconstruindo o que foi apagado e inventando novas possibilidades

História do Brasil pode ser contada pela perspectiva travesti

Amara Moira busca transformar a memória LGBT, reconstruindo o que foi apagado e inventando novas possibilidades
Tipo Notícia Por

 

 

Como relembrar o passado da comunidade LGBTQIA+ se fizeram de tudo para apagá-lo? A escritora, doutora em Teoria e Crítica Literária pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e ativista travesti Amara Moira embarca no desafio de reconstruir a memória dessa população por meio de registros históricos e da literatura.

Como coordenadora de exposições e programação cultural do Museu da Diversidade Sexual de São Paulo, Amara procura mostrar que a dissidência de gênero e sexualidade está presente na sociedade brasileira há centenas de anos, contada de forma deturpada desde o Brasil Colônia. A homoafetividade e a transgeneridade também podem ser lidas nas grandes obras literárias.

“Podemos contar a história do Brasil por uma perspectiva LGBTQIA+”, diz em entrevista exclusiva ao O POVO, no Museu da Imagem e do Som (MIS), em Fortaleza. Na visita, Amara conversou com um coletivo de educadoras trans do equipamento para trocar experiências. A escritora participou ainda de programação no Centro Cultural Banco do Nordeste Fortaleza (CCBNB), encerrando o “Abril para Leitura 2024".

Amara Moira, escritora, professora, travesti, doutora em teoria e crítica literária(Foto: FÁBIO LIMA)
Foto: FÁBIO LIMA Amara Moira, escritora, professora, travesti, doutora em teoria e crítica literária

Na própria obra, Amara costura relatos autobiográficos da experiência como trabalhadora sexual no livro “E se eu fosse puta”, publicado em 2016. Uma nova edição atualizada chegou ao público em 2023. A doutora trabalha ainda na publicação de um livro ficcional: “Neca”. Nele, os relatos da personagem principal foram escritos em pajubá, dialeto criado a partir da fusão do português com línguas de origem africana e utilizado pela comunidade LGBT.

“Sinto que a sociedade ainda está muito viciada em cobrar de nós experiências autobiográficas, mas aos poucos está descobrindo que pode se beneficiar muito do nosso poder imaginativo e criativo”, afirma Amara.


 

O POVO - Você se apresenta no perfil do Instagram como travesti putafeminista. O que quer dizer essa identidade para você?

Amara Moira - Ainda hoje a palavra travesti sofre muito estigma no Brasil, as pessoas preferem não utilizar achando que é preconceituosa ou ofensiva. Não entendem que essa palavra foi adotada pela comunidade, que se vê, se reconhece e se reivindica como travesti. O movimento social da letra T começa com o movimento de travestis nos anos 90. Então, essa palavra tem muita história para mim, para nós, e por isso eu faço tanta questão de me colocar como travesti, e não com mulher trans, por exemplo. Travesti é uma identidade mais marcadamente brasileira. A mulher trans já é algo que transcende fronteiras. Então, por isso travesti.

Putafeminista tem que ver o fato de que eu sou feminista, mas eu sou uma feminista que quer estar atenta às demandas e às reivindicações de um grupo específico, que é o grupo das trabalhadoras sexuais. Porque quando a gente pensa na história travesti no Brasil, a gente vai perceber que se eu estou aqui hoje é porque gerações de figuras que vieram antes de mim conseguiram viabilizar suas existências a partir do trabalho sexual.

Não tô dizendo que eu vou glamourizar e dizer "nossa, prostituição é ótimo, venham fazer". A ideia não é essa, é entender que esse trabalho teve e tem um papel crucial na história das travestis brasileiras

Estamos falando de 100 anos atrás, quando já tem os primeiros artigos falando sobre a constituição de uma comunidade de travestis que consegue, contra tudo e contra todos, se bancar a partir do dinheiro do trabalho sexual. São expulsas de casa, preteridas no mercado de trabalho formal, muitas vezes não conseguindo terminar os estudos, violentadas no espaço público e mesmo assim conseguiam se bancar a partir do trabalho sexual. Se a gente fosse esperar a sociedade começar a ser um pouco mais acolhedora, a gente talvez não estaria existindo até hoje.

