Se for feita uma lista das mais importantes personagens da história do direito do Trabalho no Ceará, o nome de Inocêncio Uchôa precisa ser incluído com destaque. Na época em que os sindicatos começaram a se reorganizar, nos anos finais da ditadura militar, ele foi advogado de praticamente todos eles. Assessorou a reestruturação e apoiou as forças que saiam da clandestinidade no enfrentamento contra os "pelegos".
Nos anos de hiperinflação, esteve à frente da defesa dos mutuários ameaçados de perder a casa própria por não conseguirem pagar as prestações reajustadas muito além do que os salários podiam acompanhar, nos anos 1980.
Foi advogado dos juízes do Trabalho, da associação de magistrados, dos servidores da Justiça do Trabalho. Até se tornar ele próprio juiz do Trabalho, função na qual atuou ao longo de uma década. Entre as decisões de maior repercussão, a liminar que suspendeu o trabalho no comércio aos domingos, um marco das disputas que marcaram a década de 1990.
A história começa antes. Vem do Litoral Leste, como trazida pelo Aracati. Inocêncio nasceu na cidade que tira o nome do vento. Lá conviveu com conflito agrário, questão fundiária e ligas camponesas. Chegou a Fortaleza no período que antecedeu o golpe de 1964. Chegou à Faculdade de Direito, e ao movimento estudantil da Capital, com a ditadura militar instalada. Passou a militar em organizações trotiskistas. Foi presidente do prestigioso Centro Acadêmico Clóvis Beviláqua. Era 1968, o ano que sacudiu o mundo.
Foi preso no histórico congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE) em Ibiúna, o mesmo em que foram presos frei Tito de Alencar e José Dirceu, entre dezenas de outros. Sofreu torturas, foi condenado à prisão na ditadura, foi expulso da universidade, viveu na clandestinidade, até a anistia.
Chegou a ser candidato pelo velho PMDB, participou do processo para criação do Município de Icapuí. Tornou-se militante do PT e foi controlador-geral do Município na gestão de Luizianne Lins (PT) na Prefeitura de Fortaleza.
Inocêncio completou 80 anos em 31 de dezembro de 2024. Em conversa com O POVO, ele revisita a trajetória e conta um pouco da história do Ceará e do Brasil.
O POVO - O senhor começou a atuação política ainda em Aracati, como estudante?
Inocêncio Uchoa - Eu comecei a minha vida, comecei a ter alguma atuação autônoma mesmo no movimento estudantil lá do Aracati. Era uma coisa simples. Tinha o Centro Estudantal Aracatiense, que era filiado ao Centro Estudantal do Ceará. Na época era estudantal, não era estudantil. A gente realizava por ali alguma manifestação. Por exemplo, contra aumento do preço do ingresso cinema, coisa desse tipo. Não tinha muita coisa, mas na época eu já me preocupava um pouco com a questão social.
Havia dois conflitos agrários lá no Aracati, dois conflitos de terra. Um agrário e outro e outro fundiário, que chamavam atenção da população local. Meu pai se interessava por aquilo. Um pouco distante, que não era a dele, mas ele acompanhava, ajudava quando podia. No Cabreiro e no Fortim (hoje município). Eu já acompanhava aquilo ali, mais ou menos. A algumas reuniões eu fui. Aquelas reuniões maiores, que ia gente de Fortaleza.
Na época ia Blanchard Girão (jornalista e deputado estadual cassado pela ditadura militar), algumas pessoas de esquerda levavam jornais da época. A Classe Operária, que era do Partido Comunista. Brasil Urgente (jornal da esquerda católica). Eu já acompanhava esses lances aí. Isso era final da década de 1950 para 1960, 1958.
OP - Chegava a ter ligas camponesas no Aracati?
Inocêncio - Sim, tinha uma liga camponesa num lugar chamado Cabreiro. O líder dessa liga, que era o Américo Silvestre, depois eu me tornei amigo dele quando eu retornei da anistia. O Américo, ele liderava. Era considerado comunista pela oligarquia local, pela velha oligarquia. Ele foi um dos fundadores da Federação das Associações dos Lavradores e Trabalhadores na Agricultura do Estado do Ceará, Faltac (fundada em 19 de setembro de 1963).
Essa Faltac gerou posteriormente a Fetraece (Federação dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares no Estado do Ceará) atual. E tinha um outro conflito também, que era no Fortim. Era um conflito fundiário. Tinha um camarada que se dizia dono do Fortim. Família tradicional, bem antiga. Toda a comunidade do Fortim vivia nessa terra dele. Não teve aquele caso de Jericoacoara, que apareceu uma pessoa? Situação como aquela. “Eu sou o dono”.
Queria expulsar todo mundo, tinha ação na Justiça. Evidente que não conseguiu, mas acabou fazendo um acordo lá na época, depois que se formou o município de Fortim. Mas na época era um conflito mais ou menos pesado. Eram esses dois conflitos, Papai era dos Correios e, como trabalhador, ele observava isso, ajudava de alguma forma quando podia.
OP - Aracati chegou a ser um polo econômico e também intelectual. O Aracati da juventude do senhor ainda tinha essa efervescência?
Inocêncio - Tinha um pouco. Não estava mais no apogeu, quando as casas tinham pianos, tinha o teatro, tinha muita efervescência. Tinha jornais em Aracati. Aracati teve o primeiro jornal, a primeira gráfica. Um teatro, muito bom por sinal. Nessa época também tinha Icó, o próprio Crato, Sobral, essas cidades tinham uma elite cultural, também econômica, bem culturalizada, digamos assim. Isso foi tudo produto ainda do tempo das charqueadas. Os primeiros assentamentos de Aracati são de 1603, 422 anos. Pero Coelho de Souza, português dos Açores. Era política de governo tentar intensificar, criar, ajudar no crescimento desta região do Vale do Jaguaribe.
No Ceará não tinha desenvolvimento nenhum, zero. Pensava-se que naquela região podia ter mina de ouro, de prata. E também na Serra da Ibiapaba. O governo mandou essa expedição. Pero Coelho de Souza era o chefe. Quando eles chegaram ali no rio Jaguaribe, na foz, foi no dia de São Lourenço (10 de agosto de 1603). Ali se decidiu fazer o forte, de madeira. E deu o nome de fortim de São Lourenço. Ali foi o início do Fortim, foi início de Aracati, na verdade. Depois ele seguiu até a Serra da Ibiapaba, um dos objetivos da expedição. Passou por Fortaleza, criou o Forte de São Tiago e depois seguiu. Não encontrou prata, nem riqueza, só muita beleza natural, e voltaram. Quando chegou a Aracati, parte da expedição, do grupo, não queria mais voltar para Pernambuco, preferiu ficar lá.
Ali tinha peixe à vontade, caça à vontade, terra fértil e água doce também. Solo muito bom. Esse pessoal ficou praticando agricultura e pecuária. Isso foi que gerou o primeiro crescimento econômico do Ceará na pecuária. Acabou criando o charque. O charque foi criado em Aracati. Os antepassados dos portugueses que estavam em Aracati tinham a experiência de desidratar o peixe, para as grandes navegações. Pescado, não só o bacalhau, mas outros. Fizeram isso com o charque e acabaram criando uma grande riqueza, que era vendida principalmente para Pernambuco, ali para a Zona da Mata, onde se desenvolvia a cana de açúcar; para Bahia, café, cacau; para o Sudeste, até para o Sul do país.
Foi um desenvolvimento muito forte mesmo. Aquele casario do Aracati é todo do século XVII, da época das charqueadas. Tinha quase 180 oficinas e indústrias de charque do Aracati, que exportavam. Por isso que tinha porto. Exportava sal, charque e importava as coisas. Roupas, enfim, não só do Brasil como do exterior. Aracati chegou a ter, na minha época mesmo de jovem, ainda, duas agências de navegação de cabotagem. Tinha a Lloyd Brasileiro, que era estatal, e a Costeira, que era uma empresa privada.
OP - Quando o senhor chegou a Fortaleza?
Inocêncio - Pois bem. Além dessas duas questões, uma fundiária e outra agrária propriamente dita, tinha a questão dos trabalhadores rurais. A minha mãe, que não era uma trabalhadora rural, mas, por conta da família muito grande, tinha de trabalhar, ajudar na economia familiar, ela acabou desenvolvendo uma pequena agricultura familiar. A gente nas férias ia plantar, ia colher feijão, arroz, milho, algodão. A igreja, em 1891, o papa Leão XII, lançou uma encíclica chamada Rerum Novarum. Nesta encíclica, ele defendia o direito dos trabalhadores de terem seus sindicatos. Naquela época, sindicato era bicho papão.
