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Peixes-bois à procura do lar: as histórias de Tico, Mirim e os filhotes Cora e Ponga
Reportagem Seriada

Peixes-bois à procura do lar: as histórias de Tico, Mirim e os filhotes Cora e Ponga

O encalhe de peixes-bois marinhos no Ceará ocorre principalmente pela degradação de áreas de manguezal e estuários. No segundo episódio da 2ª temporada do especial Década do Oceano, OP+ conta a história de quatro peixes-bois resgatados com poucos dias de vida e a saga até o retorno para o lar
Episódio 5

Peixes-bois à procura do lar: as histórias de Tico, Mirim e os filhotes Cora e Ponga

O encalhe de peixes-bois marinhos no Ceará ocorre principalmente pela degradação de áreas de manguezal e estuários. No segundo episódio da 2ª temporada do especial Década do Oceano, OP+ conta a história de quatro peixes-bois resgatados com poucos dias de vida e a saga até o retorno para o lar Episódio 5
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Aos que estão desfamiliarizados com os manguezais, uma síntese: são berçários de águas calmas e salobras, cheios de nutrientes. Constituídos por mangues, árvores de longas raízes, o ecossistema abriga aves, crustáceos, mamíferos terrestres e centenas de répteis, anfíbios, peixes e mamíferos marinhos. Todos buscam o acolhimento do manguezal para parir e cuidar de recém-nascidos.

 

 

 

Os manguezais do litoral leste recebem mamães peixes-bois após longas gestações de cerca de 12 meses; após o parto, elas ainda amamentarão os filhotes por mais dois anos. O sucesso da população da espécie realmente depende da sobrevivência de cada indivíduo, especialmente porque o nascimento de gêmeos são incomuns.

Como o mar cearense impõe um desafio a mais para as mães — as águas são agitadas e o vento forte —, elas recorrem à calmaria dos manguezais e dos estuários. Ou pelo menos o faziam, quando essas regiões conferiam segurança.

De acordo com o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), no Atlas dos Manguezais do Brasil, estima-se que 25% dos manguezais em todo o País tenham sido destruídos desde o começo do século XX. “A situação é particularmente séria nas regiões Nordeste e Sudeste, que apresentam um grande nível de fragmentação e onde estimativas recentes sugerem que cerca de 40% do que foi um dia uma extensão contínua de manguezais, foi suprimido”, descreve a publicação.

A principal causa da destruição de manguezais e estuário é a atividade humana. No Ceará, a especulação imobiliária — visando, por exemplo, o turismo — e a aquicultura "No Estado, representa principalmente a produção de camarões em cativeiro, mas também de peixes, moluscos, algas e outras espécies de interesse econômico." são duas das principais responsáveis apontadas pelos pesquisadores ouvidos pelo O POVO+. A expansão agrícola, ocupação de indústrias marginais de manguezais, terrenos para construção civil, esgoto doméstico e tratamento de resíduos também influenciam a degradação dos manguezais.

A especulação imobiliária em dunas e falésias também afeta os peixes-bois, porque impacta a oferta de água doce para esses animais.

Como o ecossistema é reconhecidamente um berçário, o Brasil tem se esforçado para garantir a conservação e preservação dos manguezais remanescentes. Ao todo, são 120 unidades de conservação com manguezais no interior (sendo 55 federais, 46 estaduais e 19 municipais), cobrindo 87% de todo o ecossistema em território brasileiro. No Ceará, 43% dos manguezais são protegidos por alguma unidade de conservação. A maioria (39,98%) são de uso sustentável, enquanto outros 3,02% são de proteção integrada.


Unidades de Conservação que cobrem manguezais no Ceará

Use o scroll do mouse ou os dedos (no celular) para dar zoom no mapa. Clique nos polígonos coloridos para acessar mais informações

 

Enquanto isso, a degradação dos ecossistemas tem forçado os peixes-bois a parir em águas agitadas. Por consequência, são cada vez mais comuns casos de recém-nascidos encalhados, ainda com partes de cordão umbilical presos aos pequenos corpos, arrastados para a costa, para sempre separados das mães.

 

 

A saga de reabilitação de peixes-bois

Foi assim que os filhotes Cora, de um ano, e Ponga, 9 meses, foram parar no Centro de Reabilitação de Mamíferos Marinhos (CRMM) da organização não governamental (ONG) Aquasis, em Caucaia (CE). Por enquanto, tudo o que eles conhecem é o tanque o qual dividem e a rotina de alimentação, aleitamento e brincadeiras. Passam os dias nadando e descobrindo do que os corpos são capazes, estimulados por diversos objetos colocados nos tanques pela equipe técnica do Aquasis.

