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"PEC das Praias": em Icapuí, povos do mar mostram que privatização já é realidade
Reportagem Seriada

"PEC das Praias": em Icapuí, povos do mar mostram que privatização já é realidade

Após retirarem cercamento irregular feito por empresa de carcinicultura em Área de Proteção Ambiental (APA), comunidades tradicionais da Praia da Placa, em Icapuí, mostram maré alta de interesses privados no litoral cearense. Terra de "águas calmas e famílias bravas" abriga biodiversidade em risco e sustento de pescadores e marisqueiras — que já assistem ao processo de erosão costeira alertar para o avanço do mar e da crise climática
Episódio 1

"PEC das Praias": em Icapuí, povos do mar mostram que privatização já é realidade

Após retirarem cercamento irregular feito por empresa de carcinicultura em Área de Proteção Ambiental (APA), comunidades tradicionais da Praia da Placa, em Icapuí, mostram maré alta de interesses privados no litoral cearense. Terra de "águas calmas e famílias bravas" abriga biodiversidade em risco e sustento de pescadores e marisqueiras — que já assistem ao processo de erosão costeira alertar para o avanço do mar e da crise climática Episódio 1
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Canoa veloz, pés molhados. O vento no litoral abranda a terra de águas calmas e famílias bravas onde o sol nasce primeiro no Ceará.

Icapuí escreve a língua do seu povo com um lápis de maresia e desenha no extremo leste do litoral um dos vários recantos que ornamentam a costa cearense.

Na divisa com o Rio Grande do Norte, a 200 quilômetros de Fortaleza, a jovem cidade com nome de origem tupi (ygara: canoa; pui: ligeira) esconde praias desertas e enormes falésias nuas que afloram à luz da lua.

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Na beleza dos cenários, porém, a água como fonte de vida e cultura testemunha, também, um tempo em mutação.

No município, que abriga biodiversidade em risco e sustento de povos do mar, pescadores e marisqueiras já assistem ao processo de erosão costeira alertar para o avanço do oceano e da crise climática.

Em meio à tramitação da chamada “PEC das Praias”, icapuienses veem uma maré alta de interesses privados pôr a proteção ambiental em xeque.

 

 

Ecossistemas costeiros, aves migratórias e peixes-bois-marinhos: a importância de Icapuí e do enfrentamento à emergência climática

Praia da Placa é o nome do lugar que Francisca das Chagas Silva, de 70 anos, escolheu para morar. Depois de herdar um terreno dos pais, dona Chaguinha, como é conhecida, construiu uma pequena barraca na região que “até poucos anos atrás não estava nem no mapa turístico da cidade”.

Essa é uma das 16 praias que banham os 60 quilômetros do litoral de Icapuí, município fundado em 1984 onde vivem cerca de 20 mil habitantes.

Rodeada de coqueirais, a localidade teve a pesca da lagosta como sua principal atividade econômica durante muito tempo. Com a escassez devido à intensa exploração do mar, porém, ganharam espaço atividades como extração de cocos, salinas e exploração de petróleo.

Dona Chaguinha, moradora da Praia da Placa há mais de 20 anos, é dona da barraca da Chaguinha(Foto: Dona Chaguinha/Acervo pessoal)
Foto: Dona Chaguinha/Acervo pessoal Dona Chaguinha, moradora da Praia da Placa há mais de 20 anos, é dona da barraca da Chaguinha

A paisagem repleta de balneários naturais e falésias coloridas atraiu dona Chaguinha: “me oferece a paz, a tranquilidade e o sossego que eu preciso”.

Uma calmaria interrompida recentemente, em junho, quando ela e os demais moradores da comunidade foram avisados que uma empresa de carcinicultura "Carcinicultura é uma técnica de criação de camarões em viveiros. O litoral do estado do Rio Grande do Norte e do estado do Piauí são as principais regiões dessa cultura no Brasil." havia instalado cercas em um trecho da praia a fim de isolar o acesso ao território.

Para atravessar ou usufruir desse local, até então público — um terreno de marinha situado em uma Área de Proteção Ambiental (APA) —, somente com autorização.

Assim que tomaram conhecimento, pescadores e marisqueiras se mobilizaram em uma luta pela derrubada do cercamento.

