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De afastamentos por desmonte à transição responsável: mecanismos de controle evoluem no Ceará
Reportagem Seriada

De afastamentos por desmonte à transição responsável: mecanismos de controle evoluem no Ceará

Operações antidesmonte eram quase onipresentes no cenário de transições das prefeituras no Ceará. De 2020 para cá, as ocorrências diminuíram. Denúncias persistem, mas a evolução dos mecanismos de fiscalização e controle é notável
Episódio 3

De afastamentos por desmonte à transição responsável: mecanismos de controle evoluem no Ceará

Operações antidesmonte eram quase onipresentes no cenário de transições das prefeituras no Ceará. De 2020 para cá, as ocorrências diminuíram. Denúncias persistem, mas a evolução dos mecanismos de fiscalização e controle é notável
Episódio 3
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A fiscalização visitava as cidades sem aviso prévio, claro. Inesperadamente, as prefeituras e secretarias dos municípios eram tomadas por seis fiscais e dois motoristas, que reviravam tudo, movidos por denúncias de desmontes na transição.

Os relatos incluíam: atraso geral da folha de pagamento, demissão de médicos, paralisia de atividades de saúde, paralisia da limpeza urbana - o que tomava as cidades de lixo, entre outras questões.

Os fiscais faziam análise documental, registros fotográficos, entrevistas e coletavam declarações de servidores. Era 2016, o Tribunal de Contas dos Municípios (TCM) e o Ministério Público do Ceará (MPCE) atuavam em mais uma Operação Antidesmonte.

Fachada do antigo TCM, extinto em 2017, no cambeba. (Foto: Fabio Lima/O POVO)(Foto: FÁBIO LIMA)
Foto: FÁBIO LIMA Fachada do antigo TCM, extinto em 2017, no cambeba. (Foto: Fabio Lima/O POVO)

Cristiano Goes é hoje diretor de Fiscalização de Atos de Gestão I, unidade da Secretaria de Controle Externo do TCE Ceará. Cuida dos processos atuais de transição e, na época, integrou o grupo de inspeções, atuando como chefe de inspeção em alguns municípios.

Cristiano Goes - Diretor de Fiscalização de Atos de Gestão I, unidade da Secretaria de Controle Externo do TCE Ceará(Foto: Arquivo Pessoal/Cristiano Goes)
Foto: Arquivo Pessoal/Cristiano Goes Cristiano Goes - Diretor de Fiscalização de Atos de Gestão I, unidade da Secretaria de Controle Externo do TCE Ceará

Certos casos, recorda com vividez. “Teve um município que a sede da Prefeitura estava ocupada por servidores municipais, face atraso nos salários. Inclusive aplaudiram a chegada da equipe de fiscalização”, conta.

Caso as denúncias se concretizassem - o que costumava ocorrer - cópias dos relatórios gerados pelos fiscais eram entregues ao Ministério Público, que podia entrar com ação de afastamento dos prefeitos, sustentadas por percepções dos promotores locais. Por fim, o Tribunal de Justiça decidia ou não pelo afastamento.

No caso recordado por Cristiano, houve afastamento. Em muitos outros, também. No total, 14 prefeitos foram cassados na operação, em 2016. “Transição efetiva era uma raridade”, relembra ele, mas completa: “Bem distante do quadro de hoje”.

Apesar do histórico de crise e das dezenas de relatos de irregularidades nas Prefeituras do Interior, a transição de 2024 apresenta um avanço em relação aos pleitos anteriores. Antes marcados por prisões e sigilo de dados pelos prefeitos no poder, o aumento nas denúncias e registros por moradores, além da atuação mais intensa dos órgãos fiscalizadores aumentaram a transparência e tornaram a transição mais democrática, como deve ser por natureza.

 

 

Investigações antidesmonte descobriram dívidas e afastaram prefeitos por corrupção

A Operação de 2016 está longe de ser a única investigação contra desmontes no Ceará. Já nos fim dos anos 1990 e começo dos 2000 explodiram os casos de “vingança” de prefeitos contra a população que, democraticamente, os tirou do poder.

Um ano após a primeira eleição municipal do século XXI, a Assembleia Legislativa do Ceará instalou uma Comissão Parlamentar de Inquérito para investigar supostos desmontes, com os mesmos moldes de outra, realizada em 1997. A nova Comissão encontrou irregularidades em 34 prefeituras, entre 2001 e 2004.