Cora é especialmente apegada às boias e bambolês. “Mais nova, ela tinha uma boia de melancia que ela entrava e ficava apoiada boiando, literalmente”, relembra Andressa Fraga, bióloga e integrante da equipe de Resgate e Reabilitação de Mamíferos Marinhos da Aquasis. O intuito dos objetos é garantir que os animais tenham contato com diferentes sensações, formatos e desafios para terem condições de solucionar problemas e sobreviver ao natural. “A gente faz blocos de gelo para dar uma sensação diferente, de algo que eles não conhecem. Aí colocamos o vegetal nesse bloco de gelo para eles terem um esforço para conseguir o alimento”, descreve.

 

 

Outra estratégia é colocar os vegetais acoplados a prensas de madeiras no fundo do tanque, para simular o processo de mergulhar e arrancar os capins-agulha in natura. Algo parecido também é feito nas bordas das piscinas, uma adição de enriquecimento ambiental estimulada após a soltura da peixe-boi Pintada. “Ela nos mostrou a necessidade dos bichos aqui entenderem que a comida pode estar acima da água. Ela ficou em uma região de mangue, onde as folhas ficavam próximas à água, e ela não levantou a cabeça para comer. Ela acabava esperando as folhinhas caírem e ficarem boiando para se alimentar”, comenta a bióloga.

Entre os 12 peixes-bois em reabilitação, dos filhotes aos adultos, a Aquasis oferece cerca de 200 quilos de alimento diário. A dieta depende da idade e do peso dos animais e envolve repolhos, acelga e capim terrestre, servidos duas vezes ao dia. “Eles são animais que têm o hábito de ficar forrageando, eles não se deslocam grandes distâncias num dia. Então a gente tem que estimular para que eles tenham o comportamento de forrageio por boa parte do dia dele”, comenta a bióloga.

 

Observação: o CRMM como um todo não pode ser visitado pelo público geral. Existe no Sesc Iparana um centro de visitantes da Aquasis, com exposição, mas a área de tanques onde vivem os peixes-bois e outros animais resgatados é fechada. OP+ teve autorização para entrar pelo caráter de divulgação e conscientização da reportagem. No entanto, os animais não foram tocados e não tiramos fotos dos peixes-bois mais adultos.

 

O enriquecimento ambiental também existe para evitar os comportamentos estereotipados, ou seja, aqueles que não têm função específica e são geralmente percebidos em animais mantidos em cativeiro, sob cuidados humanos. “A gente vai tentando simular dentro das nossas limitações e estimular comportamentos naturais, porque o ambiente de cativeiro é um ambiente monótono e pode fazer com que eles tenham comportamentos estereotipados, como ficar sugando a borda da piscina”, exemplifica Andressa.

 

 

Cora e Ponga, o “irmãozinho” mais novo, irão passar de tanque em tanque na Aquasis até virarem adultos e estarem prontos para o cativeiro de aclimatação, localizado na Praia da Peroba, em Icapuí (CE). Lá, os peixes-bois ficam em um cercado de 14mx8m com três metros de profundidade, montado em novembro de 2019, onde poderão assimilar como será a vida livre. No momento, quatro animais estão em aclimatação (Chiquinho, Estevão, Rutinha e Flor), onde devem ficar no mínimo seis meses, apesar da tendência ser que o processo dure um ano. Se tudo der certo, Chiquinho deve ser liberado em janeiro de 2024.

Desde a montagem do cativeiro, a Aquasis soltou cinco peixes-bois: Maceió, Pintada, Maní, Tico e Mirim. Infelizmente, Maceió faleceu um tempo após a soltura, enquanto Maní perdeu o equipamento de rastreamento, impedindo os pesquisadores de concluir onde e em que condições ela está. A esperança é de que esteja bem e cumprindo com seu papel ecossistêmico.

 

Local de encalhe e dados dos peixes-bois Cora, Ponga, Tico e Mirim

Passe o mouse nas imagens dos peixes-bois e vejo os detalhes de resgate, soltura e localização dos animais

 

Pintada passou pela reintrodução duas vezes, já que na primeira oportunidade viajou até o litoral oeste (onde dificilmente os peixes-bois do Ceará habitam) e perdeu peso pela pouca oferta de alimentos. Hoje, ela vive tranquilamente nas águas de Icapuí, por vezes ao lado de Mirim, cuja história vamos conhecer no final da reportagem.

Tico, por outro lado, é um caso à parte. Solto em julho de 2022, quando tinha sete anos, o peixe-boi marinho teve um deslocamento errático e foi parar na Venezuela. Agora, a Aquasis luta contra o tempo pela repatriação.