Após buscarem, sem sucesso, ajuda da Superintendência do Patrimônio da União no Ceará (SPU/CE) e Superintendência Estadual do Meio Ambiente (Semace), eles fizeram vídeos para denunciar a situação.

Somente depois da repercussão é que, segundo a população, o Instituto Municipal de Fiscalização e Licenciamento Ambiental (IMFLA), órgão da prefeitura de Icapuí, realizou a retirada do gradeado “irregular feito por uma empresa privada em área de preservação”.

De acordo com a gestão municipal, a medida foi tomada pelo não cumprimento das orientações, notificações e multas aplicadas pelo IMFLA. “A comunidade teve o acesso impedido à área e, após indeferimento de recursos, foi necessária a ação para reintegração do acesso”, afirma André Cavalcanti, secretário do instituto.

 

 

O fato aconteceu em meio às discussões sobre a polêmica Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 03/2022 e ilustra uma realidade que pode se tornar ainda mais frequente caso a chamada “PEC das Praias” seja aprovada pelo Congresso Nacional.

A proposta visa modificar o artigo 20 e o parágrafo 3º do artigo 49 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal, o que transfere o domínio dos terrenos de marinha "Os terrenos de marinha são áreas próximas à costa marítima que incluem praias, ilhas, mangues, assim como margens de rios e lagoas que sofrem influência da maré. Segundo a Constituição Federal de 1988, os terrenos de marinha são bens da União, ou seja, bens públicos de uso coletivo com finalidade socioambiental." para estados e municípios, mas também para “foreiros, cessionários e ocupantes” margem para a expansão de propriedades particulares. De autoria do ex-deputado federal Arnaldo Jody (Cidadania-PA), a proposta chegou ao Senado sob relatoria do senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ).

Ainda que não mencione explicitamente a privatização das praias brasileiras, povos do mar acreditam que a medida irá legalizar o bloqueio dos acessos às praias como já ocorre em outros lugares.

A presidente da Associação de Moradores da Praia da Placa, Lidiane Silva, percebe o movimento que levou a isso em Icapuí.

Ação da prefeitura derruba cerca em ocupação de área de proteção ambiental em Icapuí(Foto: Lidiane Silva)
Foto: Lidiane Silva Ação da prefeitura derruba cerca em ocupação de área de proteção ambiental em Icapuí

“Quase toda semana a gente tem uma barraca de praia aqui, chega gente perguntando se conhece alguém que esteja vendendo (terreno). Toda semana chegam pessoas especulando. De uns três anos para cá, tem tido uma procura muito grande, e com isso cresceu a cobiça”, diz.

Lidiane explica que o município abriga um importante berçário de vida marinha e ecossistemas fundamentais para a biodiversidade.

“Dentro da Praia da Placa nós temos uma parte da APA da Barra Grande "A APA do Manguezal da Barra Grande, localizado na Reserva da Biosfera da Caatinga no Ceará, tem o ecossistema manguezal como síntese das conexões entre os componentes tipicamente costeiros (planície de maré, laguna, dunas, falésias e praias) e os marinhos (delta de maré e bancos de algas). Sua relevância se dá pela problematica do desmatamento do ecossistema manguezal e da ocupação humana descontrolada na planície litorânea, com a exploração de sal e de carcinicultura, oferecendo riscos de contaminação dos recursos hídricos e despejos de efluentes e resíduos sólidos." , uma área de proteção ambiental rodeada por manguezais e cortada pelo rio que é chamado tradicionalmente de canal da Barra Grande. Ele divide a Praia da Placa da Praia do Requenguela, que hoje é conhecida por ter aquela passarela construída pela ONG Fundação Brasil Cidadão em parceria com a Petrobras”, sinaliza.

Região da Praia da Placa, em Icapuí(Foto: Elismar Santos/Arquivo Aquasis)
Foto: Elismar Santos/Arquivo Aquasis Região da Praia da Placa, em Icapuí

Ela conta: “Essa empresa de criação de camarões existe há alguns anos e foi passando de uma mão para outra até chegar nesse último arrendatário, que resolveu cercar toda a área da APA que é alagada pela maré quando a maré enche, exatamente em um lado que tem a vila de nativos, a vila de pescadores”.