Em 2004, por exemplo, prefeitos deixaram de pagar salários e chegaram a suspender aulas no mês de novembro. Deixavam dívidas nas contas de água e luz dos municípios e, em alguns casos, até roubo ou sumiço de bens públicos foram registrados.

 

Confira abaixo, CPIs e Operações Antidesmontes no Ceará

 

O pleito municipal de 2008 veio com outras denúncias de irregularidades. Matérias do O POVO, na época, tratavam o ocorrido como “ritual”, tamanha a constância do tema de quatro em quatro anos. Naquelas eleições, os prefeitos de Pindoretama, Palmácia e São Luís do Curu foram afastados e o de Palmácia renunciou.

Matéria do O POVO, em 2008, retratou situação de transições daquele pleito(Foto: O POVO DOC)
Foto: O POVO DOC Matéria do O POVO, em 2008, retratou situação de transições daquele pleito

O foco no problema foi tão grande na eleição seguinte que, em março de 2012, promotores já citavam fiscalizações em quatro municípios. A perspectiva foi acentuada após as eleições, nas quais, dos 184 municípios cearenses, em 142 os gestores não foram reeleitos e nem conseguiram eleger um sucessor. Em comparação, em 2024, em apenas 40 municípios houve troca de poder de situação para oposição.

Em 2012, relatório anual do Ministério Público informou que foram visitados 39 localidades, identificadas por enquadramento em matriz de risco ou por denúncias fundamentadas. O documento cita afastamento de prefeitos. O Ministério Público do Ceará foi contatado quanto ao número exato. Quando houver resposta o material será atualizado.

De volta a 2016. Foram 38 municípios inspecionados na Operação. Naquele mesmo ano, foram afastados, via ações criminais, os prefeitos de Baturité, Canindé, Caririaçu, Juazeiro do Norte, Paramoti e Quixadá. Outros oito afastamentos partiram de ações de improbidade administrativa: Mauriti, Mulungu, Martinópole, Baturité, Canindé, Missão Velha, Madalena e Nova Olinda.

Os fiscais ficavam disponíveis integralmente. “Face a quantidade de ações de controle a serem realizadas, estas fiscalizações foram intensas, com uso integral do tempo disponível pelas equipes de fiscalização. Os relatórios a serem elaborados eram prioritários, face sua importância”, relatou Cristiano Goes.

 

Clique nas imagens abaixo e confira matérias do O POVO sobre a Operação de 2016


 

A conversa do diretor com o POVO+ ocorreu poucas semanas após o pleito, a época, em tese, mais tumultuada para um fiscal de transição. Ele, no entanto, estava calmo e sorridente. Nos dez anos que serviu o Tribunal, nota uma redução das ocorrências.

Segundo ele, 2020 foi um ano incomum pelo contexto da pandemia de Covid-19. “Processo de transição foi um pouco prejudicado, mas mesmo assim fizemos trabalhos em campo e acompanhamos diversos municípios”, disse ele.

Naquele ano, foram identificadas 19 irregularidades, nos 19 municípios fiscalizados. “Não é um número que assusta. Pode ter coisas graves, gravíssimas, e outras com gravidades menores. Não identifica um dolo, uma má fé, uma dilapidação do patrimônio. Mas quando a gente vai como fiscal, como auditor, a gente acaba encontrando”, explicou.

“Pelas ações do Tribunal, do MPCE. A legislação avançou, tivemos a lei da ficha limpa, lei de responsabilidade fiscal, de transparência. Ao longo do tempo tivemos uma melhora. Há uma conscientização né? Hoje a notícia corre rápido. Se visualiza um transporte paralisado, essa notícia pode chegar no mesmo dia. As mídias sociais facilitam muito. Já pensou uma cidade como fortaleza tomada de lixo? É rápido, todo mundo filma, bate foto. Tudo isso diminuiu”, disse.

 

 

Histórico de legislações de transições no Brasil e no Mundo

De fato, da virada do século para cá, as legislações voltadas para transições avançaram e muito no Brasil, tanto no âmbito municipal, quanto nacional. Em uma democracia jovem, o País adapta-se aos poucos ao processo democrático das transições.