Em 1848, tinha sido lançado o Manifesto Comunista. Tinha havido manifestações revolucionárias fortíssimas na França, na Bélgica, na própria Espanha, enfim, na Europa central. O mundo estava inundado de reivindicações trabalhistas. A questão sindical e da greve era o centro dessas discussões. Ele lançou essa encíclica Rerum Novarum, em que defendia que os trabalhadores tivessem um instrumento de negociação com seus patrões.
Mas não ficou só nisso não. A Igreja estabeleceu mecanismos internos próprios para ajudar nesse processo de criação dos sindicatos. Inclusive lá na Diocese de Limoeiro do Norte, da qual Aracati faz parte, o padre João Mendes, lembro-me demais dele, foi destacado para ajudar na criação de sindicatos. Que sindicatos? De trabalhadores rurais, que é o que tinha na região. Não tinha indústrias, não tinha um comércio forte.
A mamãe, que era religiosa, da equipe pastoral, ajudava na difusão das coisas da Igreja nas comunidades, como ela era trabalhadora rural, porque ela tinha agricultura familiar, ela acabou sendo uma das pessoas que fundaram o Sindicato dos Trabalhadores Rurais. Olha só. Eu nasci nesse contexto aí, a minha mãe tinha essa ligação. Eu não percebia muito bem, com muita clareza isso. Mas depois eu fui recuperando a história. A encíclica do papa em 1891, na prática, criou a estrutura dentro da Igreja para ajudar os trabalhadores. Era inclusive por uma questão de anticomunismo mesmo, para se adiantar à criação do sindicato pelos comunistas, que dominavam praticamente todo o movimento sindical mundial naquele primeiro momento. Então, quando eu vim para Fortaleza estudar, já vim com esse aporte de informações e de simpatia pelas causas populares.
OP - O senhor chegou a Fortaleza já para estudar na Faculdade de Direito. Foi em 1965?
Inocêncio - Eu entrei (na Faculdade de Direito) em 1965. Na verdade, eu cheguei de 1962 para 1963. Depois que terminei o curso lá em Aracati, abriu uma fábrica grande aqui da Brasil Oiticica, que precisava de uma pessoa lá para o setor pessoal. Havia uma funcionária que era aracatiense, ela fez um teste conosco, que estávamos na escola, e eu fui aprovado e, enfim, contratado. Então eu fiquei um tempo me acostumando com a cidade, também, um ano e pouco. Foi o tempo que teve o golpe militar de 1964. Eu entrei na faculdade já em 1965.
OP - Chegou à universidade com a ditadura se instalando.
Inocêncio - Com a ditadura instalada, em 31 de março, 1º de abril de 1964. Eu entrei em fevereiro, março do ano seguinte. Um ano depois, eu entrei na faculdade, já estavam instalados. Os trabalhadores, o Brasil estava totalmente reprimido. O golpe militar cassou todas as grandes lideranças políticas do país, de esquerda ou democráticas, enfim, que não concordavam com aquilo. Cassou os dirigentes sindicais. Estabeleceu uma ditadura braba contra o movimento sindical, tirou as lideranças sindicais mais importantes, colocou os pelegos. E baixou um arrocho salarial brutal.
Como os trabalhadores estavam todos manietados, estavam todos sob pressão, só quem podia ter algum tipo de mobilidade eram os estudantes, que eram de classe média, da universidade. E isso começou em 1965 mesmo. Em 1965, sabe que o governo levou uma grande surra eleitoral do Rio de Janeiro, com o Negrão de Lima (eleito governador do Estado da Guanabara). Eles pensavam que iam ficar… ninguém estava falando nada, era uma imprensa manietada, digamos assim, uma censura fortíssima em todos os lugares. Tinham criado aquelas aquelas comissões gerais de inquérito, todo mundo apavorado. Mas nada, levou uma surra eleitoral no Rio de Janeiro na eleição de 1965.
Naquele primeiro momento, 1965, quando eu entrei na faculdade, já começou o movimento para reorganizar a UEE, União Estadual dos Estudantes, na época. Era até o René Barreira, que depois foi reitor, que liderava. Ele e o Jânio, da Medicina. O Jânio se suicidou depois, não aguentou o tranco. Essas pessoas foram chamadas pela Polícia Federal, faz aquela pressão. Acabou que diminuiu. Mas veio 1966, 1967 até o ano 1968, que foi muito emblemático. Eu fui presidente do Centro Acadêmico lá da Faculdade de Direito. Eu fui todo o ano de 1968 presidente do Centro Acadêmico.
OP - Nessa época, havia muitas organizações de esquerda atuando. Os partidos comunistas, a ALN (Ação Libertadora Nacional). O senhor era ligado a algum desses grupos?
Inocêncio - Não, não era. Eu só sabia da existência do Partido Comunista, inclusive. Não sabia nem da existência de outros grupos, como por exemplo o PCdoB, que nasceu de dentro do Partido Comunista. E as outras, ALN, VPR (Vanguarda Popular Revolucionária), isso veio depois. Já foi dissidência da dissidência (risos). Já foi a partir de 1966, 1967. Naquele primeiro momento, só tinha o Partido Comunista, que estava proscrito, os estudante e a igreja. Tinha a JOC (Juventude Operária Católica), a JEC (Juventude Estudantil Católica), movimentos da Igreja. Mas eu não tinha nenhuma relação, nenhuma relação. Eu vim conhecer, me aproximar dessas pessoas, dentro da universidade, nos movimentos mesmo, nas lutas que a gente fazia.
OP - Quando o senhor assumiu o CA, em 68, já tinha vinculação?
Inocêncio - Aí já tinha. Já era 1968. Em 1965, com esses movimentos para reorganizar a União Estadual dos Estudantes (UEE) e também por reivindicações típicas do movimento estudantil: melhor biblioteca, currículo escolar melhor, o preço da refeição do restaurante, da residência universitária. Você vai lutando por aquilo e nesse movimento, vai se aproximando das pessoas. Foi aí que eu comecei a ver as pessoas e as pessoas começaram a se aproximar de mim também. Eu comecei a me aproximar naturalmente do pessoal da Quarta Internacional, da linha trotskista, que estava entrando também na universidade naquele momento.
OP - Com quem o senhor conviveu nesse período?
Inocêncio - O movimento estava também começando. Em 1964 tinha tido aquele rompimento, com o golpe militar. Tinha se desarticulado e tudo começava novamente. Tinha aquelas pessoas mais antigas, por exemplo, o Homero Castelo Branco, que foi presidente do Centro Acadêmico lá da Economia, que era ainda do início da época de 1964. Essa geração que já estava na universidade. Na medicina tinha o Valton Miranda, tinha o Amarílio Macêdo, que também era da Economia. Pessoas que fizeram, digamos, essa transição. Eles não foram punidos em 1964, 1965, e fizeram essa transição.
A minha geração já foi a seguinte. Aparecia o (José) Genoíno. O Genoino aparecia até um pouco depois. Aí era o Mariano Freitas, o João de Paula Arruda, a Ruth Lins Cavalcante, o Bergson Gurjão Farias. Na Faculdade de Direito tinha o Pedro Albuquerque, aí entrou Arlindo Soares e o Inocêncio Uchoa. Eu entrei nessa turma aí. Tinha o Fausto Nilo também. Fausto não chegou a ser presidente do diretório acadêmico. Ele era um militante, muito ligado à questão cultural, naturalmente.
Naquele momento, a Arquitetura era uma faculdade bem interessante, muito charmosa. Faculdade nova, perto do próprio restaurante universitário. Era uma faculdade muito interessante e cheia de gente de boa cabeça, ele e outros também.
OP - Quem eram os trotskistas na universidade nessa época?
Inocêncio - Os trotskistas tiveram origem aqui no movimento secundarista. Eles foram na direção do Centro de Estudantes Secundários do Ceará. (Cesc), secundarista, mas essa turma vai para a universidade depois. Eles levaram o trotskismo para a universidade e eu me encontrei com eles. Era o Arlindo Soares, a Nancy Lourenço Fernandes e tinha outras pessoas que se aproximaram. Desse movimento secundarista eram basicamente esses aí.
Depois, na universidade, a gente formou um grupo bastante grande. Nós ganhamos a eleição na Faculdade de Direito. A gente tinha Diretório Acadêmico de Direito, que era, é óbvio, um dos principais daqui.Faculdade grande, tradicional. Nós tínhamos o diretório da Faculdade de Odontologia também e tínhamos gente nos diretórios, por exemplo, na Agronomia, na Filosofia, gente na Medicina, nos diretórios, nos primeiros momentos. Depois a coisa se agudizou e aí era batendo chapa. Ou você ganhava ou você perdia. Os trotskistas, nós éramos minoritários, mas a gente tinha muito voto.
OP - Como era a relação dos trotskistas com as pessoas de linha stalinista?