 

 

O movimento #VoltaTico

Quanto Tico encalhou, ele tinha poucos dias de vida. Ele era um desses casos difíceis de registrar de peixes-bois gêmeos, tendo sido arrastado para longe da mãe junto com o irmão até a Praia das Agulhas, em Fortim (CE). Pesando 30 quilos (kg) e medindo 1,21 metro (m), o ainda pequenino peixe-boi foi resgatado no dia 15 de outubro de 2014.

Tico encalhado com menos de um dia de vida. Ao fundo, é possível ver o irmão dele, também encalhado(Foto: Acervo Aquasis)
Foto: Acervo Aquasis Tico encalhado com menos de um dia de vida. Ao fundo, é possível ver o irmão dele, também encalhado

A recomendação ao encontrar mamíferos marinhos encalhados é nunca retorná-los ao mar imediatamente. Se houve um encalhe, é porque algo está errado, e o animal pode até estar doente e sofrer mais se voltar à água. Por isso, as ONGs ambientais pedem que os banhistas e moradores que tenham presenciado um encalhe mantenham a hidratação do animal (tomando cuidado com as narinas dos peixes-bois e espiráculo de baleias e golfinhos, orifício no topo da cabeça, para não se afogarem) e o protejam do sol. No Ceará, ligue imediatamente para a Aquasis pelo telefone (85) 99800 0109 (WhatsApp/24h) ou para os Bombeiros, número 193.

Tico ficou em reabilitação na Aquasis por sete anos e foi solto no dia 6 de julho de 2022. Todos os peixes-bois liberados recebem um rastreador preso à cauda por um tipo de cinto, permitindo que os pesquisadores monitorem a adaptação dos bichos. Por dois dias, ele se manteve em Icapuí, como é esperado. Os peixes-bois marinhos não costumam fazer deslocamentos longos, exploram as águas próximas até definirem uma área de vida.

Tico no dia da soltura(Foto:  Acervo Aquasis)
Foto: Acervo Aquasis Tico no dia da soltura

No terceiro dia, porém, Tico começou um deslocamento estranho para o litoral oeste cearense. Mais tarde, chegou em águas profundas, habitat totalmente diferente e sem disponibilidade de capim-agulha ao alcance. A equipe começou a ficar preocupada, mas o pior veio a seguir: o peixe-boi ficou exposto às correntes marinhas oceânicas e começou um deslocamento errático inédito.

Em 45 dias, Tico viajou do Ceará à Guiana Francesa, adentrando águas internacionais em agosto de 2022. O caminho era tão inusitado que os pesquisadores pensavam que ou o rastreador tinha se perdido, ou Tico estava morto e sendo arrastado sem resistência pela água. Mesmo assim, a equipe ainda acompanhou os sinais por terra até o estado do Amapá, na tentativa de resgatá-lo. Tudo sem sucesso.

Mapa do deslocamento do Tico.(Foto: Iury Tercio Simões de Sousa)
Foto: Iury Tercio Simões de Sousa Mapa do deslocamento do Tico.

O cenário mudou quando um sinal de GPS indicou que Tico estaria próximo à Ilha de Tobago (em Trindade e Tobago), dica confirmada por pesquisadores locais. O peixe-boi estava surpreendentemente vivo e relativamente bem. A saga ganhou traços internacionais, com a equipe da Aquasis viajando até o país para capturá-lo, mas Tico deixou o local antes e foi em direção ao caribe venezuelano.

Foi somente no dia 5 de setembro de 2022 que Tico foi resgatado por autoridades da Venezuela e, posteriormente, levado ao Parque Zoológico y Botánico Bararida, na cidade de Barquisimeto. “O deslocamento de mais de cinco mil km realizado por Tico é provavelmente o mais longo já registrado para um peixe-boi, sendo que, em alguns pontos, ele se deslocou-se a mais de 500 km da costa”, descreve a Aquasis. “Esse movimento é considerado errático e mostra uma desorientação, visto que Tico continuava nadando e não parou para explorar fontes de comida e de água doce, possivelmente inexistentes no percurso devido à distância da costa.”

Equipe da Aquasis realizando monitoramento pós soltura do Tico(Foto: Acervo Aquasis)
Foto: Acervo Aquasis Equipe da Aquasis realizando monitoramento pós soltura do Tico

Já se passou um ano de Tico no zoológico venezuelano e de luta para repatriar o animal. Com a hashtag #VoltaTico, a Aquasis tenta conscientizar o público do porquê o retorno do peixe-boi é essencial para a conservação da espécie: pesquisas indicam que os peixes-bois marinhos do Ceará são genética e morfologicamente diferentes dos de outros locais, o que torna a reprodução dele com outros indivíduos não recomendada. Por isso, a soltura dele na Venezuela é inviável. Além disso, a presença dele no Estado envolve todos os serviços ecossistêmicos oferecidos pela espécies e abordados no episódio 1 da segunda temporada deste especial.