Foram utilizando o trabalho sexual como uma ferramenta de ocupação da sociedade, de transformação das possibilidades de existir. Por isso para mim é tão importante me colocar como putafeminista. Sim, eu quero ser uma feminista, mas eu quero ser uma feminista que sabe ouvir trabalhadoras sexuais. Não tô dizendo que eu vou glamourizar e dizer "nossa, prostituição é ótimo, venham fazer". A ideia não é essa, é entender que esse trabalho teve e tem um papel crucial na história das travestis brasileiras e eu quero construir um feminismo que saiba reconhecer isso, que saiba dialogar com essa população.

OP - Falando sobre esse termo putafeminista, eu queria que você falasse um pouco como foi a experiência de escrever o seu livro "E se eu fosse puta" ou “pura”, como vem em algumas edições.

Amara - Acho que eu tenho uma cabeça meio de escritora, sempre quis ser escritora e fui exercitando isso aos poucos. E esse foi um livro que foi nascendo, não foi algo planejado. Eu lembro que quando eu começo a minha transição em 2014, 10 anos atrás, eu tinha um medo muito grande.

Eu estava fazendo doutorado na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e tinha muito medo de me ver tendo que abandonar tudo que eu tava construindo até então, toda a minha vida ali, meus estudos, relação familiar, com os amigos, e ter que recomeçar do zero a partir da prostituição. Tinha muito medo disso e por isso fui jogando mais pra frente até o momento em que eu já tinha como me bancar. No doutorado eu tinha uma bolsa de estudos de quatro anos, não era uma coisa muito suntuosa, né? A gente sabe como é ser estudante no Brasil. Mas se desse algum problema, eu tinha como me bancar.

Quando eu começo a minha transição, me aproximo dos movimentos sociais. Até aquele momento, eu era muito fechada em mim, não conseguia participar muito de movimentos, para mim era difícil ainda me articular com o coletivo. Só que a transição me faz perceber que é preciso estar com o coletivo e somar forças. Então, eu começo a estar junto, a me aproximar de outras travestis, a conhecer as histórias que elas viviam. Começo a visitá-las, a gente vai lá tomar uma cerveja no ambiente de trabalho.

Eu começo a frequentar aquele espaço da prostituição e olhar pra ele de uma outra perspectiva. Não mais como um lugar assustador que poderiam me empurrar para lá a qualquer momento, mas como um espaço de resistência, onde vai se criando toda uma cultura à margem da sociedade, uma cultura própria e rica. Um espaço de acolhimento. Quando todo o restante da sociedade de alguma forma volta as costas para nós, somos nós que vamos nos acolhendo. Aquele era um espaço onde os homens podiam me desejar, podiam falar que eu era bonita, minhas amigas podiam dizer também que eu era bonita.

Amara Moira,  escreveu primeiro livro sobre o mundo da prostituição
Amara Moira, escreveu primeiro livro sobre o mundo da prostituição Crédito: FÁBIO LIMA

Acho que eu fui criando outra relação com isso. E em determinado momento elas me perguntam: "você não quer fazer um programa para ver como é? Ver se você gosta". E eu tava ali meio receosa, achava que ninguém ia me querer, porque o corpo delas era todo feito, com silicone, né? Será que vai ter lugar pra mim? E um dia eu fui testar. E aí começa um momento de grandes descobertas.

Aprender a lidar com esse corpo do outro, com esses desejos do outro, com esse outro que paga para ter acesso a um serviço, paga para ter acesso ao meu corpo também. Começo a conhecer esses bastidores da prostituição, da profissão mais mal falada do mundo, como trago no livro, e a sentir vontade de escrever sobre essas coisas que eu estava vendo e vivendo naquele espaço.