Inocêncio - Era muito complicado. Havia um estigma fortíssimo contra os trotskistas. Além de sermos minoritários, a gente tinha contra nós o estigma de sermos trotskistas diante de uma maioria stalinista. O PCdoB naquela época era absolutamente stalinista. Centralismo democrático com regras claras. Você não pode se aproximar do trotskista, muito menos afetivamente. Era proibido namorar com trotskista ou vice-versa. A política do partidão era aquela política tradicional do revisionismo, do etapismo.
Primeiro tem de haver uma revolução burguesa, o capitalismo se instalar, criar uma burguesia nacional, nacionalista, e depois evoluir para um processo revolucionário. Algo que já tinha sido superado havia alguns anos na própria União Soviética, que não foi assim. E o PCB rompeu ali por volta de 1962. Criou então essa nova posição. O PCdoB tinha um certo avanço em relação ao revisionismo, mas continuava sendo revisionista também.
Por dois motivos principais a gente não tinha muito como dialogar. Porque eles eram, digamos assim, também revisionistas no meu entendimento e, no nosso entendimento, eles eram também, além de ter uma posição mais, digamos, acomodada, eles tinham contra nós o estigma de que o Trotsky era um traidor do socialismo etc. Em algum momento, a gente tinha conflitos muito graves. Nós éramos minoritários, o majoritário era o PCdoB, que tinha aquela linha política determinada pelo Stalin, pela União Soviética, o centralismo democrático.
Todo mundo sabe muito bem que a história real é diferente da história que está nos livros. A história é contada por quem? Por quem ganhou. Por quem venceu a guerra, por quem venceu a disputa política, por quem está no poder. Não foi diferente na União Soviética, a história foi contada pelo stalinismo. Logo, a história foi contada a favor deles. Eles não contam o que de fato aconteceu. Eles mataram milhões de bolcheviques, quase todos os originários, membros do bolchevismo, que fizeram a revolução. Isso se refletia aqui, eles não queriam aproximação com a gente.
A Faculdade de Direito tinha partidos políticos. Havia três partidos políticos da faculdade: a Vanguarda Universitária, que era da direita, nucleava ali os estudantes de direita na época. Tinha a FAN, Frente Acadêmica Nacionalista, que nucleava os estudantes de centro. Os Barreira, Ubiratan Aguiar, que foi ministro do TCU (Tribunal de Contas da União). E tinha a FLA, Frente Libertadora Acadêmica, que nucleava os estudantes de esquerda: pessoal do PCB, pessoal do PCdoB, pessoal da AP (Ação Popular), independentes — também tinha uma esquerda independente — e os trotskistas.
Como aconteceu o processo? A gente fazia uma convenção da FLA e elegia aquele que seria o candidato a presidente da próxima eleição e depois compunha a chapa para o diretório a partir dos votos que cada grupo desses tinha, dentro da eleição interna, na convenção.
Em 1967, eu ganhei para ser candidato a presidente do Centro Acadêmico Clóvis Beviláqua. O que aconteceu? O PCdoB rachou. “Não, Inocêncio a gente não apoia”. Olha só, era um processo que já vinha desde antes. “Não, não, não. Ninguém aceita, ninguém aceita”. Alegando as coisas mais estúpidas possíveis. Que não foi tão representativa a votação. Mais ou menos o que aconteceu depois na reabertura do centro acadêmico, já nos anos 1980, depois da anistia, quando o João Alfredo liderou o processo de reabertura e o Ciro Gomes, que era opositor e perdeu a eleição, dizia a mesma coisa. “Não, essa eleição não é legítima porque não teve maioria de 50% dos votos da faculdade”, coisa desse tipo.
Houve um racha grande, nós passamos dois ou três dias ali tentando. Acabou que eu renunciei à candidatura à presidência e nós aceitamos um terceiro presidente. Eu fiquei na vice e fui colocado um outro colega lá para a presidência. O que aconteceu? Rapaz, isso é antidemocrático. É uma forçação de barra. E golpe não dá certo. Resultado, a FLA rachou de uma vez. Quer dizer, em 1968 eu já fui candidato a presidente pelo meu grupo. Aliança Operária Estudantil Camponesa.
OP - Em 1967, o senhor ficou de vice. Aí, em 1968…
Inocêncio - Fiquei de vice em 1967. Em 1968, aí sim. Já me candidatei a presidente, mas não mais pela FLA. A FLA já não teve candidato. A FLA não tinha mais. Eu me candidatei pela Aliança Operária Estudantil Camponesa, com essa cara e com essa proposta. E ganhei a eleição do PCdoB com os apoiadores deles. O candidato era o Álvaro Costa. Não era do PCdoB, ele era independente.
OP - Desses três partidos dentro da universidade, a FLA, da esquerda, era a maior, então?
Inocêncio - Sim, naquele momento era a maior. Já tinha sido minoritária no começo da ditadura. O centro acadêmico foi de direita durante algum tempo. Nós retomamos em 1966. Em 1967 teve esse lance. Em 1968 eu ganhei a eleição. Qual era o programa? Claro, tinham as reivindicações estudantis, biblioteca, restaurante. E tinha as reivindicações gerais do povo.
Qual era a nossa reivindicação geral? Porque veja, a nossa luta começava, por reivindicações estudantis. Criar a União Estadual dos Estudantes, mas também por biblioteca, residência universitária, restaurante, uma melhor refeição, coisas desse tipo. Mas ao longo do processo, a gente vai vendo que aquelas questões da universidade, elas não se resolvem na universidade, elas se resolvem fora da universidade, na questão política. Porque o ministério só vai ter verba se a política nacional for favorável a ter verba. Qual era a nossa principal proposta? A criação do Partido Operário Baseado nos Sindicatos. Era o Pobs, Tem alguma semelhança com o PT, que foi criado mais de 10 anos depois. Foi com essa plataforma aí eu ganhei eleição na Faculdade de Direito.
OP - Foi um ano agitado, 1968.
Inocêncio - Começou com a morte do Edson Luís. Gerou uma indignação muito grande no país. Lá no Calabouço, o restaurante no Rio de Janeiro. Havia uma manifestação, a Polícia chegou, atirou e atingiu de forma letal o Edson Luís. Caiu ali na frente, houve uma disputa pelo corpo ali. As pessoas puxando para um lado, a Polícia puxando para o outro, até que os estudantes ganharam o corpo e levaram para a Assembleia Legislativa. Aquilo gerou toda a futura passeata dos 100 mil. Nós fizemos uma passeata de 20 mil pessoas aqui. Foi a maior passeata até então. E nós não tínhamos televisão, não tínhamos rádio, não tínhamos nada, era só no gogó mesmo no comício-relâmpago. E essa passeata, eu fui um dos organizadores. A essa altura, eu já estava muito mobilizado.
"O Maio francês (de 68) foi a primeira vez que o chamado terceiro mundo influiu no primeiro mundo"
OP - O senhor foi ao congresso da UNE, em Ibiúna, não é?
Inocêncio - Fui. Depois da morte do Edson Luís, teve também o Maio de 68 francês. Acabou mexendo com a Europa toda, começou na universidade, depois explodiu para toda a França e teve reflexo no mundo inteiro. Essas coisas repercutiam aqui. Aliás, o Maio francês foi a primeira vez que o chamado terceiro mundo influiu no primeiro mundo. O que aqueles caras tinham para reclamar na praça? Nada. Eles tinham boas faculdades, boas universidades, boas bibliotecas, bons restaurantes, tinham residências universitárias, tinham tudo.
O que eles estavam reclamando? Estavam reclamando, “é proibido proibir”. Liberdade, porque o mundo estava ficando sufocado com as guerras imperialistas. Aquilo refletia também para nós. Principalmente nós, trotskistas. Porque nós somos internacionalistas. A gente acompanhava as coisas do mundo inteiro. Então, o Maio Francês foi a primeira vez que, na humanidade, o terceiro mundo influenciou no primeiro mundo, porque eles sempre influenciaram a gente. Eles trouxeram as pessoas, eles trouxeram o idioma, eles trouxeram a religião, eles trouxeram a literatura, os costumes, até a culinária.
E dessa vez eles foram para rua proibir o ”é proibido proibir” e também por liberdade pessoal. Estava começando a ter pílula anticoncepcional. Contra os massacres imperialistas que estavam acontecendo lá no Vietnã, que a gente também saía aqui na rua para protestar.
Tinham os conflitos na Indonésia. As guerras anticolonialistas na África. A Crise de Suez. Tinha havido a independência da Índia também, a independência da Líbia e da Tunísia na África Subsaariana. As lutas anticolonialistas no Senegal, no Togo, em Uganda, no Congo. As lutas anticolonialistas de língua portuguesa, Moçambique, Guiné-Bissau, Angola.
