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Já não posso sofrer no ano passado
Reportagem Seriada

Já não posso sofrer no ano passado

Domitila Andrade, jornalista do O POVO, escreve sobre a virada de ano diferente, que sucedeu um ano histórico e conturbado, e reflete sobre como podemos encarar o novo ano que iniciou nesta sexta-feira, 1º
Episódio 1

Já não posso sofrer no ano passado

Domitila Andrade, jornalista do O POVO, escreve sobre a virada de ano diferente, que sucedeu um ano histórico e conturbado, e reflete sobre como podemos encarar o novo ano que iniciou nesta sexta-feira, 1º
Episódio 1
Tipo Opinião Por

O céu não se alumiou no show pirotécnico de fogos, com as luzes se repetindo no espelho da orla. Mas teve contagem regressiva! Sim, sim, um tanto quanto mais silenciosa que em anos passados, é verdade. E teve beijo e abraço com os nossos, aqueles que já convivemos e dos quais não prescindimos. Teve também fila na entrada da lotérica, aplicativo congestionado, naquela fezinha de virar o ano milionário. Não teve os pés molhados de sal e água, saltitando quase ébrios sete vezes - a superstição antiga de desejar sorte, esse item raro. Quer dizer, para alguns afortunados, até teve. Mas não com aquele marzão de gente que a vista não alcança o fim e que se mistura com o outro mar. Não tiveram aglomerações permitidas e, quando aconteceram, só serviram para nos mostrar que há quem passou por esse ano e não aprendeu o mínimo.

Um ano que, a contar pelas páginas em branco das agendas, terminou em março, que deixou tudo em suspenso, para fazer "parauano"... Tudo parou, só não deu trégua a dor em muitos lares. Um pesar que permanece com a imaterialidade muito densa das ausências. Os impropérios e desgovernos também não cessaram, pelo contrário, persistiram para demarcar de forma clara que a pandemia não era passageira - era pois a comandante desse ano que findou (graças ao Tempo, sabedor e curador de tudo), mas permanece, lastimavelmente manchando 2021, quiçá 2022.

 

Um ano com cheiro de álcool em gel, em que nos acostumamos com home office, máscara, aula remota, higienizar as compras, videochamada, lockdown, lives. Um ano em que olhamos para dentro, para nossa casa, enchemos de plantas, de novos sabores, vivemos de saudades, criamos novos hábitos, outras rotinas, que estivemos em silêncio, que precisamos nos fortalecer. Um ano sem ar, com ansiedade, que faltou fôlego para muitos. Para Floyd, Miguel, Beto... Um 2020 que também vimos o poder do povo preto insurgir, gritar que basta, escancarar que essas vidas importam. Em que a solidariedade aflorou para alcançar quem padecia. Um 2020, que já no apagar das luzes, se pintou de verde na Argentina e nos mostrou que lutar é verbo que se conjuga juntas.

Entre tantos desalentos e também alguns lampejos de humanidade, nos resta, pois, agradecer. Não ao que vivemos ou deixamos de viver. Belchior, feito oração, enche as paredes de casa, enquanto traço esse recado, e não posso me furtar de me considerar, sim, um sujeito de sorte - por ter sobrevivido, o que não foi tarefa das mais fáceis. Nos espreitou o vírus, mas não só. Para muitas famílias, a pandemia foi de fome, de desemprego, de violência, de saúde mental fragilizada.

Neste 2021 que rebentou calmo, como dia qualquer, sem pompa e com simplicidade, vasculhemos no coração o que nos resta de esperança. É necessário. Um amigo, desses que usam óculos de realidade muito crua, me disse que a esperança é subterfúgio dos iludidos, ou algo assim. Mas a vida, ainda mais depois de um ano como 2020, carece de alguma esperança. E, se me permitem uma incursão morfológica, não da que deriva da espera, e sim da que vem de esperançar, alentar, encorajar. A vitrola agora me diz que o mundo inteiro está neste ano ali em frente e, sim, já é outra viagem. Que a nossa pressa de viver venha acompanhada de vacina, saúde, compaixão e alguma sensatez. Que uma hora o tempo vira e que, nesse ano novinho em folha, possamos seguir sonhando.

 

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