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Patrícia Rezende: "80% dos alunos surdos não conseguem concluir o ensino médio"
Reportagem Seriada

Patrícia Rezende: "80% dos alunos surdos não conseguem concluir o ensino médio"

A pedagoga Patrícia Rezende, que participou de lutas históricas para a educação dos surdos, fala sobre políticas, identidade e direitos linguísticos

Patrícia Rezende: "80% dos alunos surdos não conseguem concluir o ensino médio"

A pedagoga Patrícia Rezende, que participou de lutas históricas para a educação dos surdos, fala sobre políticas, identidade e direitos linguísticos
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Língua, cultura e identidade são direitos pelos quais Patrícia Rezende e muitos outros surdos no Brasil lutam a cada dia, ação e respiro. Essas são batalhas que ela leva consigo sorridente, mas sem perder o espírito crítico. "Nada sobre nós sem nós", afirma, e com isso não pretende deixar que a maioria ouvinte insista em legislar sobre a comunidade surda, e calar — quem sabe — o que é ser surda no Brasil. 

Patrícia Rezende é referência nacional em direitos de surdos, entrevista para O POVO para Paginas Azuis.(Foto: AURÉLIO ALVES)
Foto: AURÉLIO ALVES Patrícia Rezende é referência nacional em direitos de surdos, entrevista para O POVO para Paginas Azuis.

Hoje, Patrícia Rezende é pedagoga de formação e pós-doutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), mas antes disso foi criança surda criada por família ouvinte. Até os 21 anos não teve contato com a comunidade surda e, até então, via a si mesma como defeito. Foi a partir daí que finalmente foi capaz de se reconhecer de forma linguística e cultural, de forma a construir a própria identidade como pessoa surda. E é exatamente esse direito, de estar entre pares dentro de uma comunidade com a qual divide língua, cultura e identidade, que norteia o engajamento político de Patrícia. 

Por isso, em 2020 e 2021, ela participou da articulação para inserir a Educação Bilíngue de Surdos na Lei Brasileira de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB). Segundo a lei, a Língua Brasileira de Sinais (libras) deve ser oferecida como primeira língua, e o português escrito, como segunda. A conquista legal foi responsável por emancipar o ensino de alunos surdos da modalidade de educação especial. Para Patrícia, essa é uma vitória que será lembrada por historiadores no próximo século, uma que reafirma a vontade dos surdos, e o seu papel como sujeitos e não objetos da sua própria história. 

O campo de batalha mais recente foi no início do ano, quando brigou pela manutenção da Diretoria de Políticas de Educação Bilíngue de Surdos (Dipebs), que havia sido extinta pelo Decreto de Estruturação Administrativa do Ministério da Educação. Ajudou, assim, a convencer o Governo Lula para manter a estrutura.

Atualmente, ela é professora associada e diretora de gabinete do Instituto Nacional de Educação de Surdos (Ines), órgão do Ministério da Educação. Ao O POVO, ela discorre sobre as conquistas e perspectivas da educação dos surdos no Brasil.

 

 

O POVO - De que forma a cultura e a comunidade surda participaram da construção da sua identidade?

Patrícia Rezende - Sou surda desde bebê, minha família é ouvinte. Na minha infância, tive contato com pares surdos, mas foi dentro da Clínica Verbo Tonal, onde não podíamos nos comunicar por língua de sinais. A sociedade tinha aquele olhar clínico, terapêutico, a medicalização da surdez. Eu me olhava como um déficit, um defeito, mas, aos 21 anos, comecei a conviver na comunidade surda. Foi como se eu imergisse em um mundo em que eu me identificava de forma linguística e cultural. Eu estava entre pares iguais a mim que faziam uso de língua de sinais, e militava pelos direitos linguísticos.

Patrícia Rezende foi criada em família ouvinte e só teve maior contato com a comunidade surda aos 21 anos(Foto: AURÉLIO ALVES)
Foto: AURÉLIO ALVES Patrícia Rezende foi criada em família ouvinte e só teve maior contato com a comunidade surda aos 21 anos

Foi assim que eu pude constituir a minha identidade como uma pessoa surda, já que antes me considerava como “deficiente de audição”. Somente ao começar a conviver na comunidade linguística, o mundo se abriu a mim e pude me enxergar como pessoa surda, que vive a língua de sinais e a cultura surda — que são perspectivas diferentes dos que veem a surdez como deficiência.

