No terceiro mês de 2025, os prefeitos que tomaram posse em 1º de janeiro já finalizaram diagnósticos da máquina, estabeleceram prioridades e alguns já têm os primeiros projetos encaminhados. Mas, em dois municípios do Sertão cearense, dois governantes eleitos em outubro de 2024 ainda nem tomaram posse. Um deles está preso. O outro está foragido da Justiça e da Polícia.
Os municípios de Santa Quitéria e Choró, os vencedores do pleito de 2024 entraram no radar de investigações ou do Ministério Público (MPCE) ou da Polícia Federal (PF).
O prefeito eleito no primeiro município está em prisão domiciliar, em Fortaleza, e é alvo de investigações por suspeita de envolvimento com facção criminosa durante o período eleitoral.
O segundo, está foragido desde dezembro, após investigação por suspeita de compra de votos com verbas de emendas parlamentares, e ainda não foi localizado.
Independentemente dos motivos que levaram, levam ou levarão vencedores de pleitos a não assumirem os cargos, as perguntas da população são, em suma, parecidas: “A quem a gente cobra?”; “Vai ter nova eleição?”; “O prefeito volta quanto?”. Já dizia o cearense Patativa do Assaré, coisa estranha, incomum, inverossímil, é se deparar com prefeitura sem prefeito.
“Ainda que alguém me diga que viu um mudo falando e um elefante dançando no lombo de uma formiga, não me causará intriga, escutarei com respeito, não mentiu este sujeito. Muito mais barbaridade é haver numa cidade prefeitura sem prefeito”, narrou o poeta do sertão em trecho de um dos seus poemas de caráter político.
Intitulado "Prefeitura sem prefeito", o escrito fez com que Patativa fosse preso, por 15 minutos, pelo então prefeito de sua terra natal (Assaré), segundo ele mesmo narra. A peça, no caso, ironizava a ausência do gestor ao ser procurado pelo poeta no seu local de trabalho. O relato foi feito pelo escritor em entrevista a Jô Soares.
Na prática, Santa Quitéria e Choró têm prefeitos que exercem os cargos. Os presidentes das câmaras legislativas assumido os respectivos Executivos interinamente. Entretanto, eles não foram eleitos para essa função.
Por isso, O POVO viajou para ambos os municípios, distantes 222,5 km (pela BR-020) e 188 km (pela BR-020) da Capital, respectivamente, e verificou como está o cotidiano daqueles locais e das pessoas.
A reportagem conversou com moradores, líderes políticos, agentes públicos e vereadores (esse último grupo apenas em Santa Quitéria), que relataram o andamento das gestões interinas e as perspectivas sobre o futuro. Além disso, a equipe dialogou com representante do Ministério Público em Santa Quitéria, sobre as investigações que envolvem o prefeito preso e desdobramentos.
Onde ficam os municípios de Santa Quitéria e Choró
Sob tensão na segurança (com a atuação das facções criminosas) e ambiental (com questionamento sobre a exploração de urânio), o maior município cearense em área territorial, com 4.262,293 km² - Santa Quitéria - também é palco de instabilidade política proporcional ao seu tamanho.
A população viu o prefeito reeleito, José Braga (PSB), o Braguinha, ser preso no dia da posse e impossibilitado de assumir, na esteira de investigações da Polícia Federal (PF) e do Ministério Público (MPCE) que envolvem suspeitas de envolvimento com facção criminosa para ganho eleitoral.
Além disso, o Legislativo local teve uma das eleições mais acirradas para a mesa diretora, na qual o vereador Joel Barroso (PSB), filho do prefeito Braguinha, foi eleito para um terceiro mandato consecutivo como presidente da Câmara, sendo questionado por outros parlamentares, que alegam ilegalidade na eleição.
Decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de 2021 proibiu três mandatos consecutivos na presidência de câmaras municipais. A Justiça, inclusive, tem revertido eleições recentes em legislativos de alguns municípios, dentre eles alguns no Ceará como em Pindoretama. Legislativos de municípios como Altaneira e Canindé também enfrentam situação similar na Justiça.
Entretanto, alguns gestores argumentam que a decisão do Supremo é posterior à eleição que os conduziu a presidência. Segundo eles, nesta lógica, só contaria a eleição seguinte e uma única recondução. É baseado nesse entendimento que presidentes das casas legislativas municipais pelo Brasil tentam judicialmente garantir a legalidade de um terceiro mandato.
