Em um mundo instagramável, em que os negócios, como os restaurantes, e as profissões entraram nesse clique de celulares, o chef de cozinha Alex Atala reflete que é importante se modernizar, acompanhar as evoluções, mas que não se pode deixar a tradição totalmente de lado.
Porém, outro viés dessa panela é que a internet pode promover chefes apenas pela fama. E é aí que o cozinheiro acredita que o Brasil precisa "promover chefes de verdade", sem deixar de louvar o que a web e os programas de TV fizeram para exaltar a profissão.
E em uma sociedade em que as crianças não sabem mais diferenciar o frango do pedaço que ele come no prato, Atala acrescenta que os produtores de verdade e o que eles geram no enriquecimento da alimentação também entram nesse bojo da necessidade do que precisa ser promovido no País. Para ele, "O Brasil não sabe o que é o Brasil ainda."
Com duas estrelas do Guia Michelin mantidas neste ano, mas sem vislumbrar a chance de conseguir ser o melhor chef do mundo por, segundo ele, ter brigado com o editor do prêmio, o chef não entende como a nova geração pode não olhar para essas honrarias como meta na gastronomia.
"A estrela Michelin... Eu vou trabalhar o resto da vida por ela sim, eu vou sonhar com ela, eu vou brigar por ela", complementa.
Sobre o conceito de alta gastronomia, a quem ela serve e o da desigualdade no acesso à cozinha e aos alimentos, o chef acredita que a cozinha vai ser igual no dia que todo mundo tiver comida. "Não importa a qualidade da comida, importa ter o que comer."
E foi no Dia Mundial da Gastronomia Sustentável, celebrado no dia 18 de junho, que Atala esteve em Fortaleza (Ceará), no restaurante Mangue Azul, em evento em parceria com a 3Corações. Ao menu realizado no dia, trouxe harmonizações com café, trabalhado junto a outros cozinheiros, e foi recebido pelo proprietário do restaurante, André Bichucher.
No currículo, conta com passagens por restaurantes na Bélgica, França e na Itália. Mas tem na sua origem família palestina, e o bairro de nascença (1968) Mooca, em São Paulo.
O profissional da gastronomia ainda foi eleito chef do ano pelo Guia Quatro Rodas em 2006, e o seu restaurante, D.O.M., foi considerado o sexto melhor restaurante do mundo e o melhor da América do Sul, pela lista World's 50 Best Restaurants de 2013.
Agora, ele volta seu fôlego para investir na indústria hoteleira. No Ceará, foi até convidado a conhecer e visitar Jericoacoara e Icaraizinho de Amontada, a 282,91 km e a 197,1 km da capital cearense, respectivamente.
O POVO - Aos 19 anos foi o início da sua carreira como chef na Bélgica. A cozinha o forjou à imagem do que vemos em documentários como o Chef's Table, em uma cozinha muito rígida, muito árida?
Alex Atala - Eu acho que eu fui forjado mesmo. A gente brinca, fala que os cozinheiros da minha geração eram no fogo, na água fria e na pancada, igual a forja de faca, de martelo, dessas coisas... Que é assim que se faz a forja do aço. Graças a Deus não acontece mais hoje.
Hoje, a gente tem uma cozinha muito mais respeitosa, e aprendeu que, uma equipe em harmonia, cozinha e entrega muito melhor do que uma equipe estressada, amedrontada. Eu precisava talvez passar por esse processo.
O POVO - Mas o que passou? Pode dar exemplos?
Atala - Eu não posso falar que eu fui humilhado, não era esse o caso, era uma disciplina rígida. Acordar todo dia, estar impecável, manter uma geladeira limpa, organizada, não desperdiçar produtos, nos preparar bem para fazer um bom serviço, uma margem de erro muito pequena. Então as pessoas glamourizam, imaginando que a cozinha é pancada. Essa pancada a qual eu me refiro não era fisicamente, era psicológica, de ter que entregar o seu melhor o dia inteiro.