A minha identidade surda me permite ser empoderada e empoderar meus e minhas pares para uma luta pela bandeira da Educação Bilíngue de Surdos pelo Brasil afora.

 

O POVO - Atualmente a surdez é vista mais como uma doença do que como uma identidade?

Patrícia - Sim. Lamentavelmente, é. Essa visão da surdez como doença, como patologia. Eu não sou contra os que preconizam as parafernálias do implante coclear. O que estou alertando é que os responsáveis por estas parafernálias recomendam e proíbem que as crianças surdas façam uso da língua de sinais e da cultura surda. As línguas de sinais são direitos linguísticos que as crianças surdas precisam ter desde a mais tenra idade. Estes direitos linguísticos são o básico e o implante coclear podia ser apenas o complemento e não o principal a banir a criança de qualquer possibilidade de imergir na cultura surda e língua de sinais.

Em alguns países da Europa, 90% dos surdos são implantados; todavia, eles têm acesso à língua de sinais e têm a educação bilíngue desde pequenos. Não proíbem o surdo de exercerem a sua cidadania, a sua vida acadêmica e social e transitar por meio da língua de sinais, o que infelizmente ainda não acontece no Brasil.

A minha identidade surda me permite ser empoderada e empoderar meus e minhas pares para uma luta pela bandeira da Educação Bilíngue de Surdos pelo Brasil afora.

O POVO - Para você, a convivência entre alunos surdos nas escolas é benéfica para que eles se entenderem como surdos?

Patrícia - Sim. Óbvio que sim. Essa convivência entre pares é salutar e favorável. A minha experiência, desde a minha convivência na comunidade surda, traz essa ideia de paridade, mesmo. Estar entre pares realça a sua subjetividade e a sua intersubjetividade. Durante o curso de instrutor de libras, tive pela primeira vez o professor surdo, que foi muito marcante, foi uma referência, serviu de base para o meu ativismo pela qualidade de educação de surdos.

A Convenção sobre Direitos das Pessoas com Deficiência, da ONU, já exige que o Estado brasileiro facilite a constituição e formação da identidade linguística da comunidade surda. Isso é uma premissa basilar da convenção da ONU. Se não estivermos em comunidade surda, de que maneira nós vamos exercer a nossa cidadania e nossa identidade linguística? Não podemos nos dispersar e nem nos pulverizar.

Essa concepção de comunidade é no intuito de fortalecimento, de empoderamento entre os pares, significa uma ascensão, propicia uma maturidade tanto linguística, quanto cultural. Se eu estiver entre os meus pares, é possível a gente debater as coisas da vida, histórias do mundo, conteúdos de interesse da sociedade em língua de sinais. Desta forma, a gente consegue olhar de maneira positiva as questões surdas.

O sujeito surdo tem a sua língua visual, o gesto visual, calcada na língua de sinais. É uma modalidade de língua específica e também é uma língua ímpar diante da língua majoritária falada no Brasil. Por isto a importância das comunidades linguísticas para pessoas surdas.

As línguas de sinais e culturas surdas são premissas, são elementos transversais da educação que dialogam diretamente com a primeira língua, que é a língua de sinais, o que constitui e ajuda também na escrita da segunda língua, que é o português. Para o grande avanço em termos de cognitivos, linguísticos, é necessário estarmos na comunidade linguística, entre os pares surdos.

É importante ressaltar que a Convenção da ONU cita sobre constituição da identidade linguística da comunidade surda, e que nesta Convenção não diz sobre outras comunidades, como comunidade autista, comunidade cadeirante, comunidade Down, comunidade cega, não há essas terminologias. A língua em comum dessas pessoas com deficiência é a língua oral do português, e a das pessoas surdas, não.

O sujeito surdo tem a sua língua visual, o gesto visual, calcada na língua de sinais. É uma modalidade de língua específica e também é uma língua ímpar diante da língua majoritária falada no Brasil. Por isto a importância das comunidades linguísticas para pessoas surdas.