Embora tenha sido eleito presidente da Câmara, Joel assumiu a posição de prefeito interino após a prisão do pai.
O POVO chegou a Santa Quitéria numa manhã de quinta-feira chuvosa e conversou com moradores, que preferiram não se identificar, por timidez ou desejo de manter o anonimato, dando apenas seus relatos e opiniões sobre o dia a dia e o caso.
“Fui ao hospital e a outros locais e fui bem atendida”, disse uma mulher. Outra citou Braguinha: “Era um bom prefeito. Fez muito pela cidade”. Uma comerciante lamentou a instabilidade e as repercussões do ponto de vista econômico. “O comércio parou um pouco. Ninguém sabe se fica, se vai, aí o povo para de comprar”, conta.
Outras pessoas falaram do desejo de que a situação se reverta e que o prefeito retorne: “Eu peço a Deus que seja ele que volte”, disse uma moradora. “Ele vai ser solto”, projetou outro.
Também há aqueles que reclamam: “Isso prejudica a cidade toda. A maior bandeira não cobre a decepção”, disse uma pessoa ao ser perguntada sobre o motivo da prisão.
O POVO também foi à Câmara Municipal. De cara, na entrada do prédio, uma escadaria imponente e íngreme surpreendeu repórter e fotógrafo, que escalaram a estrutura para chegar ao coração do Legislativo quiteriense.
No local, uma funcionária telefonou para o prefeito interino Joel, que informou que não estava na cidade e marcou de falar com a equipe do jornal no dia seguinte (o que não ocorreria). As atenções, então, se dirigiram aos vereadores e a reportagem conversou com quatro parlamentares naquele dia.
Membros da base e da oposição à gestão interina estavam em reunião da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ). Os vereadores Lino Paiva (PSB), Douglas Lira (PP), Cesário Júnior (PP) e Pé de Mola (PT) atenderam a equipe do jornal e conversaram sobre o passado recente, o presente e futuro político de Santa Quitéria.
Lino e Cesário já foram base do prefeito Braguinha. Atualmente, ambos se declaram parte de um bloco independente, que conta com um terceiro vereador. Já Douglas e Pé de Mola são da base do prefeito interino. Os vereadores falaram em conjunto, num ambiente mais amistoso que acirrado, respeitando divergências e guardando a discordância apenas no campo político.
Duas das palavras mais utilizadas pelos vereadores da base e da oposição foram: instabilidade e incerteza. Sentimentos que, segundo eles, se repetem nas ruas de Santa Quitéria e na população que os procura para perguntar sobre o futuro local. Os vereadores também cobraram mais celeridade da Justiça para que tome as decisões, a fim de garantir o andamento normal da vida política do Município.
“Temos acompanhado o Município diante da incerteza com a situação que aconteceu com o prefeito eleito Braga. Os vereadores têm buscado ouvir a população. Gestões interinas deixam algumas situações em que o município não tem como ter andamento real de projetos, como o alinhamento com as instâncias do Estado. A gente ainda sente essa ausência das ações concretas. O prefeito interino tem tentado dialogar, mas sentimos que ainda não é o essencial que o Município precisa”, disse Pé de Mola, abrindo as falas.
Já Douglas Lira destacou a campanha feita ao lado do prefeito Braguinha e a crença na continuidade com Joel. “Continuamos a acreditar nesse projeto, estamos no grupo do prefeito interino Joel. No Município aconteceram grandes avanços (...) Na saúde e educação. E tenho percebido no Joel uma decisão de fazer o trabalho”.
O parlamentar reconhece que a situação é dura, mas argumenta que os serviços continuaram sendo prestados. “Ninguém queria que estivéssemos nesse momento de instabilidade. Mas a gente que está na política, sabe que é uma luta diária (...) Ao meu ver o Município continuou as atividades normais, não vimos paralisação de serviços. Teve um problema da limpeza pública, dos garis, um dia, mas foi resolvido”.
Pela oposição falou primeiro Lino Paiva, que embora seja do mesmo partido de Braguinha e Joel, não caminha mais com a gestão. Lino foi chamado de “liderança” pelos colegas antes de se manifestar, sendo o mais experiente entre os presentes com quatro mandatos. Ele falou sobre a cobrança popular por uma resolução e cobrou celeridade do Poder Judiciário.
“Vivemos uma instabilidade política. De cada dez pessoas que nos abordam, nove perguntam: ‘E aí? Vai ter uma nova eleição na cidade?’ ‘Quando?’ ‘E na Câmara vai ter nova eleição? Quando?’ Estamos aguardando que a Justiça se posicione”, explica.
