Reconhecido nacionalmente pela forte presença no horário nobre da TV, o pernambucano Aguinaldo Silva celebra seus 81 anos com o lançamento do livro Meu passado me perdoa: Memórias de uma vida novelesca, em que ele compartilha momentos de sua trajetória como novelista, escritor e jornalista no período da ditadura militar (1964-1985).
Aguinaldo Silva é autor de sucessos de audiência como “Tieta”, “Império”, “Fina Estampa”, “Senhora do Destino”, “A Indomada”, “Vale Tudo”, “Pedra sobre Pedra”, além de outras produções que provocaram debates e mobilizaram audiências. E, apesar de estar fora da Rede Globo desde 2020, o autor garante que continua trabalhando em novos projetos e está ativo nas redes sociais, onde compartilha seu dia a dia e comenta sobre assuntos do universo artístico, político e social.
Não se iluda, nesses últimos 40 anos, foram as novelas brasileiras que conduziram a revolução de costumes no Brasil
O POVO - Por que escrever um livro de memórias?
Aguinaldo Silva - Eu estava sem nada para fazer. Para uma pessoa que está acostumada a trabalhar e a escrever diariamente, visto que a novela permite pouquíssimo tempo de descanso e cada novela era sucedida para que haja uma seguinte. Eu pensei: ‘O que eu faço agora?’ Não posso sair de casa, então vou escrever, vou inventar alguma coisa para escrever.
E aí eu tinha vários textos de lembranças minhas que eu tinha escrito, eventualmente até publicado no Facebook ou guardado em alguma pasta do computador. Eu fui ler esse material todo, que era um acervo de muitos anos, e vi que tinha um bom acervo de memória, de lembranças, de figuras que conheci, e pensei que isso dava para um livro de memórias. Eu comecei a escrever, mandei para uma agente literária, a Luciana Villas-Boas, que leu e disse que o livro iria funcionar, então continuei e fiquei praticamente dois anos escrevendo.
Depois disso, eu entreguei para a Luciana e a editora aceitou de primeira. Eu realmente não me dei conta de que o livro, mais do que a história da minha vida, era também uma história das épocas em que vivi, que era o meu ponto de vista pessoal dessas épocas. E eu vivi épocas muito turbulentas, como na Ditadura Militar. Tem também essa mudança dos costumes, foi preciso uma caminhada lenta e, às vezes, com bastante obstáculos no caminho, para a gente chegar onde chegou hoje.
OP - Um projeto como esse envolve muito desprendimento…
Aguinaldo - Eu resolvi que ia ser absolutamente sincero no livro, quer dizer, não me defendo de nada. Por isso, o título do livro é “Meu passado me perdoa”. Mesmo as histórias mais fortes, para não dizer '"escabrosas", eu não me defendi. Sou eu, eu passei por isso, eu vivi isso e estou contando exatamente como foi.
O primeiro capítulo do livro é uma história de uma sessão de bullying que sofri no colégio quando tinha 13 anos e que foi uma violência extrema, eu quase fui linchado, literalmente linchado. Quando leram essa parte no dia do lançamento do livro, em São Paulo, eu confesso que fiquei meio assustado. Agora vai cair na boca do povo. Naquele momento, eu pensei: “Agora está feito. Eu fui sincero”.
OP - Você escreveu seu primeiro livro aos 14 anos. Como isso aconteceu?
Aguinaldo - Desde criança, eu gostava de escrever. Eu não usava palavras, usava figuras que eu recortava das revistas, dos jornais e criava histórias com aquelas figuras. Depois, passei a escrever porque comecei a trabalhar muito cedo, com 14 anos, e a primeira coisa que fiz com o meu primeiro salário foi comprar uma máquina de escrever. Tinha uma daquelas máquinas enormes que se usava na época, com a fita vermelha e preta. Hoje em dia, é uma coisa de museu. Foi aí que comecei a escrever.