"O mundo inteiro estava sublevado"
O mundo inteiro estava sublevado. Na África do Sul, a luta contra o apartheid. Na Rodésia do Sul, a luta antiracista americana, Martin Luther King, que tinha sido assassinado. Seria o primeiro presidente americano negro. Por outro lado, tinha Ku Klux Klan, tinha o black power. Teve a revolução cubana. A minha geração nasceu dentro desse espectro aí. A guerra do Vietnã jogava mais lenha na fogueira. O Maio Francês foi produto disso.
Aqui na América Latina, os trabalhadores lutando por liberdade. Desde Getúlio Vargas, a criação da CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), do Ministério do Trabalho, da Justiça do Trabalho. Os trabalhadores tinham um salário já mais elevado. Em 1962, eles tinham conseguido o 13º salário. O Jango, quando era presidente, desapropriou 15 km de cada lado das rodovias e ferrovias federais para a reforma agrária. Isso era o máximo. A burguesia nacional, era uma burguesia agro. Os caras ficaram desesperados. Propôs limitação da remessa de lucros para o exterior.
Foi um grande problema do Jango. E mais, o Jango começou junto com o (Gamal Abdel) Nasser (então presidente do Egito), os grandes países do chamado terceiro mundo, o Egito, a Índia, o Brasil etc., que começaram a se alinhar num bloco chamado não Brics, chamado de bloco dos não-alinhados. Não alinhados a quem? Nem ao bloco americano, nem ao bloco soviético. Isso era terrível para os Estados Unidos, que sempre queriam que a gente ficasse como uma dependência americana aqui, um quintal americano.
E o Brasil não é um país qualquer, é um país grande. Esse foi o motivo do golpe militar. O golpe militar, se você reparar, ele tem muitos objetivos, mas dois estratégicos principais. Primeiro, subalternizar o Brasil aos interesses do capital internacional. “Não, senhor. Negócio de não-alinhado, não. Volta aqui para o meu quintal”. Porque o Brasil estava crescendo, cara. Crescendo economicamente, politicamente, estava bombando no mundo, na cultura, inclusive, Cinema Novo. A geração do Chico Buarque, Capinan, Torquato Neto e Gilberto Gil. O Brasil estava bombando do mesmo jeito, igual na época da Dilma (Rousseff).
A Dilma foi do mesmo jeito. Por que houve o golpe contra a Dilma? Tirar o Brasil, subalternizar o Brasil de novo. O Brasil estava no mundo, criando os Brics, sexta economia mundial, tinha tirado o Brasil do mapa da fome, tinha descoberto o pré-sal, cara, tinha aquela riqueza toda. Então, é preciso tirar esse poder do Brasil, botar de novo debaixo da saia aqui e, claro, tirar direito dos trabalhadores, tanto num caso como no outro. Não por acaso, na época teve arrocho salarial, todo um retrocesso brutal, em 1964, dos direitos trabalhistas. E também na época da Dilma.
O que aconteceu depois do golpe da Dilma? Terceirização ilimitada, reforma administrativa, reforma da previdência, tudo para acabar e tirar direitos dos trabalhadores. Acabaram com os sindicatos, tiraram o poder dos sindicatos fortemente. Em 1964, prenderam todo mundo. Em 2016 não precisou disso. Foi parlamentar, houve um acordão, com outros métodos, cientificamente mais elaborado. Outra realidade. Mas enfim, a minha geração foi essa geração.
"Nós, inclusive, trotskistas do Brasil todo, fomos contra o congresso (da UNE em 1968) ser ali (em Ibiúna)"
OP - Eu queria chegar ao congresso de Ibiúna (da União Nacional dos Estudantes).
Inocêncio - Aí depois teve o congresso de Ibiúna (SP) em setembro. Eu fui como presidente do centro acadêmico. Nós éramos 40 e poucas pessoas do Ceará lá no congresso, de um total de cerca de 800 pessoas. Ninguém sabe exato, porque não tinha esse tipo de controle. Não se batia ponto, não se assinava lista. O congresso não aconteceu de fato, porque a Polícia acompanhou tudo. Nós, inclusive, trotskistas do Brasil todo, fomos contra o congresso ser ali. A gente achava que aquilo ali ia ser um problema danado. Todo mundo ia ser preso e ficava preso. Ia ter uma repercussão política grande, mas não passava disso. Foi o que aconteceu.
A gente queria que o congresso, nós achávamos que o congresso devia ser no Crusp, Conjunto Residencial da USP, onde moravam milhares de estudantes, sei lá, bem, umas três mil, quatro mil pessoas. Ali ia haver repressão? Haveria, mas não ia prender três mil, quatro mil, cinco mil pessoas. Muita gente que depois foi presa em Ibiúna não seria presa. Por exemplo, os nossos líderes importantes. O Vladimir Palmeira, o Zé Dirceu e outros também. Então, todos fomos presos, levados lá para o presídio.
OP - O senhor foi preso lá mesmo?
Inocêncio - Fui preso lá, todos, todo mundo.
"Fomos presos todos e passamos acho que 10 dias presos. Fizemos uma greve de fome. O Brasil inteiro pegou fogo naquele momento"
OP - Quem estava de cearense lá? Frei Tito estava lá, não é?
Inocêncio - Frei Tito estava também, não como estudante. Frei Tito foi um dos que ajudaram a organizar. Frei Tito foi o camarada que fez o contato com o dono da chácara, do sítio, originalmente, para depois acontecer o congresso. A igreja, especificamente os dominicanos, no caso do Frei Tito, apoiavam claramente o movimento, davam abrigo às lutas estudantis. Em 1968, o Frei Tito foi quem fez esse contato. Ele tinha feito movimento estudantil aqui, só que era um religioso. Não era ligado assim, organicamente, a nenhuma organização.
Eles foram presos com a prisão do pessoal da ALN, acho que da VPR também. Mas enfim, fomos presos todos e passamos acho que 10 dias presos. Fizemos uma greve de fome. O Brasil inteiro pegou fogo naquele momento. Por quê? Porque, na época, as manifestações já eram reprimidas com muita barbárie. Com violência braba de cavalos, cacetes e tiros também. Tiros. Da mesma forma que foi morto lá o Edson Luís. Aqui mesmo. Nós tínhamos feito uma manifestação aqui, que os caras atiravam.
A gente recuou lá para a Odontologia, lá para a praça José de Alencar, a bala batia assim na parede, rapaz. A gente via. Então, manifestação no Brasil inteiro, o governo recuou, teve de nos libertar. Só que aquilo gera um processo penal militar, na Lei de Segurança Nacional. Contra quem? Não contra 800 pessoas, porque isso não funciona. Contra 70 estudantes no país e 10 eram do Ceará.
"O reitor (Fernando) Leite nos expulsou da faculdade, cassou as matrículas desses 10. E aí nós ficamos na faculdade com prisão preventiva e cassados da faculdade"
OP - O senhor era um deles?
Inocêncio - Eu era um deles. Volto para Fortaleza, todos nós voltamos. Eles pegaram todos os cearenses, botaram no ônibus, entregaram lá, mandaram deixar em Pernambuco, jogaram lá com na rodoviária do Pernambuco, “se vire,”. Nós chegamos e aí a coisa continuou, e logo em seguida foi decretada a prisão preventiva, porque aquilo gera um processo penal militar contra os 70, os mais importantes do país. Uma parte não saiu, Zé Dirceu. A auditoria militar de São Paulo decretou prisão preventiva de 70 estudantes do país, 10 eram do Ceará e eu era um deles.
Da Faculdade de Direito eram uns quatro: Inocêncio Uchoa, Arlindo Soares que era trotskista, o Pedro Albuquerque e o Assis Aderaldo. Esses dois eram do PCdoB, tudo lideranças que estavam no congresso, e outros seis de outras faculdades, Ruth Cavalcante, o João de Paula, Bergson Gurjão Farias, o Patinhas, o Carlos Augusto, Patinhas, e Fausto Nilo, éramos dez. E aí o que que acontece? O reitor (Fernando) Leite (da Universidade Federal do Ceará, UFC), em razão dessa decretação de prisão preventiva, nos expulsou da faculdade, cassou as matrículas desses 10. E aí nós ficamos na faculdade com prisão preventiva e cassados da faculdade. E nós frequentávamos a faculdade, a gente não se entregava não.
A Polícia Federal foi duas vezes na faculdade me pegar, saiu de porrada de lá, de porrada. E depois veio o AI-5. Com o AI-5 os caras invadiram o diretório e nós fomos total para clandestinidade. Também houve a desmobilização. O AI-5 foi no dia 13 de dezembro (de 1968), teve o fim das aulas e aí desmobilizou tudo. Nós fomos para a clandestinidade. Eu continuei em Fortaleza ainda, porque você tem que se organizar, saber para onde vai, organizar a saída.
