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O rio bordado de verde: UC, Arie, APP e as linhas que demarcam e protegem o Cocó
Reportagem Seriada

O rio bordado de verde: UC, Arie, APP e as linhas que demarcam e protegem o Cocó

Maior unidade de conservação (UC) de Fortaleza, o Parque Estadual faz parte de um mosaico de UCs que recebe várias denominações ao longo da Cidade. Embora possam confundir à primeira vista, elas delimitam extensão e usos do Cocó para que fauna e flora coexistam com os humanos — e para que o rio possa contornar os obstáculos e seguir seu caminho sem que nasça limpo e morra sujo. OP+ explica cada uma dessas áreas
Episódio 2

O rio bordado de verde: UC, Arie, APP e as linhas que demarcam e protegem o Cocó

Maior unidade de conservação (UC) de Fortaleza, o Parque Estadual faz parte de um mosaico de UCs que recebe várias denominações ao longo da Cidade. Embora possam confundir à primeira vista, elas delimitam extensão e usos do Cocó para que fauna e flora coexistam com os humanos — e para que o rio possa contornar os obstáculos e seguir seu caminho sem que nasça limpo e morra sujo. OP+ explica cada uma dessas áreas Episódio 2
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Cocó é uma sala de aula a céu aberto. O rio, a mata e o que está ao redor ensinam ciências como Geografia, Biologia e História na prática, ao vivo e a cores. Dos manguezais, matas ciliares, florestas, dunas milenares e vegetação de restinga; até as questões causadas pela expansão urbana, como ocupações irregulares e a especulação imobiliária; além das ruínas das salinas e a confluência de saberes que segue a corrente do rio feito serpente e sibila para a natureza que pede para viver.

Rio Cocó no que trecho a altura do bairro São João do Tauape(Foto: AURÉLIO ALVES)
Foto: AURÉLIO ALVES Rio Cocó no que trecho a altura do bairro São João do Tauape

Ameaças de todas as espécies circundam essa região pelos quinze bairros "Segundo pesquisa realizada pelo O POVO+, são os bairros Conjunto Palmeiras, Jangurussu, Barroso, Passaré, Cajazeiras, Boa Vista, Jardim das Oliveiras, Aerolândia, Alto da Balança, São João do Tauape, Salinas, Cocó, Cidade 2000, Manoel Dias Branco e Sabiaguaba." que a maior Unidade de Conservação (UC) de Fortaleza atravessa: da nascente à foz, da zona nobre à periferia, do bairro Cocó ao Conjunto Palmeiras.

Não é de hoje que se fala em incêndios florestais, desmatamento, despejo de lixo, ligações clandestinas de esgoto, plantas invasoras, dentre vários outros problemas que, ao longo de décadas, pressionaram pela delimitação do Parque Estadual do Cocó, que já recebia denominações anteriores de alguns trechos como Área de Preservação Permanente (APP) do Rio Cocó, Área de Proteção Ambiental (APA) do Vale do Rio Cocó e Área de Relevante Interesse Ecológico (Arie) Dunas do Cocó, porém não possuía uma demarcação total oficial.

Foram 40 anos de uma luta do movimento ambientalista e da sociedade civil fortalezense para garantir que esse patrimônio biológico (espécies, habitats e ecossistemas), paisagístico e cultural ficasse protegido das ações humanas — até que, em 2017, o PEC finalmente foi regulamentado e passou a ser categorizado como uma Unidade de Conservação (UC) de Proteção Integral. Mas, na prática, o que isso significa?

 

 

O biodiverso mosaico das UCs

O que o Parque Nacional de Jericoacoara, o Monumento Natural dos Monólitos de Quixadá e o Parque Estadual do Cocó têm em comum além de estarem no Ceará e serem amostras exuberantes da natureza?

Todos são unidades de conservação (UCs) de proteção integral. Esses ambientes e tudo o que eles proporcionam são tão fundamentais na manutenção da biodiversidade e dos recursos naturais a sua volta que precisaram ser assim denominados para que fossem protegidos por regimes de leis específicos que garantam a sua preservação.

No caso das UCs do Brasil, o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (Snuc) é o responsável por padronizar e instituir os critérios para criação, legislação, manejo e gestão de áreas protegidas em nível federal, estadual e municipal.