Mas eu não sabia que eu era um escritor, eu achava que aquilo era um brinquedo. Até que, um dia, por acaso, eu conheci um jornalista, falei para ele que brincava de escrever. Aí falou para mim: “Então me mostre os seus brinquedos”. E eu os mostrei. Eu tinha acabado de escrever um romance de 150 páginas. Entreguei para ele, que leu e ficou umas duas semanas sem me dar notícias, e, quando me procurou, falou: “Olha, você não brinca de escrever, você é escritor e você tem que mandar esse livro para uma editora publicar”. E aí eu fiquei mais parado, não entendia nada de mercado, não sabia nomes de editoras, nada disso, embora eu lesse muito e comprasse livros com meu salário.
Mas surgiu uma editora nova, chamada “Editora do Autor”, que era uma editora do Fernando Sabino, Luiz Braga, Vinícius de Moraes, e eu resolvi mandar para eles. E, duas semanas depois, eu recebi um telegrama do Fernando Sabino dizendo: “Gostamos do seu livro, vamos publicar”. Foi assim que descobri que realmente eu não brincava de escrever, eu era escritor com o livro publicado. Eu tinha 16 anos e a coisa funcionou. Foi o que fiz, foi escrever.
OP - Sobre o que era esse livro?
Aguinaldo - Olha, eu morava num bairro do Recife chamado Bairro da Boa Vista, que era um bairro de famílias remediadas e num certo grau de pobreza, às vezes, muito... Tinha umas casas que eram divididas por essas pessoas. Às vezes, nós morávamos num quarto, às vezes, morávamos num hotel, mas eram pessoas muito pobres e muito carentes.
Eu vivia nesse bairro com a minha família e comecei a observar essas pessoas. Esse meu primeiro livro era sobre um desses sobrados do bairro da Boa Vista, onde moravam várias famílias e, ou então, pessoas solitárias também. É um livro em torno da solidariedade com essas pessoas, porque é muito forte.
OP - No livro “Meu Passado me Perdoa”, seu mais recente lançamento, você trata de assuntos como seu trabalho de jornalista durante a ditadura militar. Pode falar mais sobre isso?
Aguinaldo - Na época, eu era um repórter policial, e, de certa forma, mexia com tudo isso. Eu cheguei a ganhar o primeiro prêmio de jornalismo com a reportagem chamada “Pobres Homens de Ouro”, que era sobre os esquadrões da morte, pessoas que eram muito prestigiadas pela ditadura.
Mas era um período turbulento, quando eu fui preso, eu simplesmente desapareci. As pessoas demoraram 40 dias para saber onde eu estava e se eu estava vivo. Eu fiquei na Ilha das Flores, que era um presídio para presos políticos. É muito engraçado porque eu fui preso por escrever o prefácio de uma das edições do diário do Che Guevara, porque, como o livro não tinha direitos autorais, várias editoras publicaram ao mesmo tempo, e, numa delas, eu escrevi o prefácio.
O título era “A Guerrilha Não Acabou”, o que era uma ousadia falar uma coisa dessa, porque realmente a guerrilha estava em curso no Brasil, mas a ditadura escondia. Por isso, fui preso, já que aquilo se tornou crime a partir do Ato Institucional n.º 5. Mas o livro tinha sido publicado antes do ato e, como toda lei, só valia da data que foi assinada para frente. Como eles perceberam que não podiam me processar, me deixaram de castigo, 70 dias preso.
OP - Em 2020, depois de 41 anos na Rede Globo, você encerrou contrato com a emissora. A decisão foi acordada entre as partes?
Aguinaldo - Veja bem, eu não era funcionário da Globo, eu tinha uma empresa que vendia o meu trabalho para a Globo. Nós assinamos contratos durante 41 anos. Foram vários contratos que duraram 6 anos. Quando o último venceu, eles disseram que não queriam mais renovar. Geralmente, o que você lê na internet é “Aguinaldo Silva foi demitido da Globo”, mas não, eu não fui demitido porque eu não era funcionário da Globo, nunca fui. A emissora comprava o meu trabalho. Se eu fosse demitido, eu teria uma indenização enorme porque eu trabalhei lá por 41 anos, teria fundo de garantia, mas eu não era funcionário.