 

O POVO - Com uma melhora no campo da educação, outras demandas da comunidade surda vão ser mais bem atendidas?

Patrícia - A Diretoria de Políticas de Educação de Surdos (Dipebs) do Ministério da Educação vai precisar ter esta visão mais ampla no sistema, que vai precisar fazer parceria com o Ministério da Saúde porque o primeiro contato que a família vai ter, com o diagnóstico da surdez através do teste de orelhinha, é justamente na área de saúde. O Dipebs e o Mec precisam estar alinhados ao Ministério da Saúde para que façam ações para que bebês e crianças surdas possam ter uma educação bilíngue desde mais cedo possível. Só assim pode, sim, melhorar e avançar no que é necessário para melhor atendimento.

Mesmo diante de memórias mais difíceis, Patrícia não tirou o sorriso do rosto durante a entrevista(Foto: AURÉLIO ALVES)
Foto: AURÉLIO ALVES Mesmo diante de memórias mais difíceis, Patrícia não tirou o sorriso do rosto durante a entrevista

O POVO - O que significa a inserção da Educação Bilíngue de Surdos na Lei Brasileira de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) para você, como profissional da Pedagogia?

Patrícia - Significa um grande avanço pois não faz nenhum sentido a gente pensar na educação bilíngue de surdos vinculada a uma educação especial. Os surdos não carecem de uma educação especial. Existe uma modalidade e especificidade linguística diferente de uma educação especial.

Na educação especial, existem as questões de adaptações para cada segmento das pessoas com deficiência. Na abordagem bilíngue, não há necessidade de adaptações. A instrução ocorre por meio da língua de sinais.

A educação indígena é uma educação especial? Não. A educação do campo é uma educação especial? Não. Outras modalidades de educação a nível nacional são iguais. É preciso unificá-las? Não.

Patrícia Rezende é referência nacional em direitos de surdos.(Foto: AURÉLIO ALVES)
Foto: AURÉLIO ALVES Patrícia Rezende é referência nacional em direitos de surdos.

A educação bilíngue, ao se emancipar da modalidade de educação especial, preconiza uma especificidade linguística e valoriza essa especificidade. Além disso, colabora para uma curricularização para a educação de surdos e favorece, assim, uma inclusão de verdade, como uma inclusão linguística, não uma inclusão excludente.

Eu, como pedagoga, professora, pesquisadora, ativista, em minhas pesquisas fico extremamente preocupada e receosa com o tipo de educação que os surdos têm recebido. São inúmeras falhas, problemas diversos no sistema de ensino. A evasão é muito grande. A minha pesquisa focou nos dados do Inep, no censo escolar.

Conforme dados e números demonstrados pelo Inep, analisei que 80% dos alunos surdos não conseguem concluir o ensino médio, isso é um dado alarmante. Também não conseguem estar na faixa etária correta, já que 40% dos alunos surdos matriculados estão na educação de jovens e adultos (EJA) e não conseguem acompanhar no período correto.

Em evasão, será que ocorre o mesmo para ouvintes na educação de jovens e adultos que está na média de 7%? A gente sabe das condições familiares, socioeconômicas que fizeram estes ouvintes largarem a escola, mas e a questão dos surdos? Por que o dado de evasão dos alunos surdos no EJA é disparate em comparação aos dos alunos ouvintes do EJA? Os alunos surdos que estão matriculados no EJA não conseguiam encontrar espaços condizentes a peculiaridades linguísticas e culturais nas escolas na idade certa. O ensino que está sendo calcado no Brasil não atinge o objetivo.

Por isso lutamos pela modalidade de Educação Bilíngue de Surdos na LDB. Nós temos 80 doutores surdos e cerca de 250 mestres surdos nas áreas de educação, linguística e estudos da tradução, com especificidade na língua de sinais. Nada sobre nós sem nós. Nós temos a incumbência de prepararmos a educação que nós queremos e nós não precisamos da tutela da educação especial. Por isso, nós nos emancipamos.