Tipos de UC de proteção integral do Brasil


As UCs também têm papel importante na conservação de espécies raras ou ameaçadas de extinção, na preservação ou recuperação das características naturais de ecossistemas, no estímulo ao desenvolvimento local sustentável, na promoção de pesquisas científicas e atividades educacionais, na proteção de locais de grande beleza cênica, de importância arqueológica ou cultural, e na promoção do turismo ecológico.

No Parque Estadual do Cocó, transformado em UC de proteção integral em 2017 — a maior de Fortaleza —, o regime jurídico fica bem mais restritivo e protetivo, com previsão também na Lei de Crimes Ambientais e no decreto 6514/2008, que possui uma subseção para estipular a dosimetria das Infrações Cometidas Exclusivamente em Unidades de Conservação.

Essa previsão legal dá um maior embasamento à atuação da gestão ambiental (Sema), da fiscalização e monitoramento (Semace) e do Batalhão de Policiamento Ambiental (BPMA), um aparato que, embora pareça suficiente, ainda apresenta fragilidades para que seja efetivo.

Imagem aérea mostra contraste em área do Parque Estadual do Cocó atingida por incêndio em janeiro de 2024(Foto: AURÉLIO ALVES)
Foto: AURÉLIO ALVES Imagem aérea mostra contraste em área do Parque Estadual do Cocó atingida por incêndio em janeiro de 2024

O biólogo e vereador Gabriel Aguiar (Psol), que é mestre em Ecologia, explica que algumas categorias dadas a trechos do PEC antes de ele ser uma UC de proteção integral (APA e Arie, por exemplo) constituem um mosaico e têm a sua importância, mas são UCs de uso sustentável, um outro tipo de unidade de conservação.

“A grande diferença é que aquelas de uso sustentável convivem com a propriedade privada e também com algum nível de exploração mais direta, enquanto que as de proteção integral são bem restritas e só permitem educação ambiental, pesquisa científica, ecoturismo, atividades de baixíssimo impacto na sua vocação, na biodiversidade, na riqueza daquele local acima de qualquer coisa”, desenvolve.

Ou seja, conforme prossegue Aguiar, “ninguém pode morar, ocupar, desmatar, nem construir absolutamente nada no Parque. A única exceção a essa regra em UCs de proteção integral são comunidades tradicionais. No caso do Cocó, só há a Boca da Barra da Sabiaguaba, a Casa de Farinha, nas dunas da Praia do Futuro, e uma justaposta que é a comunidade Olho D’água. Fora essas, todas as construções, ocupações e usos diretos são ilegais e crimes ambientais”.

 


A ideia do mosaico é manter conectadas essas unidades, que conservam muito melhor a biodiversidade se estiverem juntas do que se isoladas. No entorno do rio Cocó existem vários espaços protegidos: APA da Sabiaguaba, Parque Natural Municipal de Sabiaguaba, Parque Linear Adahil Barreto e Arie Dunas do Cocó.

O que, por outro lado, também preocupa ambientalistas pela fragmentação desses lugares ou falta de articulação e diálogo entre os entes estadual e municipal responsáveis pela gestão deles.

No campo nacional, Maria Tereza Jorge Pádua, ambientalista conhecida como a “mãe dos parques nacionais do Brasil”, critica o sistema pelo excesso de categorias de unidades de conservação.

Pádua ajudou a criar mais de 8 milhões de hectares em áreas protegidas no País, entre reservas e parques como o da Chapada Diamantina e do Atol das Rocas. Em entrevista ao ((o))eco, plataforma independente de jornalismo ambiental, ela apontou que “há categorias com os mesmos objetivos”.

“Reserva biológica e estação ecológica poderiam ser uma só categoria, refúgio silvestre e área de relevante interesse ecológico também poderiam ser uma só. O mesmo para Reserva de Desenvolvimento Sustentável e Reserva Extrativista”, disse.

 

 

Dos parques nacionais, apenas 60% possuem plano de manejo

As unidades de conservação da categoria parques (nacionais, estaduais e naturais municipais) têm a difícil missão de promover o contato sustentável entre o ser humano e a natureza. Ao todo, o Brasil possui 74 parques nacionais, mas apenas 60% deles apresentam Plano de Manejo (PM).