Começa como um blog. Eu passava a noite com as minhas amigas e quando eu voltava de ônibus, de madrugada, ia rascunhando o texto no celular com algumas palavras que eu lembrava que tinha acontecido, o que o cliente tinha dito. Eu tinha um bloco de notas onde eu fazia pequenas anotações para lembrar depois. Postava no blog e deixava lá, tocava a vida. Depois de um ano e meio fazendo essas postagens, comecei a querer organizar esse material pensando já, quem sabe, em transformar num livro.

Curiosamente, nesse mesmo momento, uma editora LGBT estava surgindo. Tinha um livro publicado, só. Me procurou e perguntou se eu não gostaria de publicar por eles e eu achei o máximo. Só que eu tinha três meses para transformar tudo aquilo num livro. Eu queria ter um tempo grande, um ano, dois anos, queria ficar brincando, eu não estava com pressa, mas eles vieram com essa demanda e eu falei "tá bom, vamos fazer acontecer".

Acho que a ideia foi um pouco essa, um livro que foi surgindo híbrido, nesse formato meio online, de redes sociais e blogs, e depois reescrito para ter um formato livro. Um texto que tinha um perfil mais militante no blog e que depois eu quis dar um caráter mais literário. Não abrindo mão da coisa vivida, da autobiografia, mas com um acabamento mais sofisticado com a linguagem.

Escrever sobre tudo aquilo era tanto uma forma de me conhecer melhor, quanto também fazer com que a sociedade pudesse ter uma visão diferente sobre essa figura que habita as noites, as ruas e as calçadas. Aquela figura tão atacada, tão estigmatizada. Eu queria que conseguissem se colocar no lugar dessa figura e entender os dilemas que ela vive, as questões que ela vive quando está ocupando aquele espaço que todas as cidades tem.

OP - O livro já está na terceira edição. Por que você sentiu necessidade de lançar novamente e o que você mudou em cada versão?

Amara - Muita coisa foi mudando. Foi passando por diversas editoras. Primeiro foi uma editora pequena, na segunda edição essa editora já tinha sido comprada por uma outra grande editora com mais recursos. Só que nessa passagem o arquivo original se perdeu. Eu tinha o rascunho e reescrevi o texto. Só que eu já não sabia mais se tava diferente. Até hoje ainda não parei para confrontar a primeira com a segunda edição. Eu praticamente fiz novamente o trabalho.

Acho que tinha algumas algumas formas de escrever da primeira edição que me irritavam, que eu já tinha mudado em dois anos. Em 2016 foi a primeira edição e em 2018 saiu a segunda. Pensei "isso aqui já não é mais a minha cara". Algumas mudanças foram de perspectiva mesmo.

Tudo que não pode ser dito, tudo que não pode ser pedido para ninguém, que você não pode conversar com seus amigos, pai, mãe, companheira, companheiro, muitas vezes vai ser jogado nas costas da trabalhadora sexual.

Na primeira edição, eu queria criar uma imagem da prostituta como boazinha, lembro que tem uma citação lá comparando as prostitutas com Jesus Cristo. Essa figura bondosa, caridosa, que está lá para deixar a sociedade de pé. Para a sociedade não surtar, ela vai lidar com as demandas reprimidas.

Tudo que não pode ser dito, tudo que não pode ser pedido para ninguém, que você não pode conversar com seus amigos, pai, mãe, companheira, companheiro, muitas vezes vai ser jogado nas costas da trabalhadora sexual. A gente dá conta de toda essa demanda reprimida da sociedade, de uma sociedade que deseja muito sexo e não sabe falar sobre sexo. E a princípio tinha colocado como essa figura boazinha (risos).

Depois eu mudei um pouco, não tem nada de Jesus Cristo aqui, não. A gente é humana como todo mundo, não é Madre Teresa de Calcutá, não. Mas eu acho que a grande mudança mesmo veio nessa nova edição, na capa já. A capa original era uma foto de estúdio com maquiagem profissional, era algo desconectado do que eu estava de fato trazendo no texto. O texto estava falando sobre uma realidade de prostituição de rua, de valores baratos, que não tinha esse glamour do estúdio fotográfico.