E relata que “ali vivem pessoas que chegaram há mais de 30 anos, fizeram uma casinha de palha, depois de taipa e ali ficaram. E então essa empresa resolveu dizer que tudo isso é dela, até o mar”.

“Nós fomos atrás de pessoas que esclarecessem pra gente, e nós sabemos que essa área não pode ser de um empresário porque é área de marinha, e além disso é uma área de proteção ambiental. Então nós gravamos vídeos, fomos para as redes sociais, fizemos um barulhão, porque os órgãos estavam demorando a resolver. Conseguimos tirar a cerca, mas o dono da empresa continua com o processo na Justiça para tentar tirar a comunidade de onde a está”, expõe.

Icapuí, no extremo litoral leste do Ceará, fica na divisa com o Rio Grande do Norte(Foto: AURÉLIO ALVES)
Foto: AURÉLIO ALVES Icapuí, no extremo litoral leste do Ceará, fica na divisa com o Rio Grande do Norte

A líder comunitária pensa que “há algo muito maior”: “Uma pessoa dessas não está querendo essa praia e toda essa região enorme simplesmente para criar camarão. Eu acho que existem outros propósitos”.

Além de fonte de renda para pescadores e marisqueiras que residem na vila, a APA resguarda espécies marinhas da fauna ameaçadas de extinção. O litoral icapuiense abriga uma população residente de peixes-bois-marinhos que é considerada Patrimônio Natural do Município desde 2015.

Em 2023, o especial Década do Oceano, do O POVO+, acompanhou na região a saga de quatro peixes-bois resgatados com poucos dias de vida até o retorno para o lar.

PEIXE-BOI-MARINHO foi definido como "Criticamente em Perigo" na Lista Vermelha(Foto: Divulgação/Semace)
Foto: Divulgação/Semace PEIXE-BOI-MARINHO foi definido como "Criticamente em Perigo" na Lista Vermelha

O biodiverso Icapuí possui 18 mil hectares de ambientes protegidos de caatinga e mata atlântica.

O município tem as condições ideais para alimentação e descanso de aves migratórias, um movimento acompanhado e preservado pela Associação de Pesquisa e Preservação de Ecossistemas Aquáticos (Aquasis).

A ONG ainda organiza o projeto Aves Migratórias e o Festival de Aves Migratórias, em Banco dos Cajuais, localizada entre as Praias de Barreiras e Quitérias.

O fenômeno de aves migratórias ameaçadas de extinção, que chegam a viajar 32 mil quilômetros anualmente, é observado em Icapuí.(Foto: Divulgação/Aquasis)
Foto: Divulgação/Aquasis O fenômeno de aves migratórias ameaçadas de extinção, que chegam a viajar 32 mil quilômetros anualmente, é observado em Icapuí.

Tamanha diversidade explica a preocupação de Lidiane. Para ela, a discussão sobre a PEC 03/2022 “só vem a consolidar o que já está acontecendo na Praia da Placa”.

“A mídia séria precisa pensar no planeta, nós precisamos de jornalistas sérios que levem causas como essas. Nós precisamos cuidar do nosso quintal, e a Praia da Placa é o nosso quintal”, descreve.

Lidiane teme que “daqui a alguns anos, se a carcinicultura tomar conta e a PEC for votada a favor deles, a APA da Barra Grande pode se tornar um grande resort para gente rica. O pobre, a marisqueira, o pescador não vão ter acesso. O que será dessas famílias?”.

Dona Chaguinha pontua: “Os cupins, enquanto eles tiverem o que roer, ficam satisfeitos. A proteção (das cidades) não interessa aos cupins”.

Com a debate público em torno da proposta, Carlos Silva, morador de Melancias de Baixo e fundador do projeto Ecosoy, acredita que “vão ser mais frequentes tais tentativas semelhantes à que aconteceu”.

“A lei não nos assegura tão bem quanto deveria, porque existe muita resistência quando o assunto é preservar. Demanda tempo, as ações são lentas e muitas vezes não acontecem. O poder público deveria ter leis mais precisas que barrassem e punissem empresas que tentam degradar e tirar nossas riquezas”, reclama.

E continua: “Icapuí hoje é um berço para investimento eólico, o que é uma questão a ser pensada e discutida. Não deveríamos ter tantas torres próximas à população e tantas outras vindo”.