Esse documento tão citado por especialistas que abordam as problemáticas em torno de UCs é nada mais nada menos do que obrigatório para todas elas. Isso porque ele é um detalhamento minucioso elaborado a partir de diversos estudos e diagnósticos com a função de mostrar como aquela UC pode ser utilizada, sempre com o intuito de minimizar os impactos sobre os recursos existentes.

A partir da criação da UC, de acordo com a Lei Nacional de Conservação, há um prazo de cinco anos para a oficialização do PM. No caso do Parque Estadual do Cocó, o plano foi finalizado e publicado em 2020, três anos depois de ser criado, e tem mais de 600 páginas de dados, informações históricas, mapas e delimitações.

É nele que consta o zoneamento do PEC: há zonas como as de preservação, conservação, adequação ambiental, infraestrutura, diferentes interesses públicos, uso comunitário tradicional e outras, cada uma com suas especificidades — como mostra o mapa a seguir.

Ao dividir a UC em zonas, o Plano de Manejo estabelece regras diferenciadas de proteção para cada pedaço de área, com diferentes graus de proteção aos recursos naturais, além de integrar a área de proteção ambiental à vida econômica e social das comunidades ao entorno.

Entenda o que significa cada zoneamento do PEC

Isso explica, por exemplo, por que as trilhas permaneceram fechadas mesmo após o trabalho de combate ao incêndio que atingiu o Parque em janeiro de 2024 ter sido concluído.

Além da quantidade de poeira e cinzas deixada pelo fogo, que pode causar problemas respiratórios, e das árvores com estrutura comprometida, que podem oferecer risco de queda, animais que habitam a região se deslocaram para esses trechos da floresta na tentativa de se proteger do incêndio.

Prova disso é a família de raposas que se alimentava na área e foi avistada pelas equipes, o que, de acordo com a Sema, já demonstra o retorno da fauna silvestre ao local. Durante o sinistro, a pasta chegou a orientar que algumas espécies poderiam buscar refúgio em residências e ruas próximas, uma vez que o entorno é repleto de condomínios, comércios e vias de trânsito.

Animais que compõem a fauna silvestre do Cocó


Daí a importância de se manter tais espaços sem movimentação humana além da de cientistas, geógrafos, biólogos e demais especialistas responsáveis por avaliar os impactos das chamas.

“A presença de pessoas pode impactar sobremaneira esses animais”, disse, em nota, a Secretaria, que também ressaltou que o local se trata de uma Unidade de Conservação (UC) de proteção integral do tipo Parque Estadual, o que implica restrições legais quanto ao trânsito de pessoas e a realização de atividades sem a devida autorização do órgão gestor, que é a Sema.

Seguir essas recomendações é determinante para preservar o Parque porque elas obedecem ao que está no Plano de Manejo, onde essa região do incêndio é listada como uma Zona de Preservação. Isso significa que lá só é permitido que se pratique pesquisa restritiva (quando impossível de ser realizada em outras zonas da UC), monitoramento, proteção e fiscalização — “não sendo admitida a implantação de qualquer infraestrutura”, acrescentou o informe.

Antes x Depois: área atingida por incêndio no Parque do Cocó


Isso também recai sobre galpões industriais, depósito de veículos, estabelecimentos, moradias e outras mais de mil edificações que estão dentro dos limites da zona de amortecimento "Área que circunda e delimita todo o entorno do Parque e separa, na teoria, da proximidade com o contato urbano para reduzir os efeitos de borda, impactos e interferências do entorno sobre os ecossistemas os quais se pretende proteger"  do Parque por toda a Cidade.

Existem, por exemplo, áreas comerciais que se estendem por vias importantes como as avenidas Rogaciano Leite, Engenheiro Santana Junior e Padre Antônio Tomás — essa última que cruza o principal shopping da região, com vias, estacionamento e uma estação de tratamento de esgoto.

Moradores da comunidade da Boca da Barra, na Sabiaguaba, contam que quando o shopping despeja água tratada no rio é possível perceber a chegada dela na foz, inclusive com episódios de mortes de peixes devido aos produtos químicos utilizados no tratamento.