Nessa nova edição, o que a gente fez foi pegar uma foto precária que eu tinha, de pouquíssima qualidade e que fizeram um milagre para estar apresentável numa capa de livro. É uma das poucas fotos que eu tirei na rua mesmo. Uma grande companheira lá de Campinas, do Jardim Itatinga, onde eu escrevi “E se eu fosse puta”, tirou minha nos primeiros dias de rua, acho que foi o primeiro dia.

Eu lembro que esse vestido é da minha amiga e ela tinha me emprestado naquela noite porque falou que a roupa que eu estava usando não tinha nada a ver com a rua. Ela falou "essa aqui é a cara do ofício, essa vai te dar axé". Ela me deu aquela roupa e eu fiquei super desconfortável, porque mostrava a calcinha embaixo e se eu puxasse para baixo, meu peito caía para fora (risos). Era terrível, eu não estava acostumada a usar uma roupa tão curta.

Essa foto já na capa dialoga com o texto de uma forma que as outras, não. Só que no texto, dentro desse esforço de eu querer que a sociedade respeite travestis, trate a gente de uma maneira melhor e que seja mais empática com trabalhadoras sexuais, eu também tentei construir uma história em que eu tinha receio de colocar minhas contradições.

Às vezes, o cliente me tratava mal e eu chorava, voltava para casa triste. Mas na semana seguinte, se ele me ligasse, a gente estava se vendo de novo. Tinham microviolências que aconteciam e que acho que dramatizei demais, querendo justamente mostrar a realidade que a gente enfrenta, que é muito complicada, muito problemática, difícil. E é mesmo!

Só que eu acho que também eu carreguei muito a tinta para esse lugar do pesado e deixei de lado todo um outro aspecto de coisas que eu também vivi lá. De prazer, de descobertas, dessa construção de um coletivo, de me sentir parte de um grupo. E acho que nessa nova edição eu fiz pequenos ajustes para mostrar mais toda essa gama de sentimentos, sensações e experiências contraditórias que eu vivi.

OP - Você está como coordenadora do Museu da Diversidade, em São Paulo. Como você analisa os desafios de preservar a memória e a história LGBTQIA+, mas principalmente de trans e travestis?

Amara - A gente vive num país onde já existiu uma legislação, a mais duradoura que teve, que foram as Ordenações Filipinas e as Ordenações Manuelinas. Eram compilados jurídicos de Portugal que vigoraram aqui durante praticamente todo o Brasil Colônia e parte do Brasil Império e previam que pessoas condenadas por sodomia — e sodomitas são os antepassados da população LGBTQIA+ — deviam ser “queimados e feitos per fogo em pó” para que não haja memória da sua existência, do seu corpo, da sua sepultura, nada.

A gente tá falando de memória LGBT em um território que criou um dispositivo legal que permitia a fogueira para esse tipo de pessoa, para não existir sequer registro ou vestígio da existência, é um desafio. A gente muitas vezes vai ter que escavar nas cinzas, nesses rastros, e vai encontrando coisas muito preciosas. Dolorosas e preciosas ao mesmo tempo.

LGBT parece que é uma coisa de agora, uma moda importada de outros países, só que a gente vai para os registros da Inquisição. A Inquisição veio para o Brasil em várias oportunidades e o segundo crime mais perseguido era justamente sodomia, só perdia para heresia. E a presença da sodomia na sociedade brasileira durante a colonização era algo que você pensa "meu Deus, como esse lugar era tão bicha, tão LGBT" (risos).

Tinha um dispositivo da Inquisição que era assim: quando o inquisidor chegasse na cidade, ele estipulava um prazo de 30 dias para que você pudesse confessar todos os seus pecados para ele. Se você confessasse tudo, você seria perdoado. Só que era na presença de um escriba anotando tudo que você falasse. Não era uma confissão para um padre, com sigilo, era por escrito, mas isso seria perdoado. Se você não se confessasse e alguém te denunciasse ou a Inquisição descobrisse, você poderia ir para a fogueira.