O POVO - Eram muitos gritos?
Atala - Tinha mais do que tem hoje, mas não era assim. Sendo bastante claro, a arte imita a vida... Não é assim que se fala? Nem tudo que acontece no livro, por mais fiel que ele tente ser, nunca será um filme fiel à realidade... É uma dramaturgia.
O que muita gente conhece da cozinha é uma dramaturgia. Talvez existam lugares onde as pessoas gritem e se agridam, mas não foi o que eu vivi. O que eu vivi foi disciplina, outra coisa, não tinha violência física, tinha essa coisa de entregar o seu melhor, de trabalhar por muitas horas.
O POVO - Como era a rotina? Acordava que horas?
Atala - Depende, eu morei em três lugares. Mas eu prefiro falar como é hoje. Eu ainda acordo às 6h, faço um pouquinho de esporte, vou para os restaurantes cedo e volto para casa tarde da noite, nunca foi diferente.
O que mudou foi que, em algum momento da minha vida, até os anos de 1988 a 1999 eu fui um cozinheiro assalariado. A partir de outro momento eu começo a ser um empreendedor. E com isso a gente vai reconhecendo a beleza e a tristeza dos dois lados. Não tem um lado legal, os dois lados são sofridos, os dois lados são difíceis.
E a minha vida é 100% devotada para o restaurante. Já estou mais velho hoje. Hoje procuro uma rotina mais equilibrada, menos saturada. Eu também sou muito orgulhoso, pois eu também consegui formar uma boa equipe. Isso é fundamental.
Seria quase não inteligente se eu estivesse trabalhando hoje igual eu trabalhava há 25 anos, quando a gente inaugurou. Esse é um caminho que a gente tem muito orgulho de evoluir e de formar pessoas.
O POVO - Como o senhor contribuiu para mudar o mercado de trabalho na cozinha?
Atala - A gente continua sendo muito exigente. Eu também falo que o chef tem que ser exigente sem ser chato, e a gente continua errando.
Acho que antigamente a gente era muito mais chato, a pressão psicológica era maior, hoje não. A expectativa do cliente também é muito alta, então a gente vive uma pressão eterna e essa pressão não mudou, o que mudou foi a forma da gente lidar com ela.
O POVO - Mas quando mudou isso? Quando percebeu que era melhor seguir por determinado caminho e não como aprendeu?
Atala - Eu tenho um subchef que é o Geovane (Carneiro) é baiano, de Conceição do Coité (224,6 km de Salvador), aquele clássico imigrante nordestino que chegou a São Paulo com pouca escolaridade, para fazer um trabalho braçal, e nós nos encontramos na cozinha.
Eu muito rápido identifiquei que o Geovane era um cara fora da curva, e eu tenho muito orgulho de falar que ele só trabalhou comigo. Ele é um cara que eu forjei, do zero. Agora ele é um cara que, mais do que eu forjei ele, ele criou um novo Alex dentro de mim. Porque o Geovane é quase um Buda, que ele quase não fala.
E já são 27 quase 28 anos trabalhando juntos, e o D.O.M (restaurante de Atala) completou 25 anos. Já o Geovane completou 49. Então, ele passou mais da metade da vida dele na cozinha.
Tem uma história dele que é a estabilidade, que é a calma, que é a constância, que é ser sem pressa, mas sem parar, é cadenciado, eterno, é linear, que o Geovane trouxe muito para mim.
Eu sempre fui mais enérgico, até por causa da minha formação, eu era mais enérgico, queria sempre levar a cozinha mais com uma mão de ferro e talvez repetindo erros do passado, e acabei aprendendo um novo jeito com um cara que estava aprendendo a cozinhar comigo.
O POVO - O que se escuta hoje de jovens chefes é que a ambição da profissão tem mudado um pouco e que eles não desejam tanto a estrela Michelin. Então como foi para o senhor ganhar a estrela Michelin e como enxerga essa mudança?