Vista aérea da Ponte da Sabiaguaba sobre o rio Cocó(Foto: FÁBIO LIMA)
Foto: FÁBIO LIMA Vista aérea da Ponte da Sabiaguaba sobre o rio Cocó

Em resposta a esta reportagem, a administração do shopping declarou: “desde o início da criação do Iguatemi, o empreendimento se consolidou como um negócio que possui processos e ações muito bem definidos, olhando com muito cuidado e responsabilidade para a atuação aplicada em nosso meio”.

“Em sua inauguração, em 1982, foi implantada a mais moderna estação de tratamento de esgoto da época, gerando 100% de tratamento de esgoto e reaproveitamento de água. Realizamos campanhas de conscientização e educacionais, principalmente com alunos de escolas públicas”, continua.

“Atuamos também na coleta seletiva de resíduos, onde mais de 40% dos resíduos gerados são encaminhados para a reciclagem. Como exemplo, somente no 2º semestre de 2023, deixamos de enviar mais de 216 toneladas de resíduos para o aterro sanitário”, pontua.

Trecho do rio Cocó na altura do bairro Jangurussu(Foto: AURÉLIO ALVES)
Foto: AURÉLIO ALVES Trecho do rio Cocó na altura do bairro Jangurussu

A maioria desses empreendimentos já existiam antes da criação do PEC, mas já eram parcial ou totalmente irregulares pelo fato de estarem na Área de Proteção Permanente (APP), de acordo com o Plano de Manejo.

Um deles é o pequeno conglomerado “du Parc”, formado pelos edifícios Bougainville du Parc, Flamboyant du Parc, Lis du Parc e Tulipe du Parc. Na descrição dos apartamentos para venda, a “vista eterna para o Parque do Cocó” é apresentada como um ponto positivo para aquisição. Mas até que ponto essa afirmação é verdade?

Quem caminha pelas trilhas da parte de maior uso público do PEC repara: os quatro possuem portões que dão acesso direto ao Parque. Ao O POVO+, fontes afirmam que os moradores costumam utilizar a área mesmo após o fechamento das trilhas e, inclusive, na companhia de animais domésticos — o que é proibido em virtude da presença de fauna silvestre na região.

Portões na trilha

Imagem capturada pelo Street View do Google Maps após os relatos recebidos mostram os portões que dão acesso direto ao PEC pelos edifícios "du Parc"

Portões na trilha

Outra fonte informou que há uma associação dos condôminos que reivindica o direito de permanecer com os portões sob o argumento de que os edifícios foram construídos antes da criação do PEC, mas representantes do Conselho Gestor avaliam a colocação de um muro

A reportagem procurou a construtora Marte, responsável pelos empreendimentos, para questionar sobre a construção dos acessos diretos ao Parque nos quatro prédios e, em virtude das características do terreno, localizado em uma região de mangue e duna, pedir detalhes a respeito das intervenções que foram necessárias para erguê-los.

Um engenheiro da empresa informou, sem permitir que a repórter detalhasse as dúvidas, que só poderia atender a equipe depois de conversar com os proprietários, que estavam em viagem. Por telefone, a secretária da construtora demonstrou rispidez e afirmou que o engenheiro seria a única pessoa que poderia responder a imprensa como representante, pois teria participado da construção. Até o fechamento desta matéria, porém, nenhum retorno foi obtido.

Já um corretor de imóveis responsável pela venda dos apartamentos desses condomínios, após ser procurado, fez capturas de tela da troca de mensagens com a repórter e enviou, por engano, para ela mesma — que visualizou imediatamente, antes que ele apagasse. Questionado sobre o motivo dos prints e de tê-los deletado, o corretor deu apenas uma resposta vaga.

A reportagem buscou, ainda, a Associação de Condomínios e Empreendedores da Rua G (Acerg) pelos meios de contato disponíveis, mas não teve sucesso. O endereço da associação privada fica na Avenida Engenheiro Santana Junior, 2977, onde atualmente funciona um supermercado da rede São Luiz, na frente da rua que dá acesso aos “du Parc”.

 

 

De canteiro de obras a esgoto a céu aberto, 40 anos de luta para salvar o Cocó

Para entender a existência de tantas nomenclaturas até a regulamentação como UC de proteção integral em 2017, é preciso fazer um breve resgate do que levou a essa que é considerada a “maior conquista ambiental de Fortaleza nos últimos anos”, nas palavras do professor de Geografia e História Artur Bruno, que era o secretário do Meio Ambiente na época.