Nesse ínterim, nós fizemos uma reunião no DCE (Diretório Central dos Estudantes), eu não estava nessa reunião. E nessa reunião, a gente decidiu que, na volta das aulas em 1969, o ano seguinte, em março, a gente voltaria para as faculdades para denunciar o AI-5, denunciar o fechamento dos diretórios, a cassação da matrícula dos dez, toda essa coisa aí. E nós, lá do Direito, fizemos a nossa parte. Em 1º de março, a gente voltou lá, fizemos aliás uma boa manifestação, porque ainda tinha toda essa essa herança forte da movimentação anterior e ninguém aguentava o AI-5.
Isso aí foi uma ditadura braba mesmo, fechou tudo. Isso gerou outro processo penal militar contra mim, com direito a prisão preventiva. Foram duas prisões preventivas. Teve a de Ibiúna e essa outra aqui, já por por essa manifestação estudantil da Faculdade de Direito. E aí eu tive que sair daqui mesmo. Eu era do Port, Partido Operário Revolucionário, de linha trotskista. Eu tinha me filiado já nessa caminhada aí, por volta de 1965, 1966, por aí assim. Eu não sabia nem o que era, depois a gente vai compreendendo melhor o processo, mas eu ficava com as posições melhores, eu achava que o pessoal tinha posição melhor do que a dos caras do PCdoB.
"Nós, trotskistas, dizíamos que não havia como enfrentar militarmente as Forças Armadas naquele momento. Nós tínhamos de recuperar o movimento de massa. Ter paciência histórica, essa era a nossa tese"
Então, eu fui mandado para Pernambuco para militar lá na Zona da Mata açucareira. Onde tinha os conflitos de terra, não só conflitos nas indústrias, propriamente, como conflitos agrários, que tinham as ligas camponesas. A ideia era recuperar os velhos contatos que a Quarta Internacional tinha antes de 1964, que ela tinha uma certa influência, tinham vários sindicatos que elas comandavam lá no ano de 1964. A ideia então era recuperar esses velhos contatos, aquelas pessoas que ainda estavam sobrevivendo por ali, para recuperar o movimento sindical.
Naquele momento, a discussão sobre a forma de fazer revolução estava muito forte. Tinha as pessoas que eram da luta etapista, por etapas, caso do PCB. Tinha o pessoal do PCdoB, que achava que tinha de ter uma guerrilha prolongada, jogando o pessoal lá para a Amazônia. Outros defendiam guerrilha urbana — ALN, VPR, VAR-Palmares. E nós, trotskistas, dizíamos que não havia como enfrentar militarmente as Forças Armadas naquele momento. Nós tínhamos de recuperar o movimento de massa. Ter paciência histórica, essa era a nossa tese. Voltar para as bases, discutir com os caras, tentar voltar para os sindicatos, recuperar o movimento estudantil, recuperar o movimento político, voltar a ter força política para até militarmente enfrentar a ditadura militar.
Não havia como vencer o governo militar. E não deu outra. O que aconteceu? As organizações militaristas, não só aqui, mas no Uruguai, na Argentina, no Chile, elas têm aquele primeiro momento de muita euforia. A Polícia estava despreparada, não estava habituada com esses processos de guerrilha urbana e tal. Nesse primeiro momento, você vai ganhando a guerra e vai empolgando muita gente. Mas depois a Polícia vai se equipando, se articula e deu no que deu. Então, mas aí um ano depois eu fui preso lá em Pernambuco.
OP - Qual foi o ano em que o senhor foi preso?
Inocêncio - 1970. Fui preso no começo de 1970, em fevereiro, mais ou menos 20 e pouco. Fui preso pelo Dops (Departamento de Ordem Política e Social). Tem aquela primeira fase, aquela fase braba das torturas, do Dops. Todo o grupo foi preso. Nós éramos nove presos lá da Quarta Internacional. Tinha gente de São Paulo, do Rio Grande do Sul, alguns do Rio de Janeiro e aqui, Pernambuco e Fortaleza.
"Me fizeram um pelotão de fuzilamento. Eu fui fuzilado na praia. Os caras me tiraram, algemado, em pé. “Atenção, preparar e tal”. Aí escuto aquele clique. “Para, para, para”. Era uma encenação. Eu, se morresse ali, tudo bem. Só não ia morrer era reclamando. Morrer com dignidade"
OP - O senhor foi levado para onde?
Inocêncio - Tinha havido aquele processo meu aqui, eu estava com prisão preventiva. O processo estudantil, da volta das aulas, o segundo processo. Eu fui trazido para cá (Fortaleza) para ser julgado. Doutora Wanda Sidou, a nossa advogada, ela e o doutor. Pádua Barroso. Ele é primo da Ângela, minha esposa, que na época era estudante de Medicina, e também foi procurada. Então fui trazido para cá, nós fomos absolvidos, porque era um processo estudantil.
Quando nós voltamos (Pernambuco), já me entregaram para a polícia do Exército, o quartel de artilharia, a 2ª Companhia de Guardas. Passei um tempo depois eles me tiraram, levaram para o Forte das Cinco Pontas, também do Exército. Eu fui preso no forte em que foi preso Frei Caneca, da Confederação do Equador. Onde foi preso e fuzilado. Eles diziam que ali era a cela em que foi preso o Frei Caneca. Eu estou dizendo o que me diziam na época. Porque na verdade só tinha uma cela mesmo. Todo quartel tem uma cela, para prender o soldado que faz um mal-feito ali e tal, não é um presídio, não é uma prisão, é uma cela.
Depois, eles me tiraram com o Aroeira. O Aroeira era do Rio Grande do Norte, estava preso também com a gente. Nos levaram, a gente algemado, com a cabeça enfiada aqui nas pernas. Aí pararam num certo momento, tiraram Aroeira, depois a gente viria a saber que foi no quartel lá de Olinda, e continuaram comigo e entraram na praia. Na areia da praia. E me fizeram um pelotão de fuzilamento. Eu fui fuzilado na praia. Os caras me tiraram, algemado, em pé.
Eu olhava para o lado da terra e os militares olhando, atirando em direção ao mar. Que as balas que não me atingissem iriam para o mar. “Atenção, preparar e tal”. Aí escuto aquele clique. “Para, para, para”. Era uma encenação. Eu, se morrer ali, tudo bem. Só não ia morrer era reclamando. Morrer com dignidade. Acabou que me levaram para o Quartel das Cinco Pontas. Houve julgamento, depois eu fui levado para a penitenciária para cumprir pena mesmo. Ali era só presídio temporário.
"Todo mundo tinha medo de mim, eu era terrorista, né? Quando a gente foi preso, aqui os jornais noticiaram que dois terroristas cearenses foram presos em Pernambuco queimando canaviais, que a gente estaria queimando. (...) Então, todo mundo tinha medo de mim"
Cumpri pena, fui solto normalmente e fui para onde? Vim para cá. Todo mundo tinha medo de mim, eu era terrorista, né? Quando a gente foi preso, aqui os jornais noticiaram que dois terroristas cearenses foram presos em Pernambuco queimando canaviais, que a gente estaria queimando. Eles têm essa prática lá, de queimar o canavial para tirar aquele monte de folha, ficar só o caule mesmo. Perde um pouco do caldo, mas eles ganham em escala. Porque também não tem trabalho com aquela história da palha, não sabe onde botar palha, tira palha e tal.
Então, todo mundo tinha medo de mim. Fui para Aracati, me escondi no Aracati, na casa de uma irmã minha durante um tempo, para saber o que a gente ia fazer da vida. A Ângela tinha terminado o Curso de Medicina, tinha ido para o Rio de Janeiro. E aí eu fui para o Rio de Janeiro. Casamos. Ela me apoiou desde o começo, desde a prisão, foi várias vezes lá, arranjou o advogado lá em Pernambuco também, com dificuldade para se deslocar para lá.
"Tinha dificuldade com a família (de Ângela). Porque a família não aceita isso. Você cria uma uma menina arrumadinha, bonitinha, fazendo Medicina, para casar com um doutor e ela se engraça de um terrorista (risos), procurado, subversivo, procurado pela Polícia. Não tem pai que goste, né?"
Tinha dificuldade com a família. Porque a família não aceita isso. Você cria uma uma menina arrumadinha, bonitinha, fazendo Medicina, para casar com um doutor e ela se engraça de um terrorista (risos), procurado, subversivo, procurado pela Polícia. Não tem pai que goste, né? Enfim, eu fui para lá. Depois de algum tempo, o Superior Tribunal Militar (STM) aumentou a minha pena, porque eu fui condenado a um ano de prisão lá em Pernambuco. Esse já foi o quarto processo. Nós tínhamos sido condenados a um ano de prisão, eu e mais três, dos nove.