Atala - Eu não concordo com essa mudança. Eu tenho 56 anos e eu comecei a cozinhar em uma época que não tinha internet, só existiam duas coisas: o Guia Michelin e o Gault&Millau que continua existindo, mas não no Brasil.
O Brasil foi o primeiro país da América Latina a ter estrelas Michelin, e isso não faz tanto tempo, faz menos de dez anos. E eu tive a sorte de começar com duas estrelas e manter essas duas estrelas até hoje. Para a minha geração, ter as estrelas Michelin ainda é o meu grande sonho.
Eu ganhei muitos, muitos prêmios, e tem duas coisas que eu ainda queria muito ganhar, que é a terceira estrela Michelin e o prêmio de melhor chef do mundo, que eu já sei que não vou ganhar.
Eu não vou ganhar, porque eu briguei com o editor. A estrela Michelin... Eu vou trabalhar o resto da vida por ela sim, eu vou sonhar com ela, eu vou brigar por ela. E eu acho que ela é diferente, pois quando você está nessas listas, as listas atendem uma demanda do mercado hoje, da internet hoje, que é todo dia uma novidade.
Michelin é a história da cozinha, Michelin nos ensinou que a pessoa desconhecida e a celebridade, o pobre e o rico têm que comer do mesmo jeito. Então a gente precisa dessa estabilidade, que eles mantêm por mais de 100 anos.
Então, sim, para a minha geração, pelo menos essa chef que falou, talvez, não se interesse pela estrela Michelin. Eu não concordo. Eu acho que é uma fala um pouco pessoal, e o Michelin como tudo na vida é um modelo antigo, e ele está se reatualizando, a imprensa se reatualizou, o jornal impresso se reatualizou, nós passamos por esses processos mas eles não perdem o seu valor.
Eu nunca vou deixar de sonhar com um livro escrito em papel, eu nunca não vou gostar de ver uma revista impressa, eu nunca vou deixar de gostar de ler uma carta escrita à mão. E eu acho que existe uma beleza, um romance que não é classicismo, mas talvez essa geração ainda não chegou lá, mas um dia chegará.
O POVO - Qual o menu que te levará a ter essa terceira estrela? O que vislumbra?
Atala - Eu vislumbro um restaurante maduro, onde a melhor comida não sou eu que faço, mas que é a minha equipe que me entrega, e uma equipe de sala, de cozinha, de administração, de recursos humanos, de manutenção de compras.
O restaurante não é um chef. O restaurante é um conjunto e essa terceira estrela vem de um conjunto, e eu acho que vou merecer essa terceira estrela, no dia que minha equipe merecer essa terceira estrela.
Esse ano acabou de sair, e eu já ganhei duas, então, talvez, no ano que vem. Mas o mais importante do que ganhar é não perder, e é essa constância que a gente busca.
Então, assim, essa terceira estrela é algo que eu queria ganhar muito, se eu pudesse eu queria ter ganhado ela ontem, mas o que eu vou trabalhar muito é para nunca perder as duas.
O POVO - E como vê essa geração de agora, de chefes instagramáveis e restaurantes instagramáveis?
Atala - Como todas as modas, sempre tem o lado positivo e tem o lado negativo, e eu vou sempre tentar focar no lado positivo. Na minha geração, você só tinha um jeito de aprender, cambaleando e pagando muito caro por livros importados.
Então o recurso técnico era um recurso caro e de difícil acesso, para minha geração. Para essa geração, através do Instagram, da internet, esses meninos tecnicamente subiram demais, talvez falte a eles experiência, mas eles são jovens, eles não têm que ter experiência, eu também não tinha.
Então assim, eu acho que as pessoas reclamam demais e compreendem de menos, eu sou entusiasta, eu vou dizer para você o seguinte, eu posso afirmar categoricamente que quando eu voltei para o Brasil, eu encontrei pouca gente que cozinhava bem, e as poucas pessoas que cozinhava bem, que eu respeitava, ora estavam no Rio, ou em São Paulo, e parecia um vácuo no resto do Brasil.