“Foram 40 anos de uma luta muito forte pela criação e regulamentação do PEC, já que os decretos anteriores (o de 1989, que criou o Parque Ecológico, e o de 1993, que decretou a desapropriação das áreas) não tinham mais validade e nunca se tinha definido uma área total. O governador Camilo Santana ampliou o que se pensava como terreno original, e assim foram delimitados os 1.581,29 hectares que conhecemos hoje”, conta.

Os decretos a que se refere o professor fazem parte de uma série de determinações que marcaram a existência dessa unidade no decorrer da sua história, como a formação da Área de Preservação Permanente (APP), estabelecida no Código Florestal pela Lei Federal Nº 4.771/1965, e da Zona de Preservação Ambiental (ZPA), definida pelo Plano Diretor de Fortaleza através da Lei Complementar 62/2009.

Linha do tempo: a regulamentação e demarcação do PEC


Sob intensa pressão popular, sobretudo de ambientalistas do SOS Cocó, que já se movimentavam num período em que sustentabilidade era uma palavra ainda mais distante do dicionário e das agendas públicas do que é hoje, a administração municipal criou, em 1986, a Área de Proteção Ambiental (APA) do Vale do Rio Cocó.

Essa reivindicação surgiu mais fortemente depois que o terreno onde funcionavam as salinas Diogo, antes um extenso manguezal, foi vendido para o grupo Jereissati, que construiu o shopping Iguatemi (hoje Iguatemi Bosque), inaugurado em 1982, em uma área que não era resguardada — mas sim fatiada em propriedades particulares num pedaço que acelerou as mudanças e a ocupação na zona leste da Cidade.

Em 2007, os movimentos ambientais se uniram na tentativa de barrar a construção de uma torre empresarial do shopping na APP do Parque. Entre as manifestações, uma no show do cantor Caetano Veloso e outra em uma corrida no estacionamento do Iguatemi em que jovens ficaram nus.

Trecho do rio Cocó na altura do bairro São João do Tauape(Foto: AURÉLIO ALVES)
Foto: AURÉLIO ALVES Trecho do rio Cocó na altura do bairro São João do Tauape

Houve coleta de assinaturas para respaldar a retirada da licença, mas o movimento fracassou e hoje a torre segue em pleno funcionamento — uma obra que, junto com a de prolongamento do estacionamento, penetrou cerca de 200 metros na mata (como mostra a imagem acima, em que a torre aparece no canto direito).

De acordo com um relatório técnico da Secretaria de Meio Ambiente e Mudança do Clima (Sema), o shopping “contribuiu fortemente para a crescente urbanização da área de seu entorno e consequente redução e apropriação indevida das áreas de manguezal, promovendo, assim, a pressão no ecossistema”.

Questionada, a administração do Iguatemi Bosque assegurou que “todas as edificações realizadas respeitaram rigorosamente as leis de ocupação do solo e o Plano Diretor do período, e foram feitas com a obtenção das licenças e alvarás necessários”.

Campo de dunas parabólicas 'hairpin' no segmento leste de Fortaleza. As dunas estão identificadas através das linhas em vermelho. Fonte: Foto aérea da empresa Cruzeiro do Sul, de 1968. (Foto: Reprodução/Cruzeiro do Sul)
Foto: Reprodução/Cruzeiro do Sul Campo de dunas parabólicas 'hairpin' no segmento leste de Fortaleza. As dunas estão identificadas através das linhas em vermelho. Fonte: Foto aérea da empresa Cruzeiro do Sul, de 1968.

Até a definição da poligonal do Parque, foram vários outros episódios: no Natal de 2008, pessoas se lançaram na frente de tratores e pararam as máquinas quando caminhões e retroescavadeiras subiram as dunas sem a licença de nenhum órgão ambiental para remover a vegetação da área. No local seria construído o loteamento Jardim Fortaleza.