 

O POVO - O que ainda precisa ser feito para garantir a participação efetiva das pessoas surdas no ensino superior e no meio acadêmico?

Patrícia - Nosso maior compromisso é pensarmos o MEC (Ministério da Educação) como um grande responsável. O MEC precisa acatar e reconhecer de fato, na prática, e fazer os ajustes necessários para que a educação bilíngue de surdos aconteça. Pois ainda são poucos surdos chegando no ensino superior. Os surdos precisam de equidade e dentro de uma perspectiva bilíngue, as pessoas recebem essa equidade. Não adianta nós pensarmos em incluir surdos e ouvintes em uma mesma escola, onde a língua portuguesa é uma língua soberana. Eles possuem línguas diferentes. Não adianta.

Essa inclusão excludente já é comprovadamente ineficaz. A formação, no ambiente acadêmico superior, ainda é um desafio. Nós precisamos ter uma resolução sobre política linguística.

Não adianta apenas locar um tradutor intérprete em uma sala de aula. O intérprete não é uma referência para os surdos. O professor, sim, é uma referência no processo de ensino e aprendizagem.

Em uma proposta bilíngue, o professor vai ter que levar a língua à instrução, ou seja, ele vai dar a sua aula em língua de sinais. Os surdos precisam apreender conteúdos, como história, matemática, ciências, português com instrução em língua de sinais, não precisamos de adaptações ou resumo das aulas, precisamos aprender plenamente em igualdade aos ouvintes, o que nos diferencia é a língua.

Se nós avançarmos em políticas linguísticas, com certeza o sistema de educação estará favorável e fértil para que surdos avancem e possuam ascensão em diversos níveis acadêmicos, não só no ensino superior.

A entrevista foi realizada no Centro de Humanidades da Uece, durante visita de Patrícia(Foto: AURÉLIO ALVES)
Foto: AURÉLIO ALVES A entrevista foi realizada no Centro de Humanidades da Uece, durante visita de Patrícia

O POVO - Para a inserção de pessoas surdas no mercado de trabalho, quais são os pontos mais importantes a serem destacados?

Patrícia - Lamentavelmente, a maioria dos surdos são subalternizados e colocados em funções que não reconhecem a sua formação. Não é produtivo trabalhar em ambientes insalubres ou em funções que não estão dialogando com a formação desses sujeitos surdos. Nós temos uma cota específica na lei, que é de 5%, na Lei de Cotas para pessoas com deficiência, mas colocam esses sujeitos surdos para funções e cargos totalmente braçais, no operacional, e não valorizam, por exemplo, o trabalho de um surdo com habilidades específicas e avançadas.

São poucos os surdos no nível superior em diversas áreas científicas. São pouquíssimos se compararmos, por exemplo, a outros segmentos. É um processo ainda a ser conquistado, nós avançarmos, mas acredito que, com mais surdos no nível acadêmico, a gente consiga ter exigências sociais maiores e eles possam lotar outros cargos de acordo com as suas necessidades e receber salários equivalentes.

Um apontamento é que, na educação de surdos, nós temos uma maioria de profissionais que são ouvintes. Nem todos são fluentes em língua de sinais. Nem todos possuem o know-how adequado para atuar. No Ices, o Instituto Cearense de Educação de Surdos, efetivamente só tem uma professora surda que é concursada. A nível nacional temos pouquíssimos professores surdos, para exemplificar.

Estou falando de professores de diferentes áreas acadêmicas, mas que tem que ter a língua de sinais como instrução. Eu penso também na educação infantil, nas disciplinas propedêuticas, como história e matemática, etc. Cadê os surdos nessas áreas? Há surdos se formando nessas áreas. Por que eles não estão sendo lotados e colocam ainda ouvintes nessas áreas, em locais e instituições de e para surdos?

 

O POVO - Quais políticas públicas, além da inclusão da educação bilíngue de surdos na LDB, representaram avanços para a comunidade surda nos últimos anos?