Lino destacou que a dúvida sobre o que ocorrerá no Município é prejudicial para todos os lados. “Torço que o Joel possa acertar nesses dias (na Prefeitura). Mas é ruim para ele, para o Município, para as pessoas, porque fica essa indecisão. Na próxima semana pode ter um julgamento e ele não ser mais (prefeito). Defendo que a Justiça se posicione o mais rápido possível para que a gente possa sair da instabilidade político-administrativa”.
Cesário Jr (PP) diz que a instabilidade política pesa, sobretudo, contra a população. “Quem está aí não foi eleito para ser prefeito, não foi quem bateu na porta para se comprometer, mas que pela lei é quem deve fazer o papel. E por se tratar do filho, é uma gestão que deveria continuar aquilo que era feito pelo pai. Essa é uma gestão de continuidade”, disse.
Júnior alega que a instabilidade acaba “prejudicando o andamento de setores vitais como educação e saúde”, gerando problemas que não ocorriam. “É uma instabilidade que ao meu ver, por ser uma gestão de continuidade, não tinha porque ter essa quebra”.
O POVO também conversou com a presidente interina da Câmara, vereadora Emanuela Barbosa (Republicanos), que falou sobre o caso de Braga e papel que assumiu de surpresa. “Sou servidora pública desde 2004 e vereadora em primeiro mandato. Tudo que a gente vivenciou, nada se compara ao que está ocorrendo agora”, cita
A vereadora diz que a gestão interina tem tido compromisso de garantir os serviços, mas que é um processo. “Assim que assumiu um dos primeiros atos foi convocar concursados para evitar paralisação de serviços. A gente ainda passa por esse processo. Alguns serviços ainda não ocorrem na sua eficiência, mas até março, todos os serviços estarão como desejamos, que são as unidades de saúde com equipe completa e escolas também”.
Emanuela fala ainda sobre o clima no Legislativo após o ocorrido. “Está bem acirrado, temos um grupo de vereadores independentes. Estamos bem misturados. Mas isso é bom, porque democracia é isso. Opiniões diversas. É acirrado mesmo (...) O objetivo, enquanto presidente, não é aumentar a rivalidade política. A gente tenta lembrar isso o tempo todo. Entendemos que existem discussões, mas tentamos equilibrar e trazer racionalidade”.
A presidente interina cita ainda a insegurança com a situação envolvendo a prisão do prefeito eleito. “O que a gente espera da democracia, da oportunidade do voto, é que o prefeito seja aquele que foi escolhido. Quando a gente se depara com isso, fica todo mundo inseguro e com medo, pela questão política mesmo, mas o Legislativo está zelando pelo Município, visitamos equipamentos, comunidades, para ouvir esses anseios”.
Os vereadores de Santa Quitéria que conversaram com O POVO relataram como a prisão do prefeito reeleito Braguinha impactou no dia a dia. "Refletiu na vida da população e dos poderes. Os sete vereadores que votaram no Joel, votaram para ele ser presidente da Câmara e de imediato ele teve que ir para outra função. Recebemos nesta mesma sala, nesta mesma mesa, o delegado que informou que o prefeito havia sido preso, no dia da posse", lembrou Lino Paiva (PSB).
"Foi muito ruim para o Município, para a Câmara, para a política local e repercute negativamente. A vontade das pessoas, dos colegas, é de saber o que irá acontecer, porque do jeito que está apenas transparece insegurança", completou.
Douglas Lira (PP) diz que o impacto é, inclusive, emocional. "Tudo que é inédito traz insegurança. Ninguém sabia ou esperava, mas independentemente das questões que ocorreram, a gente conhece uma parte do Braga e a parte que a gente conhece é sinônimo de superação. Impactou porque foi inédito e quem disser que não afetou é loucura. Afeta emocionalmente, afeta tudo. Ninguém queria isso e a gente torce para que se resolva logo e que as decisões sejam tomadas, a favor ou contra, mas que a gente possa partir de um ponto".
Cesário Júnior (PP) opina que a prisão foi a "posição mais pesada", mas também cobra uma solução. "Para a gente que conhece, que participamos do pleito, não percebemos essa questão toda. A Justiça tomou, talvez, a posição mais pesada, porque a prisão é a punição máxima. É pesado para nós passarmos por esse momento e agora esperamos um desfecho".