Na verdade, eu fui o primeiro em uma longuíssima lista que continua saindo até hoje. As pessoas continuam saindo porque o contrato acaba e eles não renovam. Se você me pergunta se essa saída foi triste para mim, se eu me senti ofendido ou alguma coisa assim, a resposta é não. Era uma relação comercial e durou tempo demais, 41 anos na empresa é muito tempo.
Várias vezes, eu mesmo pensei em não renovar, e a primeira vez que isso aconteceu foi em 2004, mas eles fizeram uma proposta muito generosa e eu escrevi “Senhora do Destino”. A segunda vez foi em 2010, que eu também não queria renovar porque era um trabalho muito cansativo escrever novelas. E aí, mais uma vez, eles fizeram uma proposta muito generosa, e, quando você se vê diante de uma proposta generosa, que não traz nenhum malefício, só benefício, você não vai dizer não, né? Eu aceitei por mais seis anos. Mas, em 2020, quando, finalmente, eles decidiram que não apresentariam mais propostas, eu saí.
OP - Repercutiu bastante…
Aguinaldo - O que me deixou um pouquinho – não deprimido, mas triste – foi a reação de pura alegria que senti na internet com esse fato. As pessoas usaram os adjetivos mais violentos, por exemplo: “Aguinaldo Silva foi chutado da Globo”, parecia que as pessoas queriam isso. Já com as outras pessoas que saíram após a minha saída, era “O contrato não foi renovado”. Mas a vida continua e eu nunca deixei de receber direitos autorais da Globo porque eu tenho trabalhos que estão sempre passando em algum lugar do mundo.
Estou até na própria Globo, com reprises. Eu continuo tendo uma conta na Globo, na qual eu recebo depósito todo mês do que ganhei. Eu não tenho outra razão de tristeza nem de queixas. Se você perguntar para mim se eu escreveria de novo uma novela na Globo, eu te diria que, aos 81 anos, a minha idade atual, talvez eu hesitasse quanto a isso, ou talvez me empolgasse, principalmente por conta do que eles teriam para me oferecer.
OP - Em entrevista à Veja, você declarou que as novelas recentes não são como os folhetins tradicionais. Poderia explicar?
Aguinaldo - Eu me refiro ao folhetim mesmo, o melodrama. O que o público quer é ver um folhetim. O que é o folhetim? É uma coisa escrita em capítulos, em episódios, uma história que vai em progresso e fica sempre suspensa em relação a todas as possíveis finalizações. E o público embarca, quer ver, quer chegar no final e quer ver o que acontece. Esse é o folhetim. Eu acho que as novelas hoje em dia não seguem mais essa receita, porque os autores talvez tenham uma certa vergonha de escrever folhetim. Eu acho que o folhetim é uma coisa menor, algo que existe desde o século XVIII.
Os livros de Charles Dickens, que hoje são um clássico da literatura inglesa, eram folhetins publicados em um capítulo por semana no jornal. E eles são histórias altamente melodramáticas, mas, ao mesmo tempo, são um retrato da sociedade vitoriana inglesa, coisa que a novela também fez com o Brasil. Sempre digo que, daqui a 50 anos ou 100 anos, quando as pessoas quiserem saber como era o Brasil de agora, elas vão encontrar nas novelas.
As novelas são o retrato fiel desse progresso no Brasil nos últimos 60, 70 anos. Está lá tudo. A maneira como os costumes foram se alterando, como o pensamento das pessoas foi se tornando mais liberal, mais aberto. Se hoje chegamos onde chegamos, é porque as novelas começaram a falar de temas que eram proibidos. As novelas começaram a falar de temas polêmicos e assim tornaram-se mais palatáveis para a população.
OP - Na sua opinião, o que falta nos novelistas da nova geração?