A advogada, ambientalista e professora de Direito Ambiental na faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará (UFC), Geovana Cartaxo, atesta que “a PEC não assegura a defesa necessária ao meio ambiente" e é "um enorme retrocesso na compreensão do ecossistema costeiro, que precisa ter sua dinâmica e instabilidade respeitadas e protegidas para evitar mais danos”.

Ceará terá 2º Unidade de Conservação Marítima em Icapuí(Foto: Eduardo Lacerda)
Foto: Eduardo Lacerda Ceará terá 2º Unidade de Conservação Marítima em Icapuí

“Recentemente estive em Icapuí e torna-se preocupante a erosão acelerada das praias no Ceará e no Brasil. Essa ameaça ao equilíbrio ambiental se agrava devido à agudização dos efeitos das mudanças climáticas, já alertado pelos ambientalistas desde a década de 90 e que atualmente encontra um ponto de não retorno”, constata.

O cenário se apresenta, nas palavras da professora, como um “grave desafio que precisa de medidas de adaptação”: “Tais medidas são exatamente o oposto do que propõe a PEC. É preciso restabelecer o equilíbrio da linha de costa, e não ampliar sua ocupação”.

“Uma mudança no regime dessas áreas frágeis, que muitas vezes abrigam restingas, dunas, lagoas intermitentes, provocaria um enorme retrocesso na proteção do direito fundamental ao meio ambiente equilibrado, assegurado pelo artigo 225 da Constituição Federal”, adiciona.

"Os cupins, enquanto eles tiverem o que roer, ficam satisfeitos. A proteção (das cidades) não interessa aos cupins" Francisca das Chagas, a dona Chaguinha

 

Cartaxo avalia que “essas áreas são essenciais para o equilíbrio e alimentação da linha de praia, sendo a sua impermeabilização ou ocupação definitiva causa de processos erosivos. O controle da União também propicia a garantia de acesso à praia, bem de uso público vital para o lazer, saúde, prática de esportes e bem viver em harmonia da população”.

A advogada lembra, ainda, que “a lei federal nº 7661/1988 garante o acesso às praias em todas as direções e sentidos, sendo as praias espaços vitais para diversas atividades humanas. Essa PEC ameaça esse direito de fruição ao meio ambiente equilibrado, além de agravar profundamente os efeitos das mudanças climáticas”.

 

 

Litoral do Ceará e erosão com avanço do mar: ocupação desordenada intensifica problema

A relevância das zonas costeiras tem inúmeros desdobramentos socioeconômicos, especialmente em virtude do comércio (que articula escalas e arranjos locais, regionais e globais), de portos marítimos e estuarinos, do turismo e do lazer, da sensibilidade ambiental, do papel que desempenha no contexto dos serviços ecossistêmicos e nas respostas aos processos dinâmicos do nível do mar.

Paralelamente, estudos mostram que a costa brasileira como um todo apresenta um estágio avançado de degradação.

O levantamento mais atual, de 6 anos atrás, indicava que a erosão e o acúmulo de sedimentos, a chamada progradação, atingiam cerca de 60% dos 7,5 mil quilômetros do litoral do País.

Em 1921, a praia de Copacabana era estreita e o mar invadia a avenida

Antes

Em 1921, a praia de Copacabana, no Rio de Janeiro, era estreita e o mar invadia a avenida

A ampliação da praia, com areia de áreas próximas, mitigou o problema

Depois

A ampliação da praia, com areia de áreas próximas, mitigou o problema

O impacto era maior nas regiões Norte e Nordeste, com 60 a 65% da região litorânea atingida pela erosão. Os números são do Panorama da erosão costeira no Brasil, publicado em 2018 pelo Ministério do Meio Ambiente.

A primeira versão do levantamento, de 2003, apontava um processo erosivo em 40% do litoral brasileiro — o que evidencia um aumento considerável num período de 15 anos.

No Ceará, os 573 quilômetros de costa estão distribuídos em 19 municípios e enfrentam uma conjuntura semelhante. Entre as causas, destaca-se o padrão de uso e ocupação da costa e sua interferência na dinâmica sedimentar. 