Os outros cinco tiveram penas diferentes. Nós éramos da base do partido. O Ministério Público recorreu da sentença para o Superior Tribunal Militar. Ao julgar esse processo lá no Superior Tribunal Militar, a pena foi aumentada para dois anos, aumentou para mais um ano. E eu estava solto no Rio de Janeiro. Estava lá uma certa clandestinidade, porque o momento era da época do (Emílio Garrastazu) Médici ainda. E tinha gente da organização que tinha sido preso, todo dia tinha de olhar o jornal para ver se não estava lá a sua cara ou alguma notícia, enfim. Houve o aumento de pena e o juiz expediu nova ordem de prisão. Aí já não foi prisão preventiva, era prisão mesmo para cumprir pena mesmo. Eu fiquei com uma clandestinidade mais forte, até que veio a anistia política.
OP - O senhor foi para onde? Ficou no Rio?
Inocêncio - Fiquei no Rio o tempo todo. Eu consegui trabalhar e até consegui me formar no Rio de Janeiro.
OP - Pois é, o senhor tinha sido expulso.
Inocêncio - Nós tínhamos sido expulsos por três anos. Passou 1969, 1970 e 1971. Em 1972, quando eu saí, já podia voltar para a faculdade. A Ângela tentou, eu não queria voltar. Eu tinha medo, rapaz. Eu tinha medo de ser preso novamente, ser torturado. Tortura é um negócio, é uma situação que é muito complicada até para falar sobre isso.
Eu tinha pesadelos quase todas as noites, horrível. Eu tinha medo, não queria me expor. Eu tinha conseguido arranjar emprego num pequeno escritório de contabilidade lá na Tijuca. Estava ali ganhando um salariozinho mínimo e com muito medo de ser preso, tomando mil medidas para não ser preso. Então a Angela insistindo para eu voltar para a faculdade. Aí ela conseguiu aqui em Fortaleza uma transferência da faculdade.
OP - A expulsão tinha prazo?
Inocêncio - Por três anos. É uma suspensão, Cassa sua matrícula por três anos. Em 1972, eu já podia voltar para a faculdade. Só que as faculdades federais não aceitavam. Ela foi na Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que era Universidade do Brasil na época, foi na Federal Fluminense (UFF), Uerj (Universidade Estadual do Rio de Janeiro) e nenhuma aceitava por causa do currículo, por causa desse fato aí, por causa da vida escolar. Estava lá escrito que tinha sido expulso pelas atividades subversivas.
No hospital, ela acabou descobrindo que a assistente social do hospital em que ela fazia residência médica era amiga do Candido Mendes. O Candido Mendes era titular, dono da Faculdade de Direito Candido Mendes e era um cara ligado à igreja, comendador da Santa Sé. Era um grande intelectual, um homem de bem, um homem de outro padrão, internacional. E ele ajudava muito nessa luta contra a ditadura. Denunciava a ditadura fora, nos fóruns em que ele podia falar. E ela falou com Candido Mendes e ele acabou me aceitando para fazer faculdade, só que com algumas restrições. “Você tem que entrar na faculdade, vai pra sala, sai dali, volta para casa, não fala”.
OP - O senhor se formou lá?
Inocêncio - Me formei na Cândido Mendes. Voltei a fazer o quarto ano. O detalhe foi o seguinte, é que no quinto ano, nós éramos cinco ou seis que vieram de fora também. Uma colega veio de São Paulo, outro de Minas Gerais, dois que vinham de Minas Gerais.
OP - Pelo mesmo motivo?
Inocêncio - Não, não. Ninguém sabia de nada. Inclusive um deles era policial militar de Minas Gerais. Nós fizemos então o grupo para o trabalho coletivo, trabalho de grupo. Até porque a turma que já vinha quatro anos junta, tudo de lá do Rio de Janeiro, não ia dar bola para quem chegava de fora. E, na verdade, quem fazia os trabalhos era eu mesmo. Porque aí foi quando eu pude estudar. Estudei Direito. (Antes) Eu não tinha tempo para estudar.
Antes eu não estudava mais. Pelo terceiro ano, quarto ano, já não estava nem aí. A gente queria fazer revolução, nós éramos revolucionários. Já não tinha nenhum interesse em terminar a faculdade. Ali era processo político para fazer revolução. Mas aí, nesse momento, já estava estudando. E eu tirei 10 com louvor na matéria Direito Processual Civil no quinto ano, no fim da faculdade. O professor David Canabarro, que era o titular dessa cadeira, era o juiz lá de Petrópolis (RJ). Eu nem gostava muito dele, ele era muito chique demais para meu perfil, né? Muito paparicado por quem queria se aproximar do juiz.
E ele simplesmente chegou, fez um elogio na sala e disse: "Olha, se você quiser, você amanhã vai estar empregado numa empresa de projeto de engenharia muito grande, com bom salário. Só tem um problema, você não vai fazer foro. A empresa tem um departamento jurídico dela, mas criou um departamento de contratos e você vai trabalhar na parte dos contratos. Você vai ter o seu registro como advogado, você vai ganhar como advogado, mas você não vai fazer foro”.
Era o que eu precisava. Eu ia terminar o curso e não ia advogar. Na época eu não tinha ainda conhecimento do aumento da pena, mas eu já não tinha condição de advogar. Porque, como advogado, você tem o nome no Diário da Justiça. Na época era Diário da União mesmo. Eu não tinha exposição nenhuma. E aí, pronto, eu fui para lá e fiquei até a anistia, condenado a um ano de prisão.
OP - O senhor voltou para Fortaleza com a anistia?
Inocêncio - Volto com anistia. A anistia foi em 28 de agosto. Nós voltamos em dezembro de 1979. Eu já formado, tinha havido um congresso da anistia, julho e agosto de 1979, lá no Rio de Janeiro, O Horácio Frota, professor da Uece, hoje é aposentado, ele era da Fase, uma ONG, Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional. A Fase dava assistência a trabalhadores rurais, em conflitos agrários, fundiários. Tinha a equipe que fazia o trabalho social, mas faltava um advogado, faltava um jurídico. Na época não tinha Defensoria Pública. E o Ministério Público, além de pequeno, era sempre ao lado do governo.
Não tinha as obrigações e competências que teve depois, em 1988, com a nova Constituição. Ao contrário, o Ministério Público era sistematicamente contra as pessoas, ficava sempre do lado das prefeituras, do governo. E não tinha quem apoiasse essas pessoas. Quando teve ali a questão da favela da José Bastos, quando foram fazer a avenida, ali tinha uma favela, a favela José Bastos. Eles tiveram de tirar aquela favela, não foi fácil, cacete para lá e para cá, as pessoas iam presas. Procurava dom Aloísio (Lorscheider, então arcebispo) procurava a Igreja Católica, porque não tinha Defensoria Pública, não tinha o sindicato, não tinha sindicato, era ainda da época da ditadura.
Então, dom Aloísio não tinha, muitas vezes, a quem pedir para soltar um preso, para acompanhar em uma delegacia. Aí se evidenciou a necessidade de um advogado para atender essas coisas. A Fase me convidou. Quando eu vim para cá, já estava apalavrado que eu seria empregado da Fase, eu na equipe da Fase como advogado, para atender essas coisas. A Fase tinha aqui, mas a sede era no Rio de Janeiro. Essas instituições que recebem dinheiro da Oxfam, das igrejas.
OP - O senhor atuou com vários sindicatos, na reorganização, na abertura.
Inocêncio - Quando eu chego, o Sindicato dos Bancários, que tinha sido retomado pela esquerda em agosto (de 1979), estava sem advogado. Eles queriam fazer o jurídico do sindicato dentro do sindicato. Não é que não tivesse, tinha o Tarcísio Leitão, mas era no escritório dele. Quando eu chego, e aí eles me convidaram, A (Maria da) Natividade, que era presidente, me convidou e eu criei o jurídico do Sindicato dos Bancários. Esse sindicato, esse jurídico, foi uma escola de advocacia até para mim mesmo, mas para essa nova geração que veio, toda ela. Vários presidentes de sindicato, de tribunais, procuradores da República, juízes federais, estaduais, promotores passaram pela minha mão, inclusive o Elmano (de Freitas, governador), que esteve no meu aniversário.
"99% das oposições sindicais que lutaram para recuperar o sindicato das mãos dos pelegos, quem ajudou foi eu"
OP - Foi o começo dessa atuação sindical.
Inocêncio - Eu advogava para a Fase nessas questões sociais também e para o Sindicato dos Bancários. Naquele momento, tinha havido a greve operária de São Paulo, em que surgiu o Lula da Silva, em 1979, nas grandes greves operárias de São Bernardo, que enchiam o estádio de Vila Euclides (o estádio 1º de Maio, alusão ao Dia do Trabalhador) e outras greves, em Contagem, Minas Gerais. No Brasil todo estava o movimento crescendo. Isso trazia muita gente querendo retomar suas lideranças sindicais. Eu ajudei a quase todas, não digo todas, mas acho que 99% das oposições sindicais que lutaram para recuperar o sindicato das mãos dos pelegos, quem ajudou foi eu.