Arie Dunas do Cocó

Região da Arie Dunas do Cocó (Antes)

Imagem captada em maio de 2008 por integrantes do movimento "Salvem as Dunas do Cocó" mostra a região dunar antes da intervenção realizada por tratores a mando de empresas da construção civil

Arie Dunas do Cocó

Região da Arie Dunas do Cocó (Depois)

Registro de dezembro de 2008 revela a área de vegetação que foi destruída pelas retroescavadeiras e o desmonte de uma duna provocado pela ação

Após idas e vindas na Justiça, o caso levou à criação da Lei 9.502/2009, de autoria do ex-vereador João Alfredo, que delimitou a Área de Relevante Interesse Ecológico (Arie) Dunas do Cocó para preservar 15 hectares de dunas parabólicas "As dunas parabólicas têm forma em meia-lua, ou croissant, com braços dispostos longitudinalmente à direção do vento principal, antecedendo o corpo principal. Esse tipo de duna, conhecido como “grampo-de-cabelo” em virtude das expressões que se prolongam, potencializa a formação de ecossistemas particulares." de 2.700 anos de idade, um dos últimos resquícios dessas feições pela cidade.

Em 2013, durante outro capítulo marcante, o Greenpeace chegou a se manifestar sobre uma decisão judicial que autorizou a construção de dois viadutos na região: “De fato, a obra é polêmica. Em primeiro lugar, por confiar na expansão do espaço viário como forma de solucionar o problema de congestionamento, o que significa insistir em uma falácia muito criticada pelos especialistas”.

“Os carros se comportam como gases, quanto mais espaço há, mais espaço ocuparão, pelo fato de que a melhora no tráfego estimula mais pessoas a utilizarem o carro, levando ao congestionamento novamente. Em segundo, mas não menos importante, por não ter contado com participação popular e ser uma obra que não considera um planejamento de médio e longo prazo da mobilidade da cidade, voltado para a priorização de outros meios de transporte – como a bicicleta, transporte coletivo e andar a pé – que não o carro”, alertou.

Imagem aérea do viaduto do cocó (Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE Imagem aérea do viaduto do cocó

Há, ainda, uma “grande cicatriz que foi deixada pelas salinas”. É o que afirma o pesquisador Luis Ernesto Arruda, professor do Instituto de Ciências do Mar da Universidade Federal do Ceará (Labomar/UFC) e coordenador do programa Cientista Chefe do Meio Ambiente, da Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Funcap).

Luis Ernesto aponta que as ruínas parcialmente encobertas pelo verde, que tenta tomar de volta a sua composição original, não são os únicos vestígios deixados pela exploração salineira: há trechos tão fragilizados pela concentração de sal no solo que a vegetação não conseguiu se regenerar com a mesma força — ainda que já tenham se passado mais de quatro décadas.

Embora sejam raros os registros fotográficos dessa época, documentos antigos também permitem a reconstituição da trajetória natural do rio: quando se compara cartografias dos anos 1940, 1950 e 1960 com atuais, por exemplo, é possível observar as curvas sinuosas que existiam no passado, antes de o leito passar pelo processo de dragagem que mudou consideravelmente o curso do Cocó em um trecho próximo à foz.

Antes x Depois: Dragagem do rio próximo à foz


Além das mudanças no modo de vida de comunidades tradicionais ribeirinhas que viviam da pesca e coleta de mariscos, a chamada retificação do rio suprimiu cerca de 50 hectares de vegetação de mangue (42% da área anterior, que passou 117 para 68 hectares) com a finalidade de diminuir o acúmulo de sedimentos (assoreamento) "É o nome dado ao acúmulo de sedimentos (areia, terra, rochas, lixo, material orgânico) levados até o leito dos cursos dágua pela ação da chuva, do vento ou do ser humano. Isso pode causar prejuízo ao fluxo e vazão dos rios e até a extinção de vida neles, já que pode reduzir o volume de água, torná-la turva e impedir a entrada de luz, o que dificulta a fotossíntese e tem sérios efeitos." e facilitar o escoamento da produção das salinas.

>> No terceiro e último episódio desta série de reportagens, O POVO+ aborda as extensões e tensões que percorrem a cidade pelo rio Cocó a partir da confluência de saberes de quem convive ou conviveu de perto com esse importante recurso hídrico cearense.

"Oie :) Aqui é Karyne Lane, repórter do OP+. Te convido a deixar sua opinião sobre esse conteúdo lá embaixo, nos comentários. Até a próxima!"

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As extensões e tensões ao longo Cocó

Série de reportagens mostra as tensões ao longo do Rio Cocó e do Parque estadual, a maior unidade de conservação de Fortaleza