O MAR tem avançado na Praia da Peroba, no município de Icapuí, e em boa parte do litoral cearense (Foto: Acervo / Sergio Carvalho )
Foto: Acervo / Sergio Carvalho O MAR tem avançado na Praia da Peroba, no município de Icapuí, e em boa parte do litoral cearense

Isso porque o sedimento das praias, sempre dinâmico, é mobilizado e remobilizado pelo vento, ondas e marés — e quando esse processo é afetado por construções em terrenos de marinha, nem toda a areia que sai da praia consegue voltar. Forma-se, assim, um processo crônico de erosão.

O resultado é uma zona costeira estreitada e aprisionada entre o processo de elevação do nível do mar. A ocupação, muitas vezes desordenada, urbaniza áreas naturais e impede que a linha de costa se mova para se ajustar à nova realidade imposta pelas mudanças climáticas.

É o que explica o professor Jeovah Meireles, do departamento de Geografia da Universidade Federal do Ceará (UFC), que atua junto a Fundação Brasil Cidadão (FBC), organização da sociedade civil que concentra seu raio de ação nas 34 comunidades icapuienses a fim de promover o desenvolvimento local sustentável.

O Parque Nacional de Jericoacoara teve sua concessão dos serviços de visitação leiloada em janeiro de 2024 e foi privatizado por R$ 61 milhões(Foto: FCO Fontenele/O POVO)
Foto: FCO Fontenele/O POVO O Parque Nacional de Jericoacoara teve sua concessão dos serviços de visitação leiloada em janeiro de 2024 e foi privatizado por R$ 61 milhões

Ele informa que recentemente foi elaborado um parecer para evidenciar os impactos ambientais no limite do Parque Nacional de Jericoacoara, no litoral oeste.

De acordo com o geógrafo, o espaço entre a poligonal "A figura geométrica gerada a partir da delimitação de uma área a partir de dados e coordenadas coletados durante o levantamento topográfico é chamada de poligonal." da unidade de conservação (UC), que é de proteção integral, e a zona de amortecimento (ZA), que se refere às áreas localizadas no entorno, estão tomados pelo avanço do mercado imobiliário.

“Cumulativamente, isso vai gerar uma série de impactos ambientais, como fragmentar ou interceptar os fluxos de matéria e energia, trânsito de animais, interferências na dinâmica da biodiversidade e, especialmente, na morfodinâmica dos campos de dunas das lagoas costeiras”, detalha.

Fortaleza, CE, Brasil, 22-06-2016: Jeovah Meireles, geólogo e professor do departamento de geografia da Universidade Federal do Ceará. (Foto: Mateus Dantas / O Povo)(Foto: MATEUS DANTAS)
Foto: MATEUS DANTAS Fortaleza, CE, Brasil, 22-06-2016: Jeovah Meireles, geólogo e professor do departamento de geografia da Universidade Federal do Ceará. (Foto: Mateus Dantas / O Povo)

Meireles ressalta que a função da zona de amortecimento é justamente minimizar impactos ambientais na direção da poligonal dessas unidades que deveriam ser protegidas.

A movimentação contrária, com “a especulação imobiliária crescente, loteamentos, hotéis, resorts e grandes áreas privatizadas” tem acarretado problemas como “perdas de ecossistemas de áreas úmidas e de mata de restinga, soterramento de lagoas e impermeabilização do solo”.

Em Icapuí essa concepção vai na mesma direção, de acordo com o pesquisador: “uma empresa tentou privatizar uma área de terreno de marinha, com manguezais, uma área de mata de restinga, planície de marés, canais de marés. Essa forma de degradação potencializa a ocupação dessas áreas que já estão com bastante intervenções, como a construção de casas de veraneio”.

Jeovah ratifica que estudos têm demonstrado um estágio bastante avançado de erosão na linha de costa do Ceará.

“Nós fizemos a evolução, o espaço temporal dos últimos 40 anos da faixa litorânea em Icapuí e praticamente está toda em erosão. Até os setores mais protegidos, onde tem as falésias, também estão em erosão, demonstrando a energia das ondas em provocar erosão na base delas”, indica.