Patrícia - Nós já tivemos um grande avanço por conta da Lei de Libras, que é a Lei 10.436 de 2002, que já tem 21 anos. A partir da Lei de Libras, e do decreto 5626/2005, que regulamenta a Lei de Libras, nós tivemos cursos de pedagogia bilíngue, cursos de letras libras, as disciplinas de libras que são obrigatórias nas licenciaturas e nos cursos de fonoaudiologia. Foi um grande avanço, e a LDB veio para coroar todas as nossas conquistas ao longo dos 20 anos, trouxe-nos uma grande resistência, uma questão não só educacional mas política. Essa contextualização de marcos legais está alinhada.

Eu considero a inclusão da modalidade de Educação Bilíngue de Surdos na LDB como a maior vitória, mas nós precisamos ainda regulamentar essa lei com diretrizes de educação bilíngue de surdos a ser validada pelo Conselho Nacional de Educação para que seja um documento orientador para os Estados e os Municípios.

No discurso de posse, a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro discursou em libras no Parlatório do Palácio do Planalto.(Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)
Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil No discurso de posse, a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro discursou em libras no Parlatório do Palácio do Planalto.

Em 1º de janeiro de 2019 a então primeira-dama (Michelle Bolsonaro) fez um discurso em língua de sinais. Todos acreditavam que estava tudo bem. Era como se fosse uma encantadora de serpentes, mas, de verdade, aquilo não é o que nós preconizamos. Ela não foi uma salvadora ou uma super heroína. Nós já estávamos lutando há muito tempo pela educação que nós queríamos, e pelo reconhecimento da língua, por deliberações sociopolíticas. Aquele momento, de fato, foi uma cortina de fumaça.

No MEC nós temos pastas como a Dipebs, que é a Diretoria de Políticas de Educação Bilíngue de Surdos. A Dipebs é uma pasta que foi criada no governo Bolsonaro, mas nós, anteriormente ao governo Bolsonaro, já tínhamos um grupo de trabalho instituído pelo então Ministro de Educação, (Aloísio) Mercadante, em 2014 (Governo Dilma Rousseff), que fizemos um documento que é o Relatório sobre a Política Linguística de Educação Bilíngue – Língua Brasileira de Sinais e Língua Portuguesa, que foi elaborado e feito por pesquisadores surdos e ouvintes da área de Educação de Surdos no País, foi neste documento que pedimos desvinculação da educação especial.

Esse embate não é de agora e não foram louros para o presidente Bolsonaro nem para o seu governo. A própria Feneis, a Federação Nacional de Integração e Educação dos Surdos, fez essa solicitação no governo de transição entre Temer e Bolsonaro para que seja criado o Dipebs na organograma do MEC.

Para Patrícia, o maior feito recente da comunidade surda foi a articulação para inserir a Educação Bilíngue de Surdos na Lei Brasileira de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB)(Foto: AURÉLIO ALVES)
Foto: AURÉLIO ALVES Para Patrícia, o maior feito recente da comunidade surda foi a articulação para inserir a Educação Bilíngue de Surdos na Lei Brasileira de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB)

No dia 2 de janeiro, a Dipebs foi extinta por um decreto no atual governo Lula. Nós, surdos e surdas, não ficamos inertes, nos organizamos e nos mobilizamos nas redes sociais, na imprensa e cobrar dos governantes e parlamentares para que a nossa Dipebs volte a estrutura do MEC. Os surdos do Brasil inteiro ficaram apreensivos se iriam destruir a Dipebs, que foi uma conquista histórica. Ficou essa incógnita. Nós conseguimos, de fato, a permanência da Dipebs. Acredito que a Dipebs avance em ações e em projetos, na esteira da nova LDB.


O POVO - Que políticas estão sendo pensadas para a maior efetividade do ensino das pessoas surdas?

Patrícia - Políticas linguísticas, talvez sejam as palavras-chaves. Para que nós consigamos trabalhar desde a tenra idade, da educação infantil, perpassando a educação básica e consigamos lograr êxito no ensino médio, no ensino superior.

Pensando em educação infantil, os dados do Inep são alarmantes porque nós não temos ainda dados substanciais a respeito de quantitativos de crianças surdas e de como nós podemos ofertar uma educação infantil e básica de qualidade. Eu acredito que a educação, a gente pode pensar desde o diagnóstico da surdez com testes da orelhinha nas maternidades e hospitais.