Aguinaldo - Eu acho que a diferença básica que existe é que, hoje em dia, a linguagem está sendo muito viciada. Há coisas demais sobre as quais você não pode falar. Há palavras demais que não se podem mais usar. Isso enfraquece o folhetim, porque ele é feito de excessos. As brigas entre duas mulheres se estapeiam, como aconteceu com a Nazaré e a Maria do Carmo, cena que deu maior audiência porque todo mundo esperava que as duas finalmente brigassem.
Hoje em dia, não se pode mais escrever esse tipo de cena. Eu acho que as novelas atualmente estão meio pasteurizadas pela interdição de algumas situações, algumas palavras, pela interdição que empobrece, de certa forma, a linguagem. Na própria realidade, a gente está tendo muito cuidado com o que diz. Na novela, não pode haver restrições de linguagem, aquilo ali é uma exceção, é um folhetim. Eu acho que as novelas estão com esse problema, não só as novelas, o teatro também, as peças de teatro não podem mais mostrar tudo isso. Fica uma coisa meio empobrecedora, eu acho.
OP - Existe um boato de que você e Walcyr Carrasco teriam se desentendido por um suposto plágio dele na novela “Morde e Assopra”, que teria sinopse semelhante ao núcleo do personagem Antenor em “Fina Estampa”. Essa história realmente aconteceu?
Aguinaldo - Plágio é uma palavra muito forte, não houve nenhuma acusação de plágio porque plágio é você roubar uma história inteira. No caso da novela, havia uma coincidência entre duas situações, que era o rapaz de família pobre que tinha vergonha da mãe e estudava medicina, que a mãe pagava com grande esforço. Na novela do Walcyr, havia essa mesma situação: um rapaz médico, estudante de medicina, cuja mãe era pobre e humilde, do qual ele tinha vergonha, embora ela pagasse tudo. Acontece que entreguei a minha novela primeiro. E o fato de haver essa coincidência inviabilizava a minha novela, que seria a próxima das oito. E aí eu disse que alguém vai teria que mudar essa situação, só que entreguei primeiro.
Eu acho que foi um descuido dos leitores da casa, que não perceberam que havia essa coincidência entre as duas notas. A acusação de plástico nunca houve. O que houve é o seguinte: quando você faz uma reivindicação dessas, a mídia da internet enfatizou a palavra “plágio”, que ninguém usou. Fizeram isso porque teriam mais cliques.
O grande problema da sociedade, não só brasileira, mas de uma maneira geral, hoje em dia, é essa questão dos cliques. Se não tem cliques, não sai. E, para isso, é preciso você adaptar a história real à necessidade dos malditos cliques. Essa não é a mídia tradicional, eu estou falando dessas que tem hoje em dia, deve ter uns 10 mil pelo menos nas redes sociais e sites. Eles dão a mesma notícia, mas geralmente falsa. Esse clima de fofoca básica, de Walcyr Carrasco plagiando Aguinaldo Silva, é errado. Ninguém nunca usou a palavra “plágio”. O que a gente usou foi “coincidência”.
OP - Você acha que as novelas brasileiras são as melhores do mundo?
Aguinaldo - Sim. Aconteceu uma coisa emocionante no lançamento do meu livro, no Rio de Janeiro. Eu estava com aquelas pessoas todas esperando o autógrafo do livro, e veio um homem, de 40 a 50 anos, com o filho para gravar enquanto ele falava comigo. Ele se ajoelhou perto de mim, porque eu estava sentado e falou assim: “Meu nome é Dennis, eu sou russo, e vim morar no Brasil há dois anos”.
Então ele me contou que aprendeu português em dois anos, mas ele quase não tinha sotaque porque aprendeu o idioma na Rússia vendo as novelas brasileiras. Porque, na Rússia, a novela brasileira passa com legendas em russo, mas o áudio é o original português. E esse homem via a pessoa falando lá com a tradução. Ele sabia todas as minhas novelas porque via com a avó.