Claro que gratuitamente, trabalho voluntário. Depois da Constituição de 1988, quando foi permitido, porque, na época (da ditadura), o servidor público não tinha direito a sindicato, Com a Constituição de 1988 isso foi conseguido. Aí é que apareceram o sindicato dos servidores federais, o sindicato dos docentes da UFC, todos eles eu ajudei, todos, todos, todos. Sintufce, Mova-se, Sindiute, o que você queira. Eu ajudei a criação desses sindicatos, a recomposição do movimento sindical. Nesse momento em que os sindicatos foram nascendo, as oposições foram ganhando os sindicatos, foram sendo levadas para o Tribunal do Trabalho as questões que não eram levadas antes.
Quem leva as questões na época da ditadura? Pequenas coisinhas individuais, não tinham questões coletivas e grandes. Depois é que tiveram muitas grandes questões, inclusive de planos econômicos. Quem levou isso para o tribunal? Inocêncio Uchoa, que era advogado dos Bancários e passou a ser advogado de todos eles, que iam sendo retomados. Quem é que ia ser? Tinha que ser eu, eu e essa turma que estava sendo criada por mim. Eu acho, eu não tenho dúvida de que eu ajudei ao fortalecimento da própria Justiça do Trabalho, que passou a ter demandas de real significado, diferenciadas.
Inclusive, o tribunal daqui passou a ter jurisprudências diferenciadas no Brasil todo. Por quê? Porque tinha questões grandes que estavam sendo levadas para ele. Quem conduzia isso? Era o Inocêncio Uchoa.
OP - O senhor atuou também numa questão de muita repercussão, dos mutuários da casa própria. Como é que foi essa atuação?
Inocêncio - A ditadura militar, em 1965, criou uma política habitacional. Criou o BNH, Banco Nacional da Habitação, e estabeleceu uma política habitacional para facilitar a aquisição da casa própria. Para a classe média tinha uma determinada política e para o pessoal de conjuntos habitacionais tinha uma política diferenciada, digamos, mais favorável, com taxas melhores. Como é que funciona isso? Você financiava pelo BNH, pela Caixa Econômica.
O agente financeiro era a Caixa Econômica, do BNH., ou por algum outro banco particular. Tinham vários bancos que financiavam também, aqui o BEC (Banco do Estado do Ceará), o Bradesco, os outros também. Mas a maior parte era na Caixa Econômica Federal. Como se tratava de uma prestação, de valor elevado e de muito tempo de pagamento — 15 anos, 20 anos — se você não limitar o aumento da prestação ao que o sujeito tiver no salário, aquilo dá uma distorção no valor da prestação que pode acabar levando o sujeito à inadimplência.
OP - Ainda mais com um monte de planos econômicos no meio.
Inocêncio - O que aconteceu. Eu comprei minha casa também financiada pela Caixa Econômica Federal. Você assina aquele contrato, uma ruma de papel, e vai embora. Num certo momento, o que aconteceu? Acho que foi 1985, 1986 por aí. O aumento da prestação, então, era o seguinte, para a classe média, tinha o PES, Plano de Equivalência Salarial. A prestação se reajustava uma vez por ano pelo mesmo percentual de aumento do PES do salário do mutuário.
Então, se o salário daquela categoria profissional teve 10% de aumento, a prestação só pode aumentar até 10%. Por quê? Porque se aumentar 30%, normalmente é uma prestação alta no orçamento familiar, então ela passa de 25% para 30%. Se tiver mais um aumento do outro ano, vai para 40%. Daqui a pouco não pode pagar, fica inadimplente. Aí vira uma política habitacional ao reverso. O agente financeiro ia acabar retomando o imóvel. Que política habitacional é essa? Só tem sentido acontecer se for para facilitar a aquisição da casa própria, ou então não faz.
Houve uma grita generalizada no Brasil sobre isso, porque isso era nacional. Todo mundo era mutuário, inclusive os jornalistas do jornal O POVO, do Diário, televisão, todo mundo era mutuário, classe média, tudo lá na Caixa Econômica. Um grupo começou a se reunir na Faculdade de Direito, primeira semana, segunda semana, todo mundo sem saber. O Horácio Frota, professor, me chamou, me levou lá. Resultado, sobrou para mim para estudar o problema, que ninguém sabia nem o era aquilo.
Aí eu fui ler, fui estudar o processo. Eu vi o seguinte, este era o problema: o BNH, em lugar de mandar aplicar nesse caso, na prestação, o que o mutuário teve de ganho no salário, mandou colocar a inflação. Aí as prestações subiram demais e houve a grita. O que que eu fiz? Disse: aqui cabe uma ação judicial para a gente não pagar esse valor, pagar só aquilo que a gente teve no salário. E fiz ação, ação Inocêncio Rodrigues Uchôa e outros. Eu sabia que ia ser um começo de um grande processo de natureza social. Fiz uma ação na Justiça Federal.
Os outros acho que eram umas 30 pessoas. Pedi ao juiz que suspendesse aquele percentual de aumento e permitisse à gente depositar na Justiça mesmo, todos os meses, o valor que a gente tinha tido de aumento salarial. A gente passou a depositar a prestação de acordo com o aumento do salário. O juiz deu uma liminar. Explodiu nessa cidade. Manchete para lá e todo dia eu falava na televisão, nos jornais No O POVO, apareci muito. Depois de um ano, nós fundamos a Associação de Mutuários. Eu não era nem advogado civilista, eu era advogado trabalhista.
Estava naquilo como fiz com os sindicatos, porque eu era mutuário também e o interesse na organização. Depois a gente viu que em outros estados também estava acontecendo a mesma coisa. Criamos uma coordenação nacional e fomos tão importantes que o Tancredo Neves nos recebeu, ele como candidato a presidente da República. Ele colocou no programa dele coisas que a gente tinha discutido com ele, mas infelizmente o Tancredo morreu antes de assumir a Presidência.
Quando o Collor de Mello assumiu a Presidência, ele deu aos banqueiros uma velha reivindicação. Os contratos anteriores não permitiam isso. O BNH mandou pagar de acordo com o aumento da inflação e não do salário, mas a gente conseguiu brecar isso na Justiça. E aí que os banqueiros fizeram outro tipo de contrato já prevendo que o aumento da prestação seria de acordo com a inflação. Não era mais pelo salário. Como é que pode? O Sarney acabou com o BNH, passou essa política para o Banco Central, que não tem nenhuma vocação para isso, questão social. O
Collor deu aquilo que os banqueiros queriam, que era o direito de cobrar no contrato, assinado no contrato, que o reajuste das prestações seriam pela infração e não pelo salário. Acabaram com o PES. Teve um aumento de 84,32% do Plano Collor na inflação que não foi dado no salário. E as prestações aumentaram 84% e não teve aumento no salário. E aí como é que fica? Uma prestação que já era 25% passou a ser 40% (do salário). Com mais um aumento, ela ia para 50%.
A política que não funciona. Eu já não era nem mutuário, eu tinha pago a minha casa, tinha quitado, antecipei o meu financiamento. Um belo dia estava lá no escritório, chegam lá cinco pessoas. “A gente já veio da associação”. Eram quatro senhores e uma senhora. Eu disse: “Eu não sou advogado dessa área, eu não faço isso aí”. Aí a mulher começou a chorar. “Se o senhor não me ajudar, eu tinha um sítio e um apartamento pequeno, vendi os dois para comprar esse que eu tenho agora e vou perder todos os três”. Resultado, lá vou eu de novo. Caiu para cima de mim, para variar.
Aí eu fui estudar, que eu também não conhecia melhor, já tava fora. Entrei na Justiça e consegui, cara, consegui recuperar toda essa situação. Porque nesse caso aí, veja, a lei era a favor do banco. Não era uma interpretação. A lei dizia que o banco, aquele contrato tava certo. O contrato era de acordo com a lei, tinha lei que garantia isso daí. Eu tive de provar que aquela lei era inconstitucional pelos princípios de direito, não sei o quê. Quando eu deixei a Associação dos Mutuários, eu fui presidente da associação também, eram 850 e tantos processos coletivos que eu ajudei as pessoas a manter o seu imóvel. Coletivos. Eram milhares, eu ajudei milhares de pessoas a ter o seu imóvel. Tudo de graça, sem nem um centavo.
OP - Como foi a experiência de ser candidato? O senhor foi candidato pelo PMDB ainda?
Inocêncio - Pelo PMDB. Tive uma boa votação. Foi em 1982, para deputado estadual, em parte para ajudar o PMDB do Aracati, da minha cidade. A minha cidade era uma velha oligarquia. Tinha um PMDB mais ou menos forte, tinha quatro vereadores. Na verdade, quando eu vim para cá, eu vinha pensando em ajudar o PT. Mas, quando eu cheguei lá, dos quatro vereadores, acho que dois ou três eram ligados à Maria Luíza Fontenele e ao Iranildo Pereira, que era um deputado federal do grupo autêntico. O chamado grupo autêntico do PMDB.