Segundo Andressa Fraga, bióloga da Aquasis, a Venezuela já aceitou devolver o animal mediante pedido oficial vindo do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA) e/ou do Ministério de Relações Exteriores. 

Em nota enviada ao OP+, o Itamaraty afirmou que enviou às autoridades venezuelanas, pela Embaixada do Brasil em Caracas, um projeto de importação, reabilitação e soltura do animal e solicitou o apoio do governo da Venezuela para a expedição de carta de aceite de parte do zoológico onde se encontra Tico.

 

 

Reabilitação funciona, e o Mirim pode provar

As histórias de resgate de mamíferos marinhos são, por essência, agridoces. Há tristeza ao ver um recém-nascido arrastado da mãe (como será que elas ficam após a perda do filhote?) por culpa da degradação humana, mas há esperança em alcançá-lo a tempo de oportunizar uma reabilitação. Assim como há expectativas de repatriar Tico ainda com tempo para uma nova reabilitação e soltura, com sorte antes dos 12 anos de idade, o prazo máximo de libertação estipulado pela Aquasis.

Nesses momentos, ouvir as vivências dos sobreviventes e reintegrados é sinônimo de força. Essa é a história de Mirim, a prova de que todo peixe-boi um dia pode voltar ao lar.

Mirim no dia da soltura(Foto: Acervo Aquasis)
Foto: Acervo Aquasis Mirim no dia da soltura

Mirim foi resgatado duas vezes. A primeira foi no primeiro de dezembro de 2014, recém-nascido assim como nossos outros personagens, na Praia Ceará, em Icapuí. Os banhistas que encontraram o animal até tentaram devolvê-lo ao mar, sem sucesso; logo, as equipes da Aquasis e do Projeto Cetáceos da Costa Branca (PCCB) foram acionadas. Ele foi avaliado por médicos veterinários e recebeu um tratamento de suporte, sendo monitorado por um dia em uma piscina de plástico portátil.

Monitorando a região na manhã seguinte, as organizações perceberam que dois adultos de peixe-boi estavam perto do encalhe de Mirim, sem se afastar. Concluindo que eles poderiam ser familiares do pequeno, e considerando a boa saúde do bebê, ele foi devolvido ao mar. “Após a soltura foi realizado monitoramento e observado a interação do filhote com os dois animais. No dia seguinte, a equipe do PCCB monitorou a área, não avistando mais os animais”, relata a Aquasis.

Quase um mês depois, no dia 28 de dezembro, a Aquasis recebe outro alerta de encalhe. Um pescador avistou um animal encalhado próximo a um banco de ostras na margem do Rio Jaguaribe, em Fortim (CE). Cheio de ferimentos infeccionados na cabeça e no dorso, caquético e com uma enorme bolha de insolação no tórax, mais tarde confirmou-se geneticamente que aquele era ninguém mais, ninguém menos do que Mirim.

Mirim em atendimento pós encalhe(Foto: Acervo Aquasis)
Foto: Acervo Aquasis Mirim em atendimento pós encalhe

Pesando somente 20kg e com 1,03m, o estado dramático de Mirim foi revertido no CRMM. Oito anos depois, após a reabilitação e a aclimatação, no dia 17 de abril de 2023, o peixe-boi pode voltar completamente para o lar. Desde então, ele continuou na região de Icapuí, saudável e cumprindo com sua missão ecológica.

“As pessoas precisam entender a importância do ecossistema marinho para a gente também”, reflete Andressa. A conservação de toda a fauna e flora não é somente um direito de vida e bem-estar da biodiversidade, mas é também a única maneira de garantir um mar saudável e rico para os humanos. “A gente precisa de mais educação ambiental sobre o ecossistema marinho. O terrestre é muito mais visual, enquanto o marinho tá ali submerso. As pessoas têm um conhecimento muito pequeno sobre o que está acontecendo lá embaixo.”

Ao lado da bióloga Cinthya Leite, também da equipe de Resgate e Reabilitação de Mamíferos Marinhos, elas citam que apenas a educação ambiental é insuficiente para contornar o problema. É preciso também investimento em pesquisas científicas, injeção financeira para campanhas educativas e de conscientização, criação de espaços de educação ambiental e estímulo ao turismo responsável de observação e contemplação.

 

Esta é a segunda temporada da série de reportagens especiais Década do Oceano, do O POVO+. A primeira temporada aborda, em três episódios, a importância do Oceano para a vida humana, as ameaças ao ecossistema marinho e como as mudanças no mar são sentidas por comunidades tradicionais. Confira as reportagens no site Década do Oceano.

 

Expediente

  • Texto Catalina Leite
  • Edição OP+ Fátima Sudário e Regina Ribeiro
  • Recursos digitais e infográficos Catalina Leite
  • Identidade visual Cristiane Frota
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