Os Estados Unidos foram pioneiros nas legislações desta natureza. Desde a primeira transição - de George Washington a John Adams - os processos de passagem do poder ocorrem sem grandes rupturas. "O que não significa que não haja excessões ao longo da história. A transição de 2016, com a tomada do Capitólio por apoiadores do presidente derrotado Donald Trump, é um exemplo claro disso." .

Após a Segunda Guerra Mundial, o País estabilizou-se como uma potência mundial e as conversas entre presidentes tornaram-se fundamentais para firmar o projeto nacional. Uma legislação que regulamentou as transições veio oficialmente em 1963, durante o Governo de John F. Kennedy.

Presidente eleito Kennedy se encontra com o presidente no poder, Dwight D. Eisenhower, na Casa Branca, em 6 de dezembro de 1960(Foto: wikimedia)
Foto: wikimedia Presidente eleito Kennedy se encontra com o presidente no poder, Dwight D. Eisenhower, na Casa Branca, em 6 de dezembro de 1960

O Brasil, ao contrário dos Estados Unidos, não instaurou uma República após a Independência e, quando ela veio, em 1889, não ocorreu via eleições diretas. Os anos democráticos foram curtos, fortalecidos apenas em 1985, após 21 anos de uma Ditadura Militar. As transições passaram a ocorrer, mas de forma irregular.

Esta “irregularidade” é comum em países do Sul-Global, antes chamados de subdesenvolvidos ou em desenvolvimento. Muitos passaram por Ditaduras nos século XX e as transições eram novidade.

O México, em 2000, estudou uma transição, mas o Brasil foi o real pioneiro na regulamentação de transições na América Latina. Por aqui, alguns estados já haviam instaurados comissões de transição em suas constituições e uma Lei Federal foi promulgada em 2002, na transição Fernando Henrique Cardoso-Lula.

 

Confira abaixo uma linha do tempo de legislações de transição no Mundo e no Brasil

 

A legislação Federal foi atualizada em 2010 e, nos anos eleitorais, o Governo ainda disponibiliza cartilhas direcionadas aos chefes de executivo municipal - tanto os eleitos quanto os em exercício.

Os Estados, por sua vez, também podem promulgar legislações e decretos voltados para as eleições dos seus municípios. Levantamento realizado em 2017 e publicado na Revista Interface registrou normativos legais ou manuais voltados para a transição em todos eles.

O Ceará não possui legislações sobre transição. No Estado, a pesquisa registrou apenas dois Manuais de Orientações para Transição de Governos e uma Instrução Normativa, todas partindo do Tribunal de Contas dos Municípios, hoje extinto.

 

Confira todas as legislações e decretos de transição dos Estados até 2017

 

O Ceará segue sem legislações estaduais voltadas para a transição, em 2024. No entanto, o cenário não é o mesmo. As eleições deste ano marcam a primeira vez que o Tribunal de Contas do Estado (TCE-CE) publicou um manual de transição responsável.

Hoje, o portal do TCE disponibiliza o acompanhamento das transições em tempo real. Pode-se conferir os decretos, as negociações e os impasses nas transições diariamente.

A segunda-feira, 18/11, por exemplo, marcou o primeiro dia útil após o prazo final para formalização de transições, estabelecido pelo TCE (16 de novembro). Segundo o mapa disponibilizado pelo Tribunal, todos os municípios com mudança de poder já estavam com a transição em andamento ou formalizadas. Apenas Cascavel atrasou em um dia, mas, no seguinte ao prazo, também formalizou.

 

 

Transição em 2024 é focada na “mitigação de erros”

Oito anos após a grande “Operação Antidesmonte de 2016”, muita coisa se modificou no modus operandi do Tribunal de Contas para o processo de transições em Prefeituras do Ceará. O órgão responsável, o Tribunal de Contas do Município (TCM), sequer existe mais - foi extinto em 2017. Além disso, o foco mudou.

Ao invés de partir para fiscalização in loco, o TCE está priorizando, em 2024, a “mitigação de erros”. Cristiano Goes, diretor da Secretaria de Controle Externo do TCE Ceará explicou que foi disponibilizada uma cartilha, com orientações e prazos para os municípios.

O material está disponível no portal do TCE e é composto por quatro unidades. A primeira explica a definição e importância das transições. A segunda estabelece deveres das comissões de transição, fornece um modelo de ata das reuniões e cronogramas. Já a terceira foca nos serviços públicos que não podem ser paralisados no processo e a última fornece contatos para o Tribunal de Contas.