As novelas brasileiras fazem um sucesso brutal lá e em todo lugar. Foi assim que ele aprendeu o português. A novela brasileira é bem recebida no mundo inteiro. Mesmo na Rússia, um país eslavo, que tem seus costumes e tudo mais. Por causa desse costume, ele acabou trazendo a família para morar no Brasil. Eu acho que a novela brasileira é muito prestigiada em todo mundo.
... continuo tendo uma conta na Globo, na qual eu recebo depósito todo mês do que ganhei. Eu não tenho outra razão de tristeza nem de queixas
OP - Você tem assistido às telenovelas recentes?
Aguinaldo - Eu te confesso que não assisto porque eu tive, ao longo dos meus 41 anos de Rede Globo, uma saturação de novelas, não só das minhas, mas dos meus colegas todos, que eu tinha que ver, tinha que comentar, porque chamavam a gente para reuniões. E eu te confesso que tirei uma folga nisso. Eu não vejo novelas, eu vejo séries e essas coisas todas, mas as novelas eu não estou vendo nesse momento, nem as brasileiras, nem as portuguesas.
OP - Qual sua opinião sobre a escalação de influenciadores digitais no elenco de novelas?
Aguinaldo - Eu acho que essas pessoas que têm um carisma enorme nas redes sociais, quando têm que viver um personagem, perdem esse carisma e se anulam completamente. Por quê? Porque o ator é um fingidor, o ator é capaz de fazer qualquer coisa. Se você disser assim, “Olha, você vai fazer o papel de um cachorro”, ele vai lá e faz um cachorro, e faz a pessoa acreditar que aquele é um cachorro.
Agora, o influenciador não tem essa capacidade. Ele é sempre a mesma pessoa, que nem é uma pessoa verdadeira, é alguém que ele criou, que vendeu a imagem original. Então, quando você dá um personagem para essa pessoa fazer, ele não sabe extrair o personagem dentro dele, porque ele não é um fingidor. Não funciona. Mas eu acho que os caras já perceberam isso.
Às vezes acontece que você tem grandes atores ou atrizes que se tornam grandes influencers, como a Marina Ruy Barbosa, que é uma grande atriz jovem, que tem 42 milhões de seguidores. Isso é diferente. Quando ela for chamada para ser atriz, ela será sempre atriz, embora seja uma influência de grande sucesso. Agora, um influencer que não é ator, que não estudou, que não fez curso de arte dramática, que provavelmente nem via novelas, de repente é chamado para estrelar uma novela e não funciona. Esse não é o problema. Mas acho que os produtores de elenco já se deram conta.
OP - Existe uma “receita” para novelas de sucesso?
Aguinaldo - Não, o segredo do sucesso da novela é que ela tem que ser muito popular e tem que ser média também. Por que média? Porque ela atinge um público de 40 milhões de pessoas, de várias classes, vários segmentos sociais. Conservadores, liberais, pessoas de extrema-direita, pessoas de extrema-esquerda, todo mundo vê novela, embora alguns digam que não.
A novela tem que ser sempre média, ela não pode ser radical em nada, inclusive em costumes, porque, às vezes, ainda hoje, a avó vê a novela com o neto do lado e fica muito assustada se, de repente, aparecer uma cena ousada demais aos olhos dela. Ela não sabe explicar, não quer explicar à criança.
Então, a novela tem que ser média. E esse eu acho que é o grande sucesso da novela brasileira, porque, ao mesmo tempo em que ela foi modernizando o tratamento dos costumes da novela, também foi sabendo fazer isso, sem radicalizar, sem chocar, entende? Eu acho que a novela será sempre assim, um folhetim. Um folhetim tem regras muito estritas, eu peço sempre isso para as pessoas não esquecerem.
OP - Você voltaria para a Globo caso o convite fosse para fazer uma novela com o perfil diferente do seu, no estilo mais “moderninho”?
