A sexta-feira antes do recesso - 20 de dezembro - contou com duas inspeções presenciais da equipe de transição do Tribunal de Contas do Ceará (TCE-CE). Os cenários foram equipamentos envoltos por denúncias de desmontes: o Instituto José Frota (IJF) e o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu).
A ação ocorreu duas semanas após o Ministério Público do Ceará solicitar ao TCE fiscalizações em órgãos de saúde de Fortaleza. O pedido em específico citava, além do IJF e do Samu, o Hospital e Maternidade Zilda Arns Neumann (Hospital da Mulher). Estes três, junto de postos de saúde, Frotinhas e Gonzaguinhas, funcionam em meio à “crise da saúde de Fortaleza” neste fim de 2024.
Conforme reportagens e matérias do O POVO e do O POVO+, o encerramento da gestão de José Sarto (PDT) esteve envolto de relatos de falta de comunicação e problemáticas. Houve casos de uma licitação milionária, anúncio de bloqueio da Bolsa Jovem e desapropriação de um equipamento de atendimento à população em situação de rua. No entanto, a saúde foi, de fato, o foco.
Fortaleza encerrou o calendário de inspeções presenciais do Tribunal de Contas. Em quatro semanas, foram 17 municípios visitados presencialmente. Outros 40 receberam foco especial, pelo cenário de mudança de poder entre opositores. A saúde, segundo o TCE, foi o principal alvo de desmonte, com o atraso no pagamento de funcionários.
O POVO+ conversou com o diretor de Fiscalização de Atos de Gestão I, Cristiano Goes, que apresentou o balanço das visitas deste ano. A seguir, foi realizada uma apuração, na qual são apresentados a situação política de cada município e os supostos problemas deles, com base em relatos da imprensa e do Ministério Público. Confira abaixo.
As fiscalizações presenciais começaram na semana do dia 28 de novembro. Até aquele momento, conforme o TCE adiantou ao O POVO+ o foco estava sendo em orientação preventiva. Foram disponibilizadas cartilhas com modelos de ofícios, documentos e atas de reuniões.
O dia 16 foi o limite para o início da tramitação da transição. Pouco depois, foi definido que Cascavel seria o primeiro município visitado pelo Tribunal. As equipes do atual prefeito, Tiago Lutiane (PT), e da eleita, Ana Afif (PP), ainda não tinham iniciado o processo.
Junto da cidade, foram realizadas inspeções, na mesma semana, em Pacatuba e Pacajus. Os três municípios, dias antes, haviam sido visitados pelo O POVO+, que constatou irregularidades em serviços de saúde, transporte e pagamento de funcionários.
A apuração da reportagem, na época, analisou denúncias em tramitação nas Promotorias dos municípios e relatos conferidos presencialmente. No total, foram constatadas pelo menos 11 municípios com irregularidades na transição de 2024.
O Tribunal, por sua vez, foi da RMF à região oeste do Estado: visitou Ipu, Frecheirinha, Paracuru e São Luís do Curu. Em seguida, desceu em direção à Canindé, Ocara, Itapiúna e Morada Nova. Ao sul, foi a vez de Acopiara, Baixio, Penaforte e, de passagem, por pedido, passaram em Tarrafas. Por fim, voltaram às cidades com segundo turno: Caucaia e, por último, Fortaleza.
Cristiano Goes, diretor no TCE, afirmou que ainda não pode dar detalhes sobre a situação de cada município, devido ao estágio preliminar dos relatórios. Segundo ele, no geral, foram encontrados, “em alguns municípios, o atraso no pagamento de prestadores de serviço na área da saúde. Prestadores de serviço, organizações sociais e cooperativas estavam em atraso, isso estava dificultando a funcionalidade destes serviços”, disse
Apesar da discrição, há relatos públicos de atrasos em, pelo menos, Acopiara, Cascavel, Fortaleza, Pacajus e Morada Nova - em algum momento da transição. As situações foram informadas pelo Ministério Público e por Sindicatos, também via vistorias.
Outro ponto citado pelo diretor foram problemas com as cooperativas - empresas contratadas para pagamento de servidores. Presenciamos muitos atrasos na área da saúde, pagamentos nas áreas das organizações sociais, cooperativas, isso está ocorrendo muito no estado do Ceará. Instituições que administram hospitais, Upas”, disse Cristiano Goes.