Amara Moira,  escritora, doutora em teoria e crítica literária, mostra os registros da comunidade LGBTQ  no Brasil desde o período colonial
Amara Moira, escritora, doutora em teoria e crítica literária, mostra os registros da comunidade LGBTQ no Brasil desde o período colonial Crédito: FÁBIO LIMA

Isso criava um pânico que fazia com que chegasse um senhorzinho que falava "olha, eu tenho 50 anos hoje, mas quando eu tinha 15 anos eu dei para o meu vizinho" (risos). Um monte de casos assim. Às vezes era uma coisa pontual, uma experiência na infância, na adolescência, no começo da vida adulta e que depois o cara casou e seguiu a vida, nunca mais fez nada do tipo, mas ele lembrava ainda. Outras vezes é algo que atravessa a vida da pessoa, que fez não pontualmente, mas repetidamente em vários momentos da sua existência.

Vai ter casos de umas pessoas que tinham um borogodó, uma capacidade de seduzir. É o caso da Felipa de Souza. Uma mulher casada que seduziu um monte de outras mulheres casadas em Salvador, foi para cama com várias. Todas elas confessaram e denunciaram a Filipa e ela não foi se confessar, então foi condenada. Foi a primeira lésbica condenada pela inquisição no Brasil, em 1592. Foi chicoteada em praça pública e degredada para fora da capitania Baía de Todos os Santos perpetuamente. Só ela foi condenada, as outras mulheres com quem se envolveu não, porque entendiam que ela era o elemento desestabilizador.

A gente vai ter nesses registros da inquisição um outro Brasil, que não nos contam na aula de história. Um Brasil que tinha uma fixação com a perseguição de LGBTs e que vai exercer essa perseguição, mas acaba deixando rastros. Estudar memória e passado é trazer isso tudo à tona, é podermos contar uma outra história do Brasil, podermos contar a história do Brasil por uma perspectiva LGBTQIA+.

Acho que o desafio que tenho enquanto coordenadora no Museu da Diversidade Sexual é esse. Tentaram apagar nossa memória e agora a gente tem esse desafio de resgatar o que sobrou desta memória e, quando não for possível resgatar, inventar uma memória para nós. Também é isso, se apagaram a nossa memória, a gente tem todo o direito de imaginar um passado diferente. Um passado que também nos permite imaginar outros futuros, outro presente.

A gente é quem a gente foi, quem veio antes de nós e conhecer as histórias dessas figuras, que de forma pioneira e corajosa lutaram para poder existir, também nos dá uma outra dimensão do que a gente está fazendo aqui hoje. Eu gosto muito de estar lá trabalhando com esse resgate memorialístico.

OP - Como você analisa o papel de escritoras e escritores trans e travestis, como você, na tomada da narrativa sobre essa comunidade?

Amara - Muitas vezes querem fazer a gente acreditar que somos um problema. Se a gente deixasse de existir, as coisas ficariam melhores. A gente lembra sempre, por exemplo, de uma operação da Polícia Civil de São Paulo para combater o HIV, no boom da epidemia em 1987. Polícia querendo combater HIV, tudo errado, né? A forma como queriam combater HIV: prendendo travestis.

Achavam que a sociedade estaria mais segura sem as travestis. Nem conseguiam cogitar como a sociedade poderia ser mais segura para as travestis. A gente vivia num contexto de ausência completa de direitos. Durante a ditadura, existiram legislações que permitiam a prisão de travestis para averiguação. Viam uma travesti andando pela rua e podiam prendê-la para averiguar se ela tinha algum passado, algum crime.

Amara Moira participou de atividades artísticas no MIS e no BNB, em Fortaleza na última semana de abril de 2024(Foto: FÁBIO LIMA)
Foto: FÁBIO LIMA Amara Moira participou de atividades artísticas no MIS e no BNB, em Fortaleza na última semana de abril de 2024

A gente fala da ditadura como perseguição de militantes de esquerda e guerrilheiros, mas não fala dela como instituição que perseguiu avidamente a dissidência sexual e de gênero. É preciso que a gente escreva sobre isso, que conteste essas narrativas que se criaram de nós como um perigo, como uma ameaça, como algo que deveria deixar de existir.

