No Brasil há quase 60 anos, Philip Fearnside, 77, tem uma longa trajetória de luta pela manutenção da Amazônia. Nascido nos Estados Unidos, o pesquisador possui estudos com ênfase em ecologia, como as mudanças na maior floresta do mundo decorrentes do desmatamento e os impactos dos diferentes modos de desenvolvimento na região.
Ainda, divide o Nobel da Paz de 2007 com Al Gore e outros 3 mil cientistas do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) pelas pesquisas relacionadas ao aquecimento global. A premiação foi um marco na extensa história de alertas científicos sobre a crise climática.
Philip esteve em Fortaleza entre os dias 17 e 18 de junho para o evento "Ceará Pelo Clima", realizado no Centro de Eventos, no bairro Edson Queiroz. O POVO conversou com o pesquisador sobre sua trajetória, as perspectivas ambientais para o futuro e como ele enxerga a atuação do Governo Federal relação ao tema.
O POVO - Antes de vir para o Brasil estudar a Amazônia, o senhor estava formando uma carreira na Ásia, especialmente na Índia, certo? O que o levou a mudar de foco e vir estudar a Amazônia?
Philip Fearnside - Eu trabalhei dois anos na Índia trabalhando com peixes e iria voltar para lá para a minha pesquisa de doutorado, sobre desertificação e mudanças climáticas. Mas, os Estados Unidos apoiaram o Paquistão na guerra de Bangladesh, então a Índia simplesmente fechou as portas para acadêmicos americanos. Foram cerca de 400 pesquisadores que tiveram que excluir pesquisas [que duraram] uma vida toda, ficavam engavetando os projetos.
Quando [a Índia], finalmente, voltou a se abrir ao público, eu já estava em Altamira [no Pará]. Morei dois anos nas agrovilas, as pequenas aldeias planejadas pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Nesse tempo, fiquei dando seminários no Instituto e, depois, consegui um emprego [também no Incra]. Então, já são 56 anos no Incra de Manaus, [foram] dois anos no Pará e 38 anos na Amazônia. Passa rapidinho.
O POVO - O Brasil conseguiu de alguma maneira sair de um Governo totalmente negacionista e antiambientalista para um que, ao menos no discurso, se compromete com a ciência e com o meio ambiente. Mesmo assim, temos visto a defesa da ampla exploração de combustíveis fósseis, as greves do Ibama e das universidades. Como o senhor analisa a situação do Brasil agora?
Philip Fearnside - O Governo não é monolítico. O Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA) realmente está fazendo [bastante coisa] no combate ao desmatamento, mas o resto do Governo não. Todo o resto [da gestão] está do outro lado dessas questões.
O Ministério de Minas e Energia (MME) quer fazer poços na Floresta Amazônica, quer aumentar [a exploração do petróleo do] pré-sal e tem esse grande projeto [de exploração de gás e petróleo], a “Área Sedimentar do Solimões”, que é enorme e [acontece] no lugar mais importante de se evitar o desmatamento. É uma situação crítica [e vem junto com aquela conversa] de que é sustentável e viável ambientalmente. A pressão política também aumentou muito. É uma coisa grave.
O POVO - Um dos temas de maior preocupação quanto a Amazônia é em relação ao ponto de inflexão, de não retorno. Conforme pesquisas, a Floresta pode entrar em colapso até 2050. O senhor pode explicar o que significa "ponto de não retorno"?
Philip Fearnside - São vários pontos de não retorno. Tem, por exemplo, o quanto pode desmatar e o resto da Floresta ainda continuar em pé. Se passa um certo ponto, não tem reciclagem de água para o resto da Amazônia, que começa a se definhar. De acordo com o cálculo atual de
E, tem outras coisas [que influenciam], como o clima. O número de épocas de seca é muito importante para determinar se [o bioma] vai virar uma savana ou vai continuar como floresta. Estamos na beira da situação. É só pensar em Santarém (PA), tem um corredor seco que cruza o rio Amazonas. Lá, a época seca é mais longa e a chuva menor do que em Belém (PA) e Manaus (AM), por exemplo. A chuva anual por lá é quase idêntica às chuvas de Brasília (DF). Mas, Brasília é no Cerrado e Santarém na Floresta Amazônica.
Então, as épocas secas estão se alongando. [A situação] chega a influenciar o norte do Mato Grosso e ameaça o Brasil de conseguir tirar duas safras de soja no mesmo ano, além de ameaçar a própria Floresta [Amazônica].
Outra coisa é a temperatura, se passa [no sentido de aumenta] 1,5 °C da média mundial, acima da que era antes da
O POVO - O doutor Carlos Nobre deu uma entrevista em abril de 2024 pro El Espectador no qual ele confessou não ser otimista com a possibilidade de evitar o ponto de não retorno da Amazônia. E o senhor? É otimista ou pessimista?