Fortaleza, Acopiara, Itapiúna e Pacatuba são alguns dos municípios com problemas de pagamentos de funcionários da saúde, por intermédio de cooperativas. Quando questionadas, Prefeitura e/ou empresas costumam delegar as responsabilidades pela falta dos pagamentos: cada parte alega ter efetuado as transações.
No caso de Acopiara e Itapiúna, supostas fraudes com cooperativas datam de pelo menos o fim de 2023 e levaram ao afastamento dos respectivos gestores atuais: Antônio Almeida Neto (MDB) e Dário Coelho (MDB), respectivamente. Ambos acabaram retornando aos postos neste ano.
No geral, o diretor afirmou que, em todos os municípios foram achadas “situações-problema”, cujos níveis de gravidade variam. Alguns casos envolveram imbróglios mais “simples”, como recomendações para prorrogação de contratos de serviços até fevereiro ou março e, outros, foram resolvidos com tranquilidade em reuniões.
“Em outros, nossa interferência ajudou, mas em pouca coisa. Melhorou, mas não resolveu muito. A visitação aos locais, fluiu. Mesmo em locais com relatos de problemas, antigamente você nem sabia que tinha problema e a gente vê que, na maior parte das vezes, a transição possibilitou que os futuros gestores saibam onde estão pisando”, disse Goes.
Apenas um município foi elencado como em uma situação “grave de abandono” da gestão. “Depois da eleição abandonaram tudo. Pagamentos, acompanhamento dos serviços, ficou ao léu. E a comissão de transição cobrando”, comentou o diretor, sem citar o nome do local.
Em geral, apesar de tudo, o balanço foi considerado positivo. Goes relata que, na maioria das vistorias, as folhas de pagamento de servidores efetivos estavam em dia. “Ou pelo menos estavam no momento da inspeção”, acrescentou ele, rapidamente. “Depois tivemos que continuar acompanhando, porque podem surgir relatos. Houve o 13º salário, a folha de dezembro. Estamos acompanhando essa situação”, diz ele.
De fato, após as inspeções, surgiram relatos de atraso de pagamentos de parcelas do 13º. Um dos casos ocorreu em Iguatu, na região Centro-Sul, onde a segunda parcela do salário não teria sido paga, ocasionando uma greve de servidores.
Caso se destaca por ocorrer em uma cidade cujo prefeito, Ednaldo Lavor (PSD), chegou a prestar apoio - ainda que discreto - ao eleito, Roberto Filho (PSDB). Iguatu não constava sequer na lista de prioridades do TCE, devido à conjuntura - não era considerada uma transição entre opositores.
Quarenta municípios estão nesta lista. Neles, os prefeitos não se reelegeram ou não emplacaram sucessores e, por mais que sejam prioritários, não são os únicos focos do TCE, segundo Cristiano. A apuração segue, comenta, e pode ter novos desdobramentos em janeiro.
“Aos 40, requisitamos documentos, em pontos específicos. Estamos apurando denúncias consistentes, mesmo à distância. Nada impede que mesmo nos municípios em que o prefeito fez o sucessor, pode estar havendo problemas. Algumas situações foram relatadas e estamos apurando. O fato de não fazer sucessor diminui o risco, mas não o anula”, comentou.
Quatro etapas marcaram as fiscalizações in loco do TCE, em 2024. A primeira consiste em um acompanhamento preventivo. “Foi algo bem aceito. Muitos municípios nem formalizavam a transição. Agora todos formalizaram. Houve reuniões entre as equipes. Acho que foi positivo essa forma de apoiar para que os municípios formalizassem”, disse, otimista, Cristiano Goes.
A segunda fase consistiu na fiscalização dos municípios com “relatos de problemas”. Foram considerados pedidos das comissões de transição - dos prefeitos eleitos, pedidos do Ministério Público, e denúncias chegadas em ouvidorias e na imprensa. Foi feito um esquema de pontuação, que ainda levou em consideração características demográficas do município.
“Começamos com Cascavel, pois foi o município com maior dificuldade de formalizar a transição. Ainda há reclamações de lá”, disse o diretor do TCE. Segundo ele, foram elencados 14 municípios. Tarrafas foi acrescentado de última hora. Já Fortaleza e Caucaia entraram após o segundo turno.
A fiscalização de fato focou em cinco itens: folha de pagamento, contratos, sistemas de informática, checagens patrimoniais e características mais específicas, individuais de cada município.