Eles faziam parceria eleitoral, ela era deputada estadual e ele, federal. E eles eram votados em Aracati. A minha família e meus amigos, eu nem tinha amigo no Aracati mais, já estava fora há uns 20 anos, né? Mas enfim, a minha família mesmo não aceitava ir no PT e acabei fundando o PMDB do Aracati. Fui a ficha número um do PMDB lá e fui candidato. Tive uma boa votação lá no Aracati, mas não deu para ser eu (teve 7.088 votos e ficou na suplência). Eu queria ser candidato, sim, mas era também muito para influenciar a criar ali uma base do PMDB.
OP - Voltou a concorrer em 1986?
Inocêncio - Eu fui candidato depois pelo PMDB mesmo.Tive mais votos do que o João Alfredo e o Ilário (Marques), mas eles se elegeram no PT e eu não (Inocêncio teve 12.001 votos para deputado estadual. João Alfredo teve 9.588 e Ilário, 6.086). Depois eu me candidatei pelo PT já, mas aí já estava noutra realidade. O (José) Airton Cirilo, que era nosso colega, se candidatou também, ele tinha sido prefeito de Icapuí. Porque eu também ajudei a emancipação de Icapuí.
Havia uma associação de estudantes universitários em Aracati, que eram universitários aqui em Fortaleza ou em Mossoró. Essa meninada aí, eles cresceram ouvindo falar do Inocêncio Uchoa, filho da dona Virginia Uchoa, do seu Uchoa, que ninguém sabe onde é que vive, que foi preso e tal. Aí de repente eu chego, eu era, digamos assim, uma referência para eles, esses meninos. Aí foi uma festa. Entre eles estava o Airton Cirilo, que é deputado federal do PT hoje, e o Evaldo Silva, que era um estudante de Medicina.
Na eleição de 1982, esses dois se candidataram e foram eleitos vereadores em Aracati, nós ganhamos quatro vereadores lá, nessa eleição. Dois eram desses meninos. O Airton é de Icapuí, era um distrito de Aracati, longe, lá já perto na divisa com Mossoró, no Rio Grande do Norte. Depois da eleição, o Airton começou uma luta para emancipar Icapuí. E quem é que ia fazer essa luta? Nós, Inocêncio e os amigos do Aracati. Lá mesmo no Icapui tinha um grupo pequeno de jovens, até o Dedé Teixeira, que foi deputado estadual do PT, também era desse grupo. Ele era universitário também, de Agronomia. Um pequeno grupo lá e a gente que ajudava nessa luta pela emancipação de Icapuí.
Essa coisa foi, cresceu, cresceu, e nós conseguimos emancipar Icapuí. Teve a eleição e o Airton ganhou a eleição para prefeito, do candidato da oligarquia, que era o Zé Rico. Deu certo. A família dele (José Airton) toda era contra ele. Não votou nele. Só dois irmãos que eram simpáticos a ele. O que era menor não votava, que era 18 anos (a idade para votar) na época, e o outro que votou. O resto não apoiava, porque a família dele era ligada à velha oligarquia, que foi contra a emancipação e que depois não queria que o Airton se candidatasse.
O Airton se candidatou a vereador e foi eleito no Aracati, não foi em Icapuí não, porque a família não votava nele não, foi pela minha família e os nossos jovens que a gente tinha lá. Aí o Airton ganhou a eleição. Eu era, digamos, o mais experiente, mais ou menos conhecido e presidente do partido, delegado do partido.
"Zé Airton eleito prefeito, e aí, o que você vai fazer? Onde é que você vai ficar? Em que local, com quem você vai trabalhar? E cadê o dinheiro para pagar? Não tem. Isso não aparece como uma vara de condão, não. (...) Eu era que tinha de pensar essas coisas"
OP - Ainda PMDB?
Inocêncio - Era PMDB. Depois foi que a gente passou para o PT. Airton eleito prefeito, e aí, o que você vai fazer? Onde é que você vai ficar? Em que local, com quem você vai trabalhar? E cadê o dinheiro para pagar? Não tem. Isso não aparece como uma vara de condão, não. Eles escolheram lá uma sala do colégio, tinha umas escolinhas municipais, tudo caindo aos pedaços. Escolheu lá uma sala de uma escola para ser a Prefeitura temporariamente. Porque quando vai aparecer dinheiro já com o orçamento do outro ano, é coisa de meses que vai começar a pintar dinheiro. Eu era que tinha de pensar essas coisas.
Zé Airton era estudante de engenharia, recém-formado, não sabia nem engenharia, quanto mais direito (risos). Eu fiz uma portaria, o Airton me nomeando procurador do Município, para que eu pudesse ter as condições legais para praticar os atos da administração, para não tornar esses atos nulos. Tem de ter tudo formalizado na administração pública. Preparei uma portaria assim: prefeito, portaria número 1/86: “O prefeito municipal de Icapuí, no uso de suas atribuições constitucionais e legais, nomeia Dr. Inocêncio Rodrigues Uchoa procurador do Município de Icapuí”.
E aí, vírgula, “sem ônus para a municipalidade”. Sem Ônus, escrevi na portaria. Nem pode, porque o trabalho não pode ser gratuito, nem o particular, muito menos o público. Eu sabia que não podia, mas como eu não queria receber dinheiro mesmo, porque ali era um processo de voluntarismo também. Tá lá. Primeiro documento do Município de Icapuí tem o meu nome lá.
Passei três anos como advogado do Município sem receber um centavo e saí de lá do mesmo jeito. Eu fiquei como procurador do Município durante os primeiros três anos até que a máquina administrativa funcionasse na sua inteireza. Sem ganhar nada e está lá no papel.
OP - Como foi a passagem para juiz trabalhista?
Inocêncio - Passei no concurso para juiz, em 1994. Eu passei mais de dez anos na magistratura. Eu era advogado trabalhista, era certamente o mais importante daqui. Eu era advogado de todo mundo, inclusive dos juízes do Trabalho, da associação de magistrados, dos servidores do Trabalho, todo mundo, tudo corria para mim. Eu deixei e fui para a magistratura, fiz concurso. Procurei fazer a magistratura, digamos assim, serena, prestigiando os advogados. Todos, novos, antigos, e os servidores também.
E, principalmente, procurando ser justo. Não era pelo fato de ter sido advogado que eu teria necessariamente de praticar injustiça contra as empresas. É porque as empresas realmente não pagam muito. Quando os caras vão para a Justiça, normalmente, pode até exagerar um pouco, mas normalmente tem alguma coisa realmente.
OP - Um caso de muita repercussão foi o do comércio aos domingos.
Inocêncio - Eu dei uma liminar suspendendo o comércio aos domingos em Fortaleza. Naquela época, os shoppings estavam crescendo aqui em Fortaleza, tinha chegado o Iguatemi, estava mudando essa lógica. As pessoas queriam comprar durante os domingos e os shoppings permitiam isso. E as lojas de rua, que tinha, uma concorrência desleal, acabavam querendo também abrir, e abriam concretamente. Isso era uma discussão que existia no meio jurídico e no Sindicato dos Comerciários, que eu tinha ajudado a diretoria a ser eleita, eu sou muito ligado aos comerciários.
O Ministério Público do Trabalho entrou com ação pedindo a suspensão do comércio aos domingos. E eu dei essa suspensão. Foi forte aqui, teve manchete de jornal. Eu recebi depois, da Confederação Nacional dos Trabalhadores do Comércio, um ofício me parabenizando pela pela decisão. Representando 28 federações, mais de 900 sindicatos e 13 milhões e meio de trabalhadores do comércio. Isso vigeu durante um tempo. Depois a coisa se acomodou, mas naquela época tinha essa essa briga entre eles, essa instabilidade.
Celebração
A festa de aniversário de 80 anos de Inocêncio Uchôa, em dezembro, reuniu personalidades como José Dirceu, o governador Elmano de Freitas, a deputa Luizianne Lins, Maria da Penha e os jornalistas do O POVO Plínio Bortolotti e Guálter George;
Direito
No fim da ditadura, na reabertura do Centro Acadêmico Clóvis Beviláqua, João Alfredo venceu a chapa de Ciro Gomes. Quem deu posse ao João Alfredo foi Inocêncio, que havia sido o último presidente, 11 anos antes, quando o CA foi fechado;
4ª Internacional
A Quarta Internacional é a organização comunista internacional formada pelos seguidores de Leon Trótski. Remete à Associação Internacional dos Trabalhadores, ou Primeira Internacional, de karl Marx; à Segunda Internacional, de Friedrich Engels, e à Terceira Internacional, de Vladimir Lenin
Grandes entrevistas