Aguinaldo - A emissora sabe qual é o meu estilo. Dificilmente, eles me chamariam para escrever uma novela que não se enquadra no meu estilo, que é um perfil muito popular, voltado para as causas populares, com personagens muito fortes, trabalhadores, mulheres que trabalham. É um tema que sempre apareceu nas minhas novelas. Então, eu acho que se eles quiserem uma novela, como você falou, eles vão chamar outro autor, não o Aguinaldo Silva.
OP - Sobre a novela “Vale Tudo”, que virou o assunto do momento quando foi anunciado o remake, você acha a regravação dela realmente uma boa ideia?
Aguinaldo - Eu, sinceramente, acho que não. Te digo isso porque a novela é um acontecimento que acontece só naquele momento, quando vários fatores se unem: o elenco, a direção, a produção e o contexto em que o país está vivendo. Tudo isso se combina para que a novela vire um sucesso naquela hora, naquele momento. Mas eu acho que a novela acaba quando acaba. Se daqui a algum tempo, você tentar fazer aquela novela de novo, ela pode funcionar, sem dúvida nenhuma, porque ela pode ter uma boa dramaturgia.
Mas ela será outra novela, será diferente. Não é o mesmo, inclusive na opinião do público. É outra novela, não adianta. São outros atores, por exemplo, Odete Roitman é Odete Roitman de Beatriz Segall. Mesmo que uma geração não tenha visto a Beatriz Segall na trama, viu imagens, viu memes. A nova “Vale Tudo” será outra novela, que pode até ser muito boa, porque o texto é bom, mas será outra novela. Eu, sinceramente, não perderia tempo me oferecendo para fazer um remake, porque eu tenho várias histórias originais na gaveta, não é a fase de repetir uma coisa que eu já fiz.
OP - Mas, se fosse o caso de você escolher os novos personagens principais de “Vale Tudo”, quem seriam?
Aguinaldo - É difícil falar isso porque, quando a Beatriz Segall fez a novela, já devia ter uns 60 anos. Hoje em dia, eu acho que a Odete Roitman teria que ter 50, no máximo. Porque uma mulher de 60 anos já está aposentada, mesmo que seja uma empresária, como ela era, mas já tem alguém que ocupe o cargo de chefia da empresa.
Acho que o que está acontecendo nas novelas é que os personagens estão se tornando cada vez mais jovens, mesmo que sejam esses personagens mais idosos. Antigamente, não, essa mulher teria pelo menos 60. Mudou isso. Então, escalar quem para fazer a Odete Roitman? Se fosse na minha época, eu diria a você, com toda a sinceridade do mundo, que eu adoraria ver a Cássia Kiss fazendo a Odete Roitman. Uma grande atriz brasileira, uma grandíssima atriz. Trabalhei com ela umas três vezes e me sinto feliz por isso.
Mas, ao mesmo tempo, acho que a Cássia já passou dessa idade dessa nova Odete Roitman. Se eu tivesse que escalar uma Odete Roitman entre 45 e 50 anos, confesso que não sei quem eu escolheria. Mas eu sei que os personagens vão ser mais jovens, com toda razão, e a Odete Roitman vai ter que ser mais jovem.
OP - E você acha que a nova Odete Roitman deve seguir as características contraditórias e preconceituosas como a original?
Aguinaldo - Olha, esse é o grande problema. Eu acho que a Odete Roitman da época tinha aquela linguagem que servia muito para mostrar o quanto aquela mulher era horrorosa. Ela era preconceituosa, era racista e odiava o país no qual nasceu, ela achava que todo mundo era feio e tudo era sujo. Ela era um personagem horrível, mas era um personagem da época. Odete não abria a mão da linguagem dela, ofensiva, preconceituosa, tudo isso.
Hoje em dia, continuamos vendo pessoas assim, não vamos nos iludir, continuam vendo pessoas assim, só que elas usam discursos diferentes. Eu conheço muita gente que continua sendo preconceituosa, mas finge que não, faz até discursos óbvios, cheios de preconceito nas entrelinhas. A nova Odete Roitman teria que sofrer essa alteração de caráter. Ela teria que ter uma linguagem dita de maneira tal que os espectadores percebessem que ela não era sincera, que aquilo era pura propaganda.