Como efeitos, vem o que se chama de movimento de massa: deslizamentos, desmoronamentos, corridas de lama e areia, quedas de blocos. “Isso tudo também proporciona riscos aos banhistas, aos pescadores e às marisqueiras que têm ali uma relação de subsistência”, destaca.

Com a ajuda de pelo menos 200 icapuienses e um esforço coletivo que envolveu cerca de 2 mil pessoas, a equipe da FBC elaborou o Plano Participativo de Enfrentamento às Mudanças Climáticas de Icapuí, documento em que são apresentadas intervenções para minimizar esses efeitos.

Uma das principais é a recuperação integral do ecossistema manguezal, conforme frisa o professor Jeovah.

Mangue do rio Aracatiaçú, no assentamento Barra de Moitas, em Amontada. Na foto, trecho do passeio chamado Túnel do Amor, que se estende por 180 metros dentro do manguezal(Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE Mangue do rio Aracatiaçú, no assentamento Barra de Moitas, em Amontada. Na foto, trecho do passeio chamado Túnel do Amor, que se estende por 180 metros dentro do manguezal

“O manguezal é um ecossistema propulsor da diversidade de pesca, de organismos marinhos, de suporte para a soberania alimentar de comunidades que estão próximas à linha de costa. Há aquíferos livres lá, que são justamente aqueles relacionados a cacimbas, poços artesianos. Lagoas costeiras também estão em processo avançado de salinização. Existe uma série de questões relacionadas com a subida do nível do mar”, comenta.

O fato está posto: metade da costa cearense poderá perder pelo menos 10 metros de faixa de areia até 2040 — e o município de Fortim deverá ser o mais afetado, com a perda de 436 metros para o avanço do mar. O cenário preocupante é apontado em um estudo pioneiro do departamento de Geologia da UFC.

Com o auxílio de dados de satélite e técnicas de aprendizagem de máquina para prever a situação da região costeira do estado para as próximas décadas, os resultados mostraram que 49,16% dos 573 quilômetros de costa cearense correm o risco de intensa erosão, com impactos em várias cidades dos litorais leste e oeste.

Narelle Maia é professora do departamento de Geologia da UFC e coordena o Laboratório de Geologia e Geofísica Marinha e Aplicada à Energia (LGMA)(Foto: Narelle Maia/Acervo pessoal)
Foto: Narelle Maia/Acervo pessoal Narelle Maia é professora do departamento de Geologia da UFC e coordena o Laboratório de Geologia e Geofísica Marinha e Aplicada à Energia (LGMA)

Além de Fortim, o levantamento indica que Icapuí, Cascavel, Caucaia, Paracuru, Paraipaba, Trairi, Amontada, Itarema, Acaraú e Camocim devem sofrer com o processo erosivo.

A professora Narelle Maia, uma das autoras da pesquisa, considera o prognóstico “muito grave” e alerta que a degradação pode “prejudicar demasiadamente esta região, de grande importância econômica, ambiental, social e cultural, que desempenha um papel vital na sustentabilidade e no bem-estar das comunidades locais e na biodiversidade costeira”.

Proveniente do trabalho de conclusão de curso (TCC) do egresso Luiz Henrique Joca Leite, o estudo ainda verificou o desgaste ocorrido de 1984 a 2020 no litoral do Ceará e constatou que a praia do Icaraí, em Caucaia, é um dos maiores exemplos de erosão causada pelo homem — foram 109,73 metros de faixa de areia perdidos nesse intervalo de 36 anos.

Diferente do que se considera popularmente, no entanto, os pesquisadores apontam que não foram as obras de aterro realizadas na Praia de Iracema, em Fortaleza, que causaram esse problema.

“Os molhes do Porto do Mucuripe e os espigões de Fortaleza, sim, são as causas desta erosão”, explica a professora Narelle.

De acordo com a pesquisadora, a engorda artificial de praia realizada na Capital foi feita com a dragagem (remoção) de sedimentos de zonas mais profundas para a deposição na faixa de praia, incorporando um novo volume de sedimentos à dinâmica costeira.