Philip Fearnside - Se as [situações] continuarem, obviamente, vai ser um desastre. Mas, o ponto de não retorno não é igual a um precipício, que se você der mais um passo, você cai. É uma coisa que vai aumentando o perigo. O risco de ter essas grandes secas que acabam com o resto da Floresta aumenta muito. Então, mesmo se passar dos 1,5 °C, [por exemplo], não vai acabar tudo de uma vez. [Apesar disso] Tem que lutar para voltar, mas tem que começar agora.
O POVO - O senhor acha que se concentrar na redução do desmatamento da Amazônia é suficiente para o Brasil realmente fazer uma diferença frente à crise climática?
Philip Fearnside - Não. Também precisa parar com o uso de combustíveis fósseis. Na questão dos desmatamentos, o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima está reprimindo, fiscalizando, multando etc. Isso é essencial, porque senão o sentimento de impunidade vai aumentando, como aconteceu na época do [ex-presidente do Brasil, Jair] Bolsonaro. Mas, se todo o resto do Governo está agindo pelo outro lado, fazendo estradas que abrem [caminho] para outras áreas [de exploração], o que acontece é que o Governo perde o controle. Milhares de pessoas vão entrando e tomando suas próprias decisões.
A decisão de fazer uma estrada é do Governo, o que vem depois não. A legalização dessas invasões é uma coisa que se autopropaga. [É uma coisa que atrai] não só os pequenos, mas também os grandes grileiros. De alguma forma, tem que parar. Estão roubando terras do estado brasileiro. Mesmo que multem ou se comprometam a plantar árvores, não resolve, fica como terra. É como se eu fosse roubar um banco, por exemplo, e o juiz diz "pode ficar com o dinheiro desde que você assine um termo [dizendo] que você vai obedecer as leis". É mais ou menos assim. É uma coisa que tem que mudar. Só as multas não resolvem o desmatamento.
O POVO - O desmatamento na região amazônica costuma acontecer com a desculpa do desenvolvimento econômico, de lucrar com o espaço. Mas, os impactos a longo prazo acabam sendo bem maiores do que o dinheiro gerado com a exploração. Por que a floresta em pé é mais importante do que ela derrubada?
Philip Fearnside - É muito mais importante a floresta em pé, mas, do ponto de vista de quem está desmatando, dá mais lucro desmatar do que manter a floresta. Então, é uma coisa que é uma decisão do Governo que representa todo o País e não apenas a empresa e a pessoa [que explora].
É algo que tem que mudar. Tem que existir uma estrutura que represente o interesse nacional, não apenas o interesse financeiro de cada um. É preciso [legislações] que não permitam isso, é uma decisão do país. Também é bom lembrar que o grosso disso não é o que sustenta a população na Amazônia. O número de empregados é mínimo. Não sustenta a população da região. Então, as pessoas não vão morrer de fome se não houver o desmatamento.
O POVO - O senhor faz alertas sobre as mudanças climáticas há décadas. Muitos pesquisadores citam que, no passado, não eram levados a sério, eram tachados como "emergencialistas" e muitas das propostas apresentadas não eram levadas para frente. Diante disso, como o senhor se sente vendo esses alertas se tornando realidade?
Philip Fearnside - A pessoa tem que ter uma estrutura psicológica para conseguir lidar com essas coisas, senão fica paralisado. Tem que continuar fazendo o que pode: fazer pesquisa, divulgar os resultados etc. Mas, tem que ser algo muito mais amplo. Não é apenas [trabalho] dos cientistas. A população inteira tem que se envolver.
O POVO - Parte da pesquisa do senhor foi relacionada aos impactos das hidrelétricas na região, chegou a escrever sobre
Philip Fearnside - Não tem como não fazer. Metade da emissão [de Gás Carbônico (CO2)] do Brasil vem do desmatamento, mas também tem toda a parte de energia. Então, para diminuir, tem que enfrentar a parte energética.
A transição também é importante para que o Brasil tenha um papel de liderança no mundo. Tem que dar um exemplo, não é só manter esse discurso que os países ricos têm que pagar [pela transição]. O discurso é verdade, eles tem que pagar mesmo, mas [o Brasil] tem que dar o exemplo.
O POVO - O senhor divide um Nobel da Paz com o corpo de mais de dois mil cientistas que integram o Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas, um número que realmente demonstra a dimensão do que é estudar o aquecimento global e suas complexidades. O senhor vê alguma mudança de postura dos cientistas quanto à divulgação científica sobre a crise climática desde o começo do século?