Em Santa Quitéria, a promotora Júlia Leite, da 2ª Promotoria de Justiça de Santa Quitéria, recebeu a equipe do O POVO e explicou como o Ministério Público do Ceará (MPCE) atuou para garantir a continuidade dos serviços públicos. Além disso, explicou o caso envolvendo a prisão de Braguinha e suas repercussões.
A promotora ressalta a atuação de investigações em duas frentes, uma do MPCE e outra da Polícia Federal. Esta segunda foi a que, segundo Júlia, prendeu o prefeito.
“A investigação contra o prefeito Braga vem de uma investigação eleitoral do MPCE que vem desde antes das eleições. Em dezembro, o MPCE ingressou com uma Ação de Investigação Judicial Eleitoral (Aije), uma ação cível, em que já havia pedido que o prefeito eleito, seu vice e pessoas ligadas a eles fossem declarados inelegíveis; cassados e impedidos de assumir”.
Julia continua: “Simultaneamente a isso ocorria uma investigação criminal, feita pela PF, mas com base nos mesmos argumentos. O Ministério Público acaba atuando nessa parte mais eleitoral, de questões como a inelegibilidade, mas a parte criminal fica com a Polícia Federal. A PF entrou com pedido de prisão, que foi deferido e ocorreu no dia da posse”.
Com a prisão de Braguinha, a promotora conta que o MPCE atuou para garantir a continuidade dos serviços. “Foi um choque para toda a cidade, na época teve muita repercussão (...) Estávamos de recesso e já tivemos essa preocupação com o serviço público. Já havia uma preocupação quanto a isso. Ainda em janeiro deste ano, foi feita uma reunião pela 1ª promotoria, onde foi feita uma reunião com secretários e com o prefeito interino, buscando esclarecer a necessidade de regularizar o serviço público”, disse.
A promotora ressalta que o MPCE deixou claro que, quaisquer que fossem os responsáveis por gerir a cidade, teriam que garantir a continuidade de serviços. “Tudo pode parar, menos o serviço público, em especial o essencial. Todos os secretários se comprometeram a responder às questões do MPCE. De lá para cá têm sido feitas reuniões nesse sentido”.
A gestão Braguinha havia feito concurso público para servidores municipais, entretanto, o chamamento desses servidores não ocorreu de início, já que o prefeito foi preso. Posteriormente, a gestão interina convocou os servidores e o MPCE teve papel importante nessa garantia, segundo narra a promotoria.
“Uma questão que gerou burburinho foi a questão do concurso público. Ele já foi feito a partir de um termo de ajustamento de conduta do município com o MP. Esse concurso foi homologado na gestão Braga e havia a dúvida de como ficaria após o ocorrido. Foram feitas reuniões, a prefeitura manteve o cronograma e os candidatos já foram convocados", conta.
Julia reconhece que a repercussão dos fatos é contínua e atualizou as fases em que se encontram as investigações. “Houve e continua havendo repercussão. A gente segue aguardando a Justiça. Tanto na Aije que está em trâmite, que está na fase de apresentação de contestação por parte dos envolvidos, quanto na questão da PF, se vai culminar numa denúncia contra o prefeito. Enquanto isso, atuamos para garantir os serviços”, encerra.
A equipe do O POVO esteve na Prefeitura de Santa Quitéria, em busca do prefeito interino, Joel Barroso (PSB), que não estava no local. Na quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025, a reportagem foi avisada de que o prefeito atenderia a equipe para uma entrevista, às 17h30min, sobre o andamento da gestão e a situação de incerteza e instabilidade vivida pelo Município. O POVO esteve no local até aproximadamente às 18h30min, mas o prefeito não chegou.
Posteriormente foi informado pela equipe de comunicação da Prefeitura que Joel teria agenda no Palácio da Abolição, em Fortaleza, na sexta-feira, 21. Na data, O POVO esteve no Palácio da Abolição e procurou pelo prefeito, mas não o encontrou. A reportagem telefonou para Joel e entrou em contato via aplicativo de troca de mensagens, durante o evento do Governo do Estado, mas não houve resposta por parte do gestor.
Após o desencontro, Joel informou que estaria novamente em Fortaleza na semana seguinte e que procuraria a equipe para remarcar a entrevista. O prefeito interino não entrou em contato com a reportagem até o fechamento do material. (Colaborou Rogeslane Nunes)
Série de reportagens trata de cenários políticos, social e econômico dos municípios do Ceará