Hoje, de Norte ao Sul do Brasil, você tem bons cozinheiros, bons produtos. Então eu vou olhar a internet ou o MasterChef, ou o que quiser falar, sempre com bons olhos, por mais que algumas pessoas, talvez reacionárias, tentando frear um crescimento de uma nova geração de um jeito que não é o nosso, que não foi o nosso, eu tenho que torcer por essa geração nova.
E se não é do jeito que eu sonhei, que pelo menos eu saiba adaptar a minha sabedoria, o meu saber, para o novo. A verdade, ela é atemporal, porque ela se adapta aos novos momentos, e isso que eu acho que o cozinheiro deve saber fazer, a sabedoria ela é uma ferramenta para sempre, saber cozinhar em qualquer lugar do mundo, da vida, de qualquer tempo. E é isso que eu preciso passar para eles.
Como eu não cozinho como meu avô cozinhava, ou como meu bisavô cozinhava, ou como os homens das pedras, eles não têm que cozinhar que nem eu. Talvez usando os mesmos equipamentos, as mesmas tendências, mas eu não posso estar fechado a elas.
O POVO - Como moderniza na sua cozinha?
Atala - Uma vez eu estava no Japão. Estava o David Chang (chef norte-americano e fundador do restaurante Momofuku) e o Anthony Bourdain (chef, escritor, e apresentador de televisão norte-americano, que faleceu em junho de 2018), até aparece no documentário dele, um trecho dessa história que vou contar.
Nós fomos visitar uma fábrica de shoyu, uma fábrica de mais de 500 anos de tradição em fazer shoyu, e normalmente eles não gostam de receber estrangeiros, não gostam de receber visitantes na fábrica, porque o shoyu é fermentado e o fermento pode sofrer, mudar o processo de fermentação do shoyu.
E nós ficamos encantados em imaginar e ver aqueles tonéis de mais de mil anos, e o David Shang perguntou ao dono daquela fábrica se ele fazia o shoyu igual ao de 500 anos atrás, e ele falou: 'Lógico que não!'
A melhor manutenção da tradição é a inovação, e isso me marcou demais, porque é importante ser tradicional, mas é importante estar aberto às inovações. E eu vejo isso muito na cozinha brasileira.
Eu vou usar um exemplo, talvez não seja o melhor exemplo, mas nós estamos no Ceará, eu acabei de sair da cozinha, eu provei queijo de 60 dias, de 100 dias, de 150 dias, esses queijos não são feitos da mesma maneira que eram feitos antes, mas são feitos da mesma cultura, do mesmo local, olhe só que sensacional isso. É inovação sim!
O POVO - O que é a alta gastronomia para quem não tem acesso?
Atala - O que é alta cozinha? o que é alta gastronomia? É colocar um ingrediente, uma receita no seu melhor momento. Não é sobre pagar caro, então... O que é pagar caro?
Pagar caro é você não receber pelo que pagou. Eu vou entrar na economia, pois assim, o Brasil é um país de agricultura de larga escala, de commodities, e eu não sou contra, mas é inegável que esta cultura de larga escala deixe sequelas socioambientais, existe um desequilíbrio nesse sentido.
O pequeno produtor rural é expulso de sua própria terra, pois não é competitivo. Isso é triste. Eu não estou falando mal de nada, de ninguém, e eu vou olhar para a Europa e vou lembrar que, assim, esses grandes queijos, grandes vinhos não são produzidos por grandes companhias, então, são produzidos por esses pequenos produtores rurais.
O que seria ideal em mudar no Brasil? Que esse cara, em vez de produzir quantidade, ele produzisse qualidade.
O mercado não é o governo, o mercado somos nós consumidores, que gostássemos de pagar mais caro por um queijo cearense, por uma farinha de qualidade, por uma carne de sol, por qualquer que seja o produto da terra.