 

Formalização das equipes de transição de mandato. Clique e saiba mais.

 

O processo de fiscalização nos municípios começou apenas na segunda-feira, 18, após 45 dias do primeiro turno das eleições. O Tribunal já coletava denúncias, segundo Cristiano, mas agora partirá a investigação direta.

“A segunda etapa é reativa. Nela, identificamos os problemas. Há uma parceria com o Ministério Público e um trabalho de acompanhar as mídias sociais”, diz ele, citando irregularidades como a não atualização do Portal da Transparência e ausência de repasses e paralisações de serviços públicos. No episódio anterior, algumas irregularidades foram relatadas.

O foco são os 91 municípios que não reelegeram prefeitos. Destes, 40 terão uma atenção ainda maior, já que houve mudança nos grupos políticos. Ou seja, neles, o prefeito não se reelegeu e nem conseguiu emplacar um sucessor.

 

Mapa da situação política das sucessões no Ceará


Goes explica que os indícios de desmontes podem ser localizados ainda a distância, assim como a solicitação de documentos. As denúncias são organizadas, a auditoria planejada e só então a equipe se desloca ao município, como ocorreu nas investigações anteriores.

“Já vamos sabendo exatamente o que vamos fazer. Então varia, mas a gente costuma chegar à parte financeira, aos controles, almoxarifado, um leque de checagens em campo, se as denúncias são efetivas, de paralisia de serviços públicos. De atraso de servidores. A gente faz uma checagem”, explicou.

 

 

Serviços indispensáveis e dificuldades na economia

Os números dos desmontes muitas vezes são distanciados do real significado deles. Cada afastamento de prefeitos, secretários e vereadores ou denúncias de paralisação de serviços e atraso nos pagamentos significa uma dificuldade da população daquela localidade em usufruir de serviços básicos.

No material sobre transição, o Tribunal de Contas do Estado elencou sete serviços essenciais cuja manutenção jamais deve ser interrompida nos processos de transição. Confira abaixo:

 

Serviços que não podem ser paralisados durante a transição


Do lado dos gestores, o vice-presidente da Associação dos Municípios do Estado do Ceará (Aprece) e prefeito de Jaguaribara, Joacy Junior (PSB), elenca dificuldades na economia nos meses finais. No caso dele, explica, o processo está tranquilo, tendo em vista a eleição de um aliado na Prefeitura.

Segundo Joacy, o gestor no final de mandato tenta equilibrar o máximo possível as finanças públicas. Restos em caixa podem ocasionar problemas nas contas. No entanto, é comum, diz, haver um descompasso nesta questão orçamentária e, a partir de cada cenário, o novo gestor pode tomar diferentes providências.

Joacy Júnior, prefeito de Jaguaribara e vice-presidente da Aprece(Foto: Arquivo Pessoal)
Foto: Arquivo Pessoal Joacy Júnior, prefeito de Jaguaribara e vice-presidente da Aprece

“Existem municípios que, a partir do ano que vem, vão ter um decreto de receita em virtude da queda dos índices da saúde e educação e vão diminuir a receita do ICMS. Outros irão aumentar e assim, no total, se os municípios tiverem um acréscimo ou decréscimo de receita, podem fazer ajustes orçamentários no ano subsequente, desde que tenha aprovação da câmara”, explicou.

Joacy relata que, nos quatro anos que passou na Aprece, ouviu “muito pouco” sobre desmontes ou irregularidades, algo comum no passado. “Era típico. Quando o gestor vencia, ele trancava tudo, não tinha mais hospital, PSF. Práticas que até o momento, não escutei falar. Mas, claro, nada impede que algum município possa estar fazendo algo contrário ao recomendado pelos órgãos de controle”, disse.

Conforme o episódio 02 desta série de reportagens, irregularidades persistem. Relatos recebidos envolvem atrasos nos pagamentos e desmontes na saúde, ambos sentidos na linha de frente pelos moradores. O problema não está resolvido.

No entanto, em conjunto com a ação dos Tribunais de Contas e do Ministério Público, denúncias anônimas integram parte fundamental do processo. Muitos relatos envolviam vídeos, imagens e comprovações físicas das irregularidades. Um povo que vê e não se cala. Pelo contrário, registra, denuncia e, assim, ajuda na mudança de conjuntura.

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