FORTALEZA,CE, BRASIL, 05.04.2023: Patrícia Rezende, referência nacional em direitos de surdos, entrevista para Jornal O POVO para Paginas Azuis. (Foto: Aurélio Alves)(Foto: AURÉLIO ALVES)
Foto: AURÉLIO ALVES FORTALEZA,CE, BRASIL, 05.04.2023: Patrícia Rezende, referência nacional em direitos de surdos, entrevista para Jornal O POVO para Paginas Azuis. (Foto: Aurélio Alves)

O DataSUS que é um sistema de coleta de dados próprio do Ministério da Saúde e lá é possível sabermos o quantitativo de quantas crianças têm implantes cocleares, mas não tem o quantitativo de crianças identificadas com surdez por meio do teste da orelhinha. Se não há uma informação precisa, como podemos caminhar de educação infantil ao ensino superior de qualidade, garantindo os direitos linguísticos? Há ali uma lacuna a ser preenchida e é muito grave.

A medicalização da surdez é algo que precisa ser subvertido, porque precisamos entender que a surdez é uma diferença pela perspectiva da alteridade. Com a visão medicalizante da surdez, ao perceber que a criança é surda, vão querer violentar e implantar coclearmente as crianças em detrimento da língua de sinais e da cultura surda.

Patrícia Rezende

Muitas crianças não conseguem acessar uma educação de qualidade linguística por meio da libras por conta dessa grande influência medicalizante da surdez, a ideia do conserto, da falta, do déficit.

Com o implante coclear, as pesquisas mostram que o processo de escrita e de alfabetização é tardio e não se efetiva porque é um ouvido biônico. Não é como os ouvintes que nascem de forma natural, vão ter que passar por várias terapias de fala, então isso não é algo prazeroso, não é natural como ocorre com as pessoas que nascem ouvintes. Esse processo ainda precisa ser revertido. Condicionar a surdez como diferença, como alteridade.

O prejuízo que é ocasionado desde a maternidade, desde a criança nascer, com o teste da orelhinha, com certeza se reverbera como um efeito dominó em todas as práticas acadêmicas da educação básica ao ensino médio. Se nós não conseguirmos ainda reverter essa visão medicalizante, infelizmente não vamos ter aprovações e rendimentos satisfatórios na idade certa.

Quarenta por cento dos alunos surdos estão matriculados na educação de jovens e adultos. Eles começam nesta modalidade com 18 anos de idade. Com 18 anos. Isso é grave. Enquanto os ouvintes iniciam a EJA após 30 anos de idade.

 

O POVO - Para você, as demandas da comunidade surda têm representação suficiente no Legislativo?

Patrícia - Nós carecemos de mais representantes políticos no Congresso Nacional. A nível de Senado ou da Câmara dos Deputados, nós não temos um surdo deputado ou senador. Isso é uma realidade. A representatividade surda é imprescindível também na área política para que a gente consiga ter um protagonismo de fato e elevar as nossas causas ao nível político.

Se nós falarmos do PNE, do Plano Nacional de Educação, tem sim já nas suas metas a questão da educação bilíngue. A LBI também ressalta a questão, e agora com a LDB. É um caminho legal, salutar. A gente tem amadurecido, mas ainda precisa de representantes na área política.

FORTALEZA,CE, BRASIL, 05.04.2023: Patrícia Rezende, referência nacional em direitos de surdos, entrevista para Jornal O POVO para Paginas Azuis. (Foto: Aurélio Alves)(Foto: AURÉLIO ALVES)
Foto: AURÉLIO ALVES FORTALEZA,CE, BRASIL, 05.04.2023: Patrícia Rezende, referência nacional em direitos de surdos, entrevista para Jornal O POVO para Paginas Azuis. (Foto: Aurélio Alves)

Em 4 meses, nós conseguimos, de um projeto de lei, avançar a uma lei efetivamente. Foram 4 meses de discussões do projeto 4909/2021. Nesse período, até agosto de 2021, nós avançamos bruscamente e ganhamos tempo. A comunidade surda esteve articulada tanto no Senado como na Câmara dos Deputados, cobrando mais com uma entidade representativa forte, que é a Feneis, a Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos. Conseguimos aprovar a nova LDB.