Philip Fearnside - Sim, mas os cientistas são diversos. Tem alguns que se encaixam nesse estereótipo de que não quer divulgar [as pesquisas], só ficam no laboratório, mas outros não. Hoje é muito mais comum que as pessoas divulguem [os resultados]. Eu tenho uma coluna na Amazônia Real e toda semana sai um texto de divulgação científica, dou palestras e entrevistas, mas cada um faz o que pode.
O POVO - Nas suas colunas, o senhor costuma escrever bastante sobre
Philip Fearnside - É evidente que o caso da BR-319 é uma obra que não tem nenhum fundamento econômico, como a BR-63, que teve um grande impacto [ambiental], mas tinha uma lógica econômica. Milhares de caminhões de soja são transportados. Na 319, não tem nada parecido com isso.
Em Manaus, todos os políticos são a favor [da construção] e a população também, que há mais de 20 anos é alvo de desinformação constante, dizendo que a rodovia vai ser importante para a Zona Franca [do estado]. Mas, levar os materiais pela 319 vai ser muito mais caro do que [a forma de transporte] atual: de balsa e caminhão [em outras estradas].
Tem que lembrar que Manaus tem 2,2 milhões de pessoas, cerca de 1% da população brasileira, e todo mundo está a favor, desde que seja pago pelo Governo Federal. Ou seja, pelos contribuintes do resto do País.
É grave que temas como "sustentabilidade", "desenvolvimento sustentável", "bioeconomia", estão sendo usados para justificar muitas coisas. A primeira coisa que o Governo do Amazonas fez quando começou a gestão foi liberar oito grandes áreas para exploração de madeira com "bioeconomia". É uma deturpação dos temas.
O POVO - Com base na série de dados sobre a dinâmica e a interação do clima na Amazônia e no planeta, o senhor considera que ações da sociedade civil podem ter peso na balança a favor da salvação do meio ambiente?
Philip Fearnside - A sociedade civil tem um peso na situação, mas o histórico mostra que, mesmo quando existe uma pressão da população, não se resolve as questões de [desmatamento]. O
A opinião pública era totalmente contra [o desmonte do Código]. Cerca de 80% da população não queria nenhuma mudança no documento, segundo as pesquisas de opinião.
A representação da Câmara dos Deputados é proporcional à população. O Brasil é mais de 85% urbano. O grosso da população não tem o mínimo de interesse em ser liberado para desmatar. Mas, como os representantes do povo [os deputados] votam desse jeito, contra o interesse dos próprios eleitores? A explicação é dinheiro, que vem da soja e se transforma em poder político.
Outro exemplo é
O POVO - O senhor entende que os cientistas deveriam entrar na política para serem mais ouvidos? Deveriam ser mais políticos quando fazem divulgações das pesquisas que realizaram?
Philip Fearnside - Pode ser, mas, sendo um pesquisador, as pesquisas precisam ser neutras. Não pode ter o viés que reforça minha visão política.
Mas, uma vez que você fez a pesquisa, você precisa tirar conclusões, que pode ter uma participação política para fazer os resultados acontecerem. Também tem a questão de decidir o que estudar, essa é a chave.
O POVO - Qual o senhor diria que é o diferencial do ambientalismo brasileiro? O que nós, como uma nação e não apenas como pesquisadores, trazemos de diferente para a mesa?
Philip Fearnside - O Brasil é uma das maiores vítimas das mudanças climáticas, mas também é um país muito sortudo porque tem muitas opções energéticas que não sejam os combustíveis fósseis. O grosso dos países não tem isso. Em termos de transição energética é muito mais fácil acontecer aqui do que em outros lugares.
Então, tem toda uma razão para assumir um papel de liderança. Existe o discurso, mas precisam começar a fazer. Não dá para continuar explorando petróleo, isso não vai levar o país a uma posição de liderança.
Philip Fearnside é um dos dois mil autores do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), uma organização científico-política da ONU dedicada a acompanhar todas as pesquisas sobre a crise climática e publicar um relatório sobre os cenários prováveis dos efeitos e consequências das mudanças climáticas.
A altura de Fearnside não combina com o volume da voz: ele é conhecido por falar baixinho, um desafio para todos os alunos do pesquisador. Durante a entrevista, os gravadores acompanhavam os movimentos da cabeça do professor de perto, na tentativa de capturar o máximo de palavras possíveis. Oo bigode farto e característico do professor também não ajudou muito, por inviabilizar a leitura labial instintiva dos repórteres.
Philip Fearnside é colunista semanal do Amazônia Real. Desde 2017, ele usa a coluna para analisar e expor os impactos socioambientais de diversas obras públicas, como a hidrelétrica de Belo Monte e a BR-319.
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