Porque essas mesmas pessoas que não querem pagar por um queijo do Brasil, não se incomodam de pagar caro no queijo importado, no vinho importado, no arroz importado, em marca importada, então, poxa, vamos dar valor aqui.
Quando a gente compra um produto importado, esse dinheiro, ele vai para fora. Quando a gente paga caro por um produto brasileiro, desde que ele tenha qualidade, você é recompensado duas vezes pelo sabor, pelo produto, mas também porque o benefício econômico e social fica no local de origem.
Então eu acredito na gastronomia como uma ferramenta de valorização desse conjunto social, econômico e cultural. Ela pode ser sim a maior expressão da cultura brasileira, da cara do Brasil.
O POVO - O Brasil tem vários rostos, várias cores, várias caras. O senhor acredita que levou o Brasil ao patamar internacional?
Atala - Eu acho que o Brasil precisa se renovar. Vamos pegar um exemplo legal: o Peru. O Peru teve um contemporâneo a mim, o Gastón Acurio (dono do restaurante Astrid & Gastón). Obviamente eu e o Gaston estamos mais velhos.
Só que o Peru criou chefes de alta qualidade, cozinhando de verdade, entregando comidas de qualidade, e continuam oferecendo para o mundo outros personagens e cadê esses personagens brasileiros que cozinham de verdade, que saibam cozinhar?
A gente vê, às vezes, figuras que nunca pisaram na cozinha fazendo sucesso e isso é triste, se apropriar às vezes do trabalho dos outros... E é muito triste.
No Brasil, a gente precisa promover chefes de verdade, produtores de verdade, produtos de verdade. Tem uma frase que eu falo aqui e que ficou muito famosa no mundo, que a maior rede social do mundo é o alimento. Por que eu falo isso?
Eu sou de uma geração que você tinha que temer jornalistas. Se você quisesse fazer uma propaganda custava caro. Passam 30 anos e, de um dia para o outro, chega um telefone na sua mão que tira foto, que filma e faz tudo de graça.
Quando a gente tinha um segredo, isso era assim a exclusividade, era o que garantia mais gente no restaurante.
A partir do momento que mudou esta ferramenta, publicar era o que mais fazia mais gente ver, mais gente vir.
As mídias sociais efetivamente mudam a relação do cozinheiro, do restaurante, com a imprensa, com o mundo, com uma nova maneira de agir, e isso é incrível.
Vou falar que eu tenho uma nova receita, um novo ingrediente, uma nova sacada ou qualquer coisa, eu vou ter que publicar em uma rede social, e vou ter que escolher uma rede social, o Instagram, o Facebook ou Twitter e qual é o maior? Nenhum deles.
O que conecta 7 bilhões de pessoas no planeta Terra é uma cadeia, é uma rede social, que é o alimento.
Nós vivemos hoje uma cadeia de interdependência do alimento. Reorganizar isso, reestruturar isso, revalorizar isso, é uma função que a gente deveria ter todo dia.
O Brasil carece de educação, formação mesmo de base, e carece de orgulho de trabalhar.
Esse orgulho gastronômico... Nós somos muito orgulhosos da nossa música, do nosso futebol, das nossas mulheres, das nossas coisas e esquecemos da nossa cozinha, que é da mesma dimensão.
O POVO - O senhor criou um instituto em 2013 (Instituto ATÁ) e faz projetos, como os com pequenos produtores. Mas essa alta gastronomia, para quem é ela? Como é que se consegue deixar a gastronomia menos desigual?
Atala - O Brasil é extremamente desigual, a cozinha vai ser igual no dia que todo mundo tiver comida, não importa a qualidade da comida, importa ter o que comer, acho que isso é a primeira coisa.
Se essas pessoas tiverem o que comer e onde estudar, não existe vértice da pirâmide, existe base de pirâmide. E hoje, falta isso.