De fato, tenho que reconhecer que nós, como surdos, elaboramos um documento e um projeto de lei que contrasta com os interesses da educação inclusivista. Ao chegar na Câmara dos Deputados e no Senado, nós tivemos muita resistência, porque eles não queriam aceitar, queriam retificar e fazer emendas. Nós não aceitamos. Nós pegamos essa bandeira e atingimos esse embate. Ficamos na vanguarda.

 

Patrícia Rezende

Foi muito árdua essa luta. A gente não baixou a guarda, continuamos e conseguimos.

Eu considero a maior vitória a nível nacional para os surdos essa oitava modalidade de língua da LDB, que é a modalidade de educação bilíngue de surdos. Se nós não tivéssemos ainda na LDB uma educação bilíngue de surdos, nós estaríamos caminhando a passos muito lentos.

Patrícia Rezende é atualmente chefe de gabinete da diretoria do Instituto Nacional de Educação de Surdos (Ines)(Foto: AURÉLIO ALVES)
Foto: AURÉLIO ALVES Patrícia Rezende é atualmente chefe de gabinete da diretoria do Instituto Nacional de Educação de Surdos (Ines)

O POVO - O que foi o Resistência Secreta?

Patrícia - O grupo foi criado no momento das eleições, em 2018, quando o (Fernando) Haddad foi candidato à presidência (pelo PT). Nós estávamos objetificando, ali, conquistar votos, incentivar a comunidade surda. Foi um período muito laborioso. A gente precisava combater as fake news e estava combatendo mesmo essa ciberviolência.

Os surdos de esquerda começaram a protagonizar esses espaços porque, infelizmente, nós tivemos uma divisão, os surdos de diversos nichos acreditando e sendo levados por esses factóides, essas fake news, as mentiras em grande massa.

Foi um momento muito importante também durante eleições de 2022, foi um marco histórico de resistência. Foi aquele movimento “ninguém solta a mão de ninguém”. A comunidade surda progressista, pensando nesse aspecto, conseguiu também se articular nas redes sociais. Muitas informações chegavam alteradas, com o intuito de deturpar e favorecer um candidato, mas a gente conseguiu, por esse meio, desvincular e também desmistificar as mentiras e as fake news.

O Instagram, que é uma rede social muito popular, tem muitas fake news, e também língua de sinais. Vocês pensam que é só a língua portuguesa, não, língua de sinais também. Os “surdos com Lula”, e “Fakenews em Libras” que são uma páginas do Instagram, têm combatido as fake news veemente. São publicações trazendo embates através da verdade.

FORTALEZA,CE, BRASIL, 05.04.2023: Patrícia Rezende, referência nacional em direitos de surdos, entrevista para Jornal O POVO para Paginas Azuis. (Foto: Aurélio Alves)(Foto: AURÉLIO ALVES)
Foto: AURÉLIO ALVES FORTALEZA,CE, BRASIL, 05.04.2023: Patrícia Rezende, referência nacional em direitos de surdos, entrevista para Jornal O POVO para Paginas Azuis. (Foto: Aurélio Alves)

O POVO - Nos seus estudos, você entende a diferença salarial como um problema que impacta também a educação?

Patrícia - Eu acredito que não tenha essa relação diretamente com a disparidade salarial, mas é a carência de profissionais surdos que têm uma formação acadêmica superior específica para adentrar no mercado de trabalho.

Não é só uma questão de disparidade salarial, é uma questão de formação para que eles consigam adentrar esse campo universitário acadêmico superior. Talvez uma das raízes do problema se encontre aí.

Acontece que os surdos, às vezes, ao entrar no mercado de trabalho, não ascendem em cargos, ficam estagnados numa mesma função, enquanto os ouvintes vão trabalhando por anos e vão conseguindo avançar dentro das empresas. Surdos, não. Isso também é algo para que eu chamo atenção. Por que os surdos não estão ascendendo nas empresas e no mercado de trabalho e os ouvintes conseguem aumentos salariais e gratificações?

 

 

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