Hoje em dia, a gente vê muitas pessoas que falam como se fossem progressistas, mas que, quando você entra mais na intimidade delas, percebe que elas são pessoas que tratam os empregados como se fossem objetos em casa, que desobedecem às regras todas de horário, de trabalho, exploram as pessoas e acham que isso é natural, que elas têm esse direito. Aí depois vão para a rua e fazem um discurso progressista.
OP - Como as novelas são capazes de impactar culturalmente o comportamento geral?
Aguinaldo - Não se iluda, nesses últimos 40 anos, foram as novelas brasileiras que conduziram a revolução de costumes no Brasil. Elas souberam dosar a coisa, as novelas não eram radicais, como eu falei, elas eram médias. Então, você ia, aos poucos, introduzindo os temas de maneira que as pessoas não ficassem chocadas com eles e se acostumassem. As novelas mudaram os costumes no Brasil, coisa que a literatura nunca conseguiu fazer. ]
Não existe no Brasil um escritor que diga que mudou a sociedade brasileira. Mas, nas novelas, tem. Eu me lembro de toda a caminhada que tivemos que dar até chegar ao beijo gay na novela. As pessoas falaram “Mas por que não teve antes?”, foi porque as pessoas ainda não estavam preparadas para isso. E a televisão não tinha sensibilidade o bastante para perceber o momento. As novelas mudaram os costumes.
Eu vou te falar uma coisa muito radical: daqui a 50 anos, quando as pessoas quiserem saber como era o Brasil de hoje, ou do final do século XX, elas não vão procurar nos livros de sociologia, elas vão procurar nas novelas. As novelas são um retrato fiel da evolução do Brasil durante esses 50 anos, inclusive em termos de costumes. Está tudo lá. E foi feito com precisão. Nunca chocou as pessoas, porque, de alguma maneira, não só os autores, mas os produtores sabiam.
Hoje nós podemos ir até aqui. Mas quem sabe amanhã a gente vá até lá, entendeu? E assim foi a lógica. A novela é um veículo muito importante para a vida brasileira e a gente não pode subestimar isso, porque, se a gente ignorar a novela, não tem mais nada. Que livro, que autor brasileiro, você acha que conseguiu modificar, galvanizar a população em torno de um tema? Não tem. Eu escrevi 16 livros e sei disso. Não estou falando de uma coisa que eu não conheço, eu conheço.
OP - E quais novelas suas você considera que tiveram esse impacto?
Aguinaldo - Bom, a primeira foi “Tieta”, sem dúvida nenhuma. Ela, que, aliás, tem texto original com passagem do Jorge Amado. Mas eu mudei a novela, porque era o fim da censura. De repente, o que a gente brigou tanto para dizer, podia dizer agora sem problema. Então, eu fui no fundo mesmo na novela.
Tem uma famosa discussão entre Tieta e o sobrinho, que passa uma travesti, e o garoto, que é um ex-seminarista, fica chocado. E ele fala para a Tieta que não é normal. Ela responde com uma dissertação sobre o que é ser normal e diz “O que você acha que é ser normal? Você é meu sobrinho e tem um caso comigo, isso é normal?”.
A gente podia falar, foi um momento, foi uma extrusão, foi “Tieta”. Depois disso, veio tudo. As pessoas verem TV sem ficar chocadas com pessoas diferentes…tudo isso mudou. Já temos galãs, que antes tinham que esconder serem gays, e que agora já falam abertamente que são gays e continuam fazendo galãs na novela. Foi um progresso muito grande que a novela trouxe para o país em temos costumes de pensamento.
OP - Você já reassistiu a uma novela sua e pensou que faria algo diferente se tivesse que reescreve-las?