Então, como sonhador, como cozinheiro, eu nem penso de deixar nada além do que uma relação melhor do homem com o alimento.
Nos períodos de fome na Europa não se jogava nada fora. No Nordeste, principalmente nas áreas mais áridas, que por acaso nós estamos próximos a ela (Fortaleza), não se jogava nada fora, porque os recursos eram escassos. Hoje nós temos um mau-hábito.
Hoje, as pessoas matam um frango e comem o peito e quem sabe a coxa, o resto dá para o cachorro, dá para o gato, o porco, o bode, a vaca.
A gente precisa reconectar com um alimento no seu primeiro momento da vida. A gente já desaprendeu a trabalhar ingrediente no bruto.
As crianças, elas acham que o frango e a galinha não são a mesma coisa. Que o frango da geladeira, com a galinha, que ele vê na televisão, não é a mesma coisa.
Eu trabalho com ingredientes brasileiros. E não me não estarrece, não me faz mal, não me conflita, imaginar que eu não consigo servir comida para todo mundo e nem me faz mal também imaginar que 90% dos brasileiros nunca comeram…. Não é a comida que eu faço, são os ingredientes que eu trabalho.
O que me faz mal, o que me estarrece, o que me congela… Imagina quantos brasileiros não são capazes de reconhecer um pé de laranja sem fruto ou com o fruto, a desconexão do homem com o alimento é nesse ponto, as pessoas sabem o que é uma goiabada e não sabem o que é uma goiaba no pé.
É isso que eu gostaria de reconstruir. O que eu gostaria de fazer com o instituto, como cozinheiro, como homem ou como brasileiro é isso, que as pessoas se reaproximem do ato de cozinhar, não só do fogão, mas desse ingrediente vivo na natureza.
O POVO - Como é trabalhar com os projetos no instituto e adentrar a uma cultura diferente? O que esse conhecimento trouxe?
Atala - A gente trabalhou bastante com o instituto socioambiental, então, o projeto de pimentas Baniwa, são várias casas de pimenta Baniwa.
A primeira coisa que a gente precisa entender é quem é um Baniwa. Baniwa é uma das 23 etnias que vivem numa área do extremo Norte do Brasil, tríplice fronteira do Brasil, Colômbia e Venezuela.
Onde tem 21 idiomas vivos. São Gabriel das Cachoeiras (terceiro maior município brasileiro em extensão territorial, a 859 km de Manaus) é uma cidade com 90% da população indígena.
Então vamos falar que só naquele pedacinho do Brasil nós temos 23 etnias diferentes, que se organizam, que têm arranjos sociais que aos nossos olhos culturais são difíceis de entender.
Quem é o índio que tem mais poder e que pode morar perto do rio, e que sabe navegar? Quem é o índio que tem menos poder e tem que morar dentro da floresta?
Tudo isso passa por arranjos que são bastante complexos, e quando a gente fala de arranjos bastante complexos, a gente fala de orgulho.
Porque não importa se ele é um índio poderoso ou se ele é um índio pobrezinho, dentro da organização social deles, quando ele vê a gente, a gente é branco e ele é índio, e ele já tem um sentimento de inferioridade, mesmo que ele seja um índio alta casta.
O POVO - O senhor viu isso?
Atala - Quando eles se comparam com a gente, aquele poder é todo achatado, é todo pasteurizado. A única coisa que eles são diferentes de nós, então, a gente fala de autoestima, de orgulho, e, aí, esse garoto não quer mais usar as indumentárias deles. Eles querem usar as coisas nossas porque elas são legais…
Quando tudo se organizou, as casas de pimenta Baniwa, há 14, 15 anos, Baniwa era um nome que inexistia no Rio e São Paulo.
Existia lá em São Gabriel das Cachoeiras, mas em Manaus se ouvia falar pouco. E em São Paulo e no Rio ninguém tinha ideia de quem podiam ser os Baniwa.