É preciso que a gente faça com que as pessoas saibam toda a violência que já foi direcionada para os nossos corpos, e apesar de toda essa violência seguimos existindo e resistindo. Acho que a gente tá vivendo um novo momento agora, em que a gente consegue se colocar socialmente de uma forma mais plena.

Sinto que as violências cometidas contra nós já começam a ser sentidas com uma violência cometida contra toda a sociedade. Durante muito tempo, não era assim que era entendido, era perfeitamente naturalizado. Agora, quando cometem violências contra os nossos direitos, a gente vê que existe um clamor social. As pessoas se indignam. É algo que não acontecia.

Isso acabou fazendo com que a gente conseguisse eleger nossas primeiras representantes na política institucional. A gente está conseguindo também se colocar como referências de pensamento, as universidades estão lutando para que aumente a presença de pessoas trans lá, e não é porque são boazinhas, é porque entendem que aquele espaço ganha se aprender a conviver com os grupos mais diversos possíveis

Estamos vendo também uma presença maior no mercado de trabalho formal. Temos cantoras, artistas, escritoras. Vamos nos acostumando com um mundo que está aprendendo a lidar com as nossas existências. Ainda estamos no começo dessa mudança, espero que a gente avance.

Então, a gente vai começar a escrever através dessas memórias. Por enquanto, eu sinto que a sociedade ainda está muito viciada em cobrar de nós experiências autobiográficas, mas aos poucos ela está descobrindo também que pode se beneficiar muito do nosso poder imaginativo e criativo, que sempre está conectado a coisas que a gente viveu.

Teve um período em que o grosso das publicações trans eram autobiográficas, agora a gente está começando a ver publicações de um feitio mais ficcional, obras mais reflexivas, acadêmicas. A gente está diversificando a nossa presença no meio literário, mostrando que tem muita coisa para contribuir também em outras áreas do conhecimento.

OP - Você tem atuação na literatura, no ativismo sobre travestis, na defesa do trabalho sexual, na academia, em blog de futebol. Que espaço você quer ocupar e ainda não teve a oportunidade?

Amara - Acho que um grande sonho e que eu ainda não pude realizar é virar uma professora universitária. Eu queria muito ter um grupo de pesquisa e a gente tocar o terror. Criar um grupo de pesquisa de memória travesti brasileira, fuçar desde o começo da colonização, ditadura, época do Estado Novo varguista, poder encontrar obras de travestis e textos falando sobre nossas existências em muitos períodos do Brasil.

Eu falei nessa última resposta sobre as produções de autoria trans e travestis, mas eu gosto também muito de imaginar que existe uma importância da gente disputar as narrativas que foram feitas por pessoas que não são travestis, trans, nem LGBTs. A gente poder olhar para as obras mais tradicionais da literatura e também dar os nossos pitacos e propor perspectivas sobre essas obras. E a gente pode fazer isso desde obras menores que foram jogadas para escanteio, mas também disputar as grandes obras da literatura.

O “Grande Sertão: Veredas” é um caso clássico. Um romance que foi heterossexualizado, mas se você ler com cuidado, percebe que é um romance muito gay. E além de ser um romance muito gay, tem um personagem que a gente hoje poderia chamar de trans. Mas isso são coisas que a gente só percebe se olhar dessa perspectiva LGBT, porque por muito tempo esse aspecto foi negado.

Essa obra era tão importante que parecia que tínhamos que dar um jeito de colocar no trilho, e isso significa apagar o fato de que essa é uma obra muito transviada. Não podia ser uma grande obra se fosse uma obra transviada. Seria uma obra de nicho, com esse selo que limitaria o alcance e a importância que ela tem na sociedade. Espero que a gente esteja vivendo um momento que consiga lidar com essa obra sem ter que apagar o fato de que ela é uma obra transviada.

Saiba mais sobre Amara Moira 

O que você achou desse conteúdo?