Aguinaldo - Eu revejo as minhas novelas, porque todas elas foram baseadas em fatos, fatos que vivi, que eu guardei na memória, como a Maria do Carmo, aquela coisa toda da “Senhora do Destino”. Mas, quando revejo as minhas novelas, eu tenho essa consciência. A novela existe na época em que é feita. Quando ela é muito boa, você vê de novo e acha legal.
Como foi legal fazer, escrever essa cena, como eles fizeram bem, não sei o quê. Mas ela não tem mais o frescor original que tinha. Você tem que levar isso em conta. Você não espera ver e achar a novela tão moderna. Eu acho que essa coisa de “Ah.. eu faria diferente…” não existe. A novela acontece na hora.
OP - Quais obras suas você indicaria para quem quer conhecer o novelista Aguinaldo Silva?
Aguinaldo - Eu recomendaria “Pedra sobre Pedra”, “Fina Estampa” e “Império”. Seriam essas três.
OP - Por fim, como você avalia a sua presença nas redes sociais?
Aguinaldo - Eu vou falar para você porque eu entrei nas redes sociais. Eu não dava muita atenção a isso, até que, um dia, eu descobri um escândalo provocado por uma atriz, que eu não vou dizer o nome, me acusando de tê-la insultado violentamente. Ela reagiu me insultando mais violentamente ainda no perfil dela, acho que era no Instagram. E aí eu liguei para ela, tive acesso ao telefone dela, e falei que não fui eu que escrevi aquilo, que eu não tinha rede social.
O cara que se passava por mim no Twitter assinava “Aguinaldinho Silva” e tinha uma foto minha. Não fui eu que escrevi aquilo e tentei explicar que ela, que estava me insultando injustamente. Ah, mas agora eu já falei, dane-se, porque não havia como voltar. E aí eu pensei que só existia uma maneira de combater esse cara, que sou eu, criando o meu próprio Twitter e fazendo ele crescer de tal maneira que abata essa pessoa. Hoje em dia, ele já não tem mais a menor importância. Eu tenho o meu próprio Twitter, que é inclusive verificado.
Eu participo de todas as redes sociais, Facebook, Instagram, tudo por causa disso, mas eu não gosto porque sinto que a gente acaba perdendo muito tempo com isso. O TikTok é um inferno, né? Se você não se policiar violentamente, você acorda de manhã com o despertador, pega o celular para desligar e fica meia hora vendo os vídeos mais idiotas, tipo de uma vaca que cai no riacho. As pessoas ficam viciadas.
Na rua, as pessoas não andam olhando para frente. E o que elas estão fazendo da vida? Estão mandando mensagem, estão vendo o TikTok. É uma praga. Mas eu sou obrigado, não no TikTok, claro, mas eu sou obrigado a permanecer na rede social. E acho que, no dia em que eu sair, aparece um “Aguinaldo Silva” no meu lugar, com a minha foto. É um drama.
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Nascido em 7 de junho de 1943, em Carpina, Pernambuco, Aguinaldo Silva sempre foi uma criança curiosa e interessada pela escrita. O filho de Joaquim Ferreira da Silva e Maria do Carmo Ferreira escreveu seu primeiro livro aos 14 anos, intitulado “Redenção para Job”. Atualmente, o pernambucano mora em Lisboa e obteve a cidadania portuguesa
Lançado no dia 10 de julho deste ano, pouco mais de um mês do seu aniversário de 81 anos, “Meu passado me perdoa: memórias de uma vida novelesca” é a nova obra literária de Aguinaldo Silva, que reuniu lembranças de sua carreira neste projeto. O livro está disponível em vendas online e nas livrarias físicas “Arte e Ciência” e “Leitura”, em todas as suas unidades de Fortaleza
Lançada originalmente em 1987, com autoria de Gilberto Braga, Aguinaldo Silva, Leonor Bassères, “Vale Tudo” tem remake garantido para 2025 na Rede Globo, em comemoração aos 60 anos da emissora. A trama é lembrada pela polêmica vilã Odete Roitman, vivida pela atriz Beatriz Segall, que morre na trama e gera o famigerado mistério: “Quem matou Odete Roitman?”
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