Eles eram tão ‘insignificantes’ para nossa cultura. Hoje não, a gente conseguiu, a gente não mexeu no arranjo social, a gente mexeu no orgulho de ser Baniwa, hoje o jovem Baniwa quer ser Baniwa, e ele quer manter a jiquitaia, a pimenta Baniwa.
Ela nunca foi um ingrediente de comida, ela sempre foi ingrediente de cultura.
Uma jovem Baniwa, antes de casar, ganha da mãe as suas pimentas e um fecho de mandioca, e ela vai plantar aquelas variedades que a mãe deu pelo resto da vida.
E essas variedades, se fossem nossas, elas não existiriam mais, porque a gente quer plantar a variedade que produz mais, a que é mais saborosa, a que rende mais, a que tem um ciclo mais curto, a que é mais resistente à praga, a gente quer plantar só a melhor. E essas mulheres Baniwas não.
Elas continuam plantando, porque aquela é a da família dela, então eles continuam tendo um acervo vivo de biodiversidade.
Elas faziam manejo de biodiversidade, e por que elas fazem isso? Porque mesmo que ela tenha recebido da mãe, da avó dela, a pior pimenta e a pior mandioca, aquela, talvez, num momento de cheia, num momento de seca, é aquela que vai conseguir alimentar todo mundo, porque ela talvez seja a mais resistente.
É importante entender que quando a gente protege ou usa um ingrediente, a gente está reforçando cultura, então, a gente está trazendo junto com isso sabedoria ancestral de relação com o meio ambiente.
Então, assim, para mim, mais legal do que falar que Rio e São Paulo comem pimenta Baniwa, é falar que existem os Baniwa, e eles são orgulhosos de serem Baniwas, eles não querem ser mais indígenas, eles querem ser Baniwas.
O POVO - O senhor se descreve como sonhador. Qual é o seu próximo projeto, qual o seu próximo sonho?
Atala - Eu tenho 56, estou quase chegando aos 60, e eu me lembro demais de quando era jovem e falava: “Eu não quero estar aos 60 anos na cozinha”.
Então é lógico que hoje é uma relação melhor com meu trabalho, com a minha profissão, mas eu tenho certeza que não quero deixá-la de lado.
Eu talvez não quero, e não quero mesmo estar todos os dias na cozinha, mas eu não quero deixar de cozinhar.
O POVO - Então vai estar aos 60 anos na cozinha?
Atala - De alguma forma sim, mas, talvez, com uma outra relação, com outro peso. Mas, sim! Eu quero estar nesse universo, eu quero manter os meus restaurantes, eu não sei se vão ser os melhores ou os piores do mundo, se estarão com uma, duas, três estrelas ou nenhuma estrela, mas eu quero que eles estejam vivos, mantendo vivos os valores que a gente começou, e eu também quero crescer.
A gente está lá com os projetos dos hotéis também. A gente tem projetos ambiciosos, empresarialmente falando, para o Brasil.
A gente vai montar seis hotéis, ao longo dos próximos cinco anos. A gente está começando agora o primeiro, enfim, tem um caminho longo a percorrer, mas, assim, a vida não é poesia, a vida é de verdade, e lidar com o lado empresarial é uma necessidade que todos nós temos, até para, quem sabe, poder viver uma aposentadoria, um final de vida mais tranquilo, com menor dependência financeira.
E essa menor dependência financeira é um outro exercício de libertação, porque tem gente que só quer se aposentar se tiver um jato, um avião, um castelo, ou sei lá o que.
E tem gente que está muito feliz com o que tem, e eu não estou dizendo que as pessoas têm que ser de um jeito ou de outro, as pessoas têm que encontrar a sua maneira de viver, e eu posso falar para você que eu não faço questão de ter um avião, mas eu não consigo mais viver sem minha riqueza que é o cozinhar, e eu não estou falando de dinheiro, eu estou falando de aproveitar, de estar dentro da cozinha, de estar com as pessoas, de prazer e de aprender.