O processo todo durava de dois a três dias. Neste período, primeiro o Tribunal se reunia com a equipe do prefeito eleito, depois com a do atual e, por fim, com os dois em conjunto. “Normalmente fluiam, no geral. Mas, tem município com problemas e seguem”, disse Cristiano.
Após as checagens, os registros viram um relatório preliminar de inspeção. É nesta etapa que boa parte das fiscalizações estão. As exceções são Fortaleza e Caucaia, cujos relatórios estão em elaboração.
O documento é apresentado aos gestores, que podem contestar ou acrescentar informações, ainda sem caráter jurídico. “Um exemplo: se no relatório consta que não houve entrega de documentos, mas eles tiverem sido entregues após a inspeção e antes do relatório, os gestores podem informar”, diz ele.
A versão final é encaminhada a um relator. Em seguida, um conselheiro é escolhido e emite voto em plenário. O processo é julgado e, a depender da natureza - no caso de crimes-, é disponibilizado para o Ministério Público.
“Abrimos uma representação de responsabilidade administrativamente. Após a denúncia, é dado o direito de defesa. Confirmada essa situação, continuada, pode haver responsabilização dos gestores que deram causo a essa situação. Nesse momento estamos na fase de elaboração de relatórios”, disse o diretor.
Cristiano dirigiu a equipe de transição e participou presencialmente apenas das fiscalizações de Caucaia e Fortaleza. Segundo ele, na cidade da RMF foram visitadas a Prefeitura e o Regime de Previdência. Foram requisitados documentos, ainda no prazo de retorno.
Em Fortaleza, ele elencou o IJF como “grande centro de problemas” na transição, o que considerou uma pena devido à importância do “aparelho para Capital e interior”. “Não quer dizer que não possamos fazer fiscalização em outros momentos, em outras unidades. Mas escolhemos como referência pelo grande volume de relatos”, disse.
No hospital, foi analisada a área de pessoal, pagamentos de terceirizados e servidores na prestação de serviços; quantidade de insumos e medicamentos e alimentação. Foram solicitados documentos sobre a “situação geral do equipamento” nestes pontos. No Samu, o foco foi a disponibilidade das ambulâncias.
Prefeituras da RMF - fora Caucaia - e do Interior tiveram como prazos de resposta aos relatórios entre os dias 28 a 30 de dezembro de 2024. O das cidades com segundo turno deve ser retornado em janeiro, mês que virá junto dos relatórios finais, possíveis julgamentos e responsabilização de culpados.
O PSB é o partido que comanda a maioria das prefeituras fiscalizadas pelo TCE em 2024. São 6, de 17. Em seguida vem o PT, com 4 de 17. Os partidos, no entanto, são também os com maior número de prefeituras conquistadas em 2024. Além disso, o PSB contou com uma ampla migração de gestores para os quadros do partido, após a filiação do senador Cid Gomes em 2024.
Assim como ocorreu no levantamento do O POVO+, os conflitos políticos foram predominantes durante as gestões fiscalizadas pelo TCE. Em Acopiara e Itapiúna, os prefeitos chegaram a ser afastados e voltaram. Em Pacatuba, Carlomano Marques foi afastado da gestão, preso, renunciou ao comando do Executivo municipal e rompeu com o sobrinho, Rafael, então vice-prefeito.
Há também presença um poder em ciclo. Em Penaforte, Acopiara, Itapiúna, Ocara e Caucaia, foram eleitos ex-prefeitos, com histórico de rompimento ou de oposição de anos com os atuais. Em Canindé e Frecheirinha foram eleitos os vices. O gráfico acima traz mais detalhes das conjunturas.
Como os relatórios estão em fase preliminar, o TCE não pôde dar detalhes da situação de cada município inspecionado. No entanto, é possível constatar a situação geral de cada um deles, com base em relatos da mídia e recomendações do Ministério Público.
Os relatos vão desde estudantes dividindo transporte escolar com pacientes, postos vazios pela falta de médicos, dívida de R$ 200 milhões, pedido de afastamento de prefeito atual e eleito, além de um gestor eleito, que passou um tempo foragido.
Vale lembrar que são relatos, sem comprovação judicial. Denúncias formalizadas, no MPCE ou do TCE, estão explicitadas nos cards. Clique abaixo e confira.
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