“Os molhes e espigões foram projetados para interromper a deriva litorânea (o movimento natural dos sedimentos ao longo da costa devido às ondas e correntes), a qual, na nossa região, ocorre de leste para oeste. Dessa forma, eles retêm não somente os sedimentos da engorda artificial da praia, mas também os da dinâmica costeira natural, fazendo com que não cheguem ou cheguem poucos sedimentos à praia do Icaraí, levando-a a processos erosivos intensos. Como as obras do porto do Mucuripe foram iniciadas na década de 1930, essa erosão é o resultado de um processo histórico”, complementa.

Obras de aterramento e requalificação do Aterro da Praia de Iracema e Avenida Beira Mar.(Foto: Alex Gomes/especial para o povo)
Foto: Alex Gomes/especial para o povo Obras de aterramento e requalificação do Aterro da Praia de Iracema e Avenida Beira Mar.

O geólogo Luiz Henrique Joca Leite complementa que a erosão (a já ocorrida no período analisado e a prevista) tem causas tanto naturais quanto por ação humana.

Ele cita os casos identificados na praia de Ponta Grossa, em Icapuí, e na Ponta Litorânea de Jericoacoara como áreas que merecem atenção e cujos processos erosivos aparentam serocasionados por processos naturais relacionados à própria dinâmica costeira desses ambientes.

“Por outro lado, nós identificamos cenários de erosão severa claramente causados por interferência antrópica (humana), como a praia do Icaraí, em Caucaia, e outros que apontam para uma possível interferência humana, mas que seriam necessários alguns estudos em escala de maior detalhe para confirmar estas hipóteses, como as erosões incipientes observadas nas pontas litorâneas dos municípios de Paraipaba e Trairi”, informa.

Situação dos espigões do Icaraí(Foto: FÁBIO LIMA)
Foto: FÁBIO LIMA Situação dos espigões do Icaraí

Estudos em maior escala sobre o assunto ainda não puderam ser realizados pela equipe do departamento de Geologia por falta de financiamento: “Por esse motivo, a pesquisa está paralisada”.

 

 

Mesmo sem vigência da PEC, País já possui praias restritas

Casos de locais que têm seu acesso público dificultado em razão de construções, cerceamentos, condomínios fechados, resorts e outros não são raridade nas praias do Brasil — e o que não faltam são casos para ilustrar isso.

Em 2017, por exemplo, o apresentador Luciano Huck foi condenado pela Justiça a pagar R$ 40 mil depois de cercar a faixa costeira onde está localizada sua casa de veraneio na Ilha das Palmeiras, em Angra dos Reis (RJ).

“Em Jericoacoara tem de pagar uma taxa por pessoa. Se não pagar, não pode nem transitar. E a taxa é diária. O nome disso é privatização. Você pode até procurar eufemismos para tentar justificar, mas pagou para entrar, é propriedade privada”, diz um corretor de imóveis que prefere não se identificar.

Parque Nacional de Jericoacoara(Foto: ICMBio/Divulgação)
Foto: ICMBio/Divulgação Parque Nacional de Jericoacoara

“Sou a favor de um parque privado, de um camping, de resorts. Mas a maior parte precisa ter livre acesso. Sou favorável à liberação de cassinos no nosso litoral e, logicamente, sou a favor da especulação imobiliária. Mas a praia tem de ser pública”, prossegue.

Do ponto de vista econômico, em entrevista à Empresa Brasil de Comunicação (EBC), o ministro do Turismo, Celso Sabino (União Brasil-PA), afirmou que a PEC apresenta pontos positivos — como uma possível maior arrecadação para o poder público e geração de emprego e renda, assim como investimentos “em locais onde não existe nenhuma infraestrutura instalada”.

Indagada pelo O POVO+ sobre a ocupação da região costeira cearense, que é repleta de empreendimentos puxados por atividades turísticas, a Secretaria de Turismo do Estado (Setur-CE) respondeu, em nota, que “a política turística do Ceará é pautada por um compromisso sólido com a preservação do meio ambiente, integrando práticas de gestão sustentável em suas estratégias de desenvolvimento”.

“É imprescindível uma abordagem que inclui regularização ambiental rigorosa, educação ambiental e investimentos em infraestrutura sustentável. No tocante a essa questão, vale ressaltar a importância da promoção de debates sobre como conciliar o desenvolvimento econômico com a preservação ambiental, garantindo que as praias continuem acessíveis ao público e que sejam protegidas de danos ambientais”, diz o comunicado.

 

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