Sensacional poder chegar a Fortaleza, em um restaurante desse jeito (Mangue Azul), com a estrutura que tem lá dentro, rara de ver, e você vê um garoto cheio de tatuagem, falando dos ingredientes, falando de uma maneira… Que quando se pensa quantos meninos desses tem no Brasil sem chances, quantos produtores de queijo ou de manteiga têm aí e que não chegaram a um restaurante.
Eu não quero viver longe dessa riqueza, é dessa riqueza que eu não quero me privar, eu quero continuar podendo trabalhar com isso e em cima disso, dando valor.
Quando as pessoas me perguntam: “O que você fez, o que você faz?”... Acusam, falam que eu só tenho uma coisa pra falar, que sou muito grato de ter conhecido Paulo Martins (chef que auxiliou Atala no início de sua jornada culinária na Amazônia), de ter conhecido pessoas que me ensinaram muito.
Eu não sei se eu merecia, mas era o único que estava lá para ouvir. Ninguém queria ouvir, queria todo mundo fazer outras coisas…
Tinham olhos para outro lugar, e aí teve um maluco que falou: ‘Eu quero aprender sobre a Amazônia, eu quero aprender sobre a cozinha brasileira, eu quero militar!’
E fazer por isso, e é isso que eu não quero abrir mão, esse é o Alex de amanhã.
O POVO - Pensou no Ceará para montar um destes hotéis?
Atala - Sim, a gente vem olhando. Nos ofereceram a região de Jeri (Jericoacoara), de Icaraizinho (de Amontada), naquela região ali.
Nós estamos interessados, mas hoje eu tenho uma obra grande acontecendo em Búzios, no Rio de Janeiro, e a gente está negociando.
Apareceu uma oportunidade boa em Angra (dos Reis, no Rio de Janeiro). Isso quer dizer o seguinte… Que, com certeza, até dezembro eu tenho que ter um beach club, um bar de praia, provavelmente um restaurante e seis bangalôs funcionando no Rio de Janeiro.
E, provavelmente, podem ser mais nove bangalôs e mais um restaurante e mais um bar de praia em Angra dos Reis. Mas não tem equipe. Então, assim, a gente tem um caminho pela frente, eu quero montar aqui no Nordeste, nos ofereceram aqui um em Icaraizinho, e eu achei incrível o lugar.
Tenho uma irmã que tem em casa lá, enfim, eu fiquei super apaixonado, ofereceram para gente no Piauí um outro lugar, que eu fiquei muito apaixonado e, obviamente, eu quero montar um na Amazônia.
Eu quero um hotel de selva.
Como brasileiro eu quero pelo menos outros dois no Pantanal, que eu acho um desbunde, não dá para usar outra palavra.
Tem o Rio Grande do Sul, e aqueles Lençóis Maranhenses. O Brasil não sabe o que é o Brasil ainda. É tem muita coisa, um espaço assim de Bonito, no Mato Grosso, é lindo e as pessoas nunca nem ouviram falar.
QUANDO veio a Fortaleza, o chef Alex Atala também visitou a Escola de Gastronomia Social Ivens Dias Branco, a convite do também chef e proprietário do restaurante Mangue Azul, André Bichucher. Foram cerca de 15 minutos de conversa entre Atala e os jovens estudantes do espaço.
EM 2013, Atala entrou na lista das 100 pessoas mais influentes da Time Magazine. Além das suas estrelas Michelin no seu principal restaurante, o D.O.M., em 2014 ele recebeu o prêmio de Lifetime Achievement na edição sul-americana da premiação da mesma revista.
O CHEF também tem seu nome em outros dois restaurantes de São Paulo: o Dalva e Dito, especializado em comida afetiva brasileira, e o Bio – Comer Saudável, que tem como principal objetivo o aproveitamento total dos ingredientes e a conscientização sobre o consumo.
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