É do mestre Antônio Bispo dos Santos, o Nêgo Bispo, o pensamento de que os quilombolas não construíram sozinhos os quilombos no Brasil. Para que fossem construídos, foi preciso trazer os saberes da África. A reflexão presente no livro A terra dá, a terra quer (Ubu, 2023) é de que "nessa confluência de saberes, formamos os quilombos, inventados pelos povos afroconfluentes, em conversa com os povos indígenas".
O filósofo Nêgo Bispo
Nascida e criada no quilombo da Serra do Juá, no município de Caucaia, na Região Metropolitana de Fortaleza, Cláudia Quilombola, 48, trilha esse caminho desafiador. Ela abriu, passo a passo, uma passagem nunca antes percorrida por seus conterrâneos para chegar, atualmente, ao doutorado em Educação na Universidade Federal do Ceará (UFC).
“As professoras não eram formadas. Sabiam ler e escrever, e ensinavam. Nunca estudei em uma sala regular, sempre em salas multisseriadas. A gente tem que reconhecer a deficiência do ensino em um caso como esse, diferente da educação regular”, conta a educadora, que atua na Escola de Educação Infantil e Fundamental José Crisóstomo Basílio, na comunidade rural Camará, em Caucaia. Embora esteja afastada para o doutorado, ela realiza projeto de alfabetização semanalmente na escola.
Ela relaciona que uma “educação fragmentada com a precarização” distancia o quilombola do acesso ao ensino superior.
A dificuldade do acesso se dá por motivos tantos, como a distância das áreas centralizadas ou da própria Capital. O olhar do poder público demorou a se voltar a essa população. Para se ter uma ideia, a Lei nº 12.711, conhecida como Lei de Cotas de Ingresso nas Universidades, só foi publicada no Diário Oficial da União em 29 de agosto de 2012. Há pouco mais de dez anos.
No Ceará, a questão ganhou força em 2017 com o 17º Encontro das Comunidades Quilombolas do Ceará, realizado no Sítio Veiga, quilombo localizado na zona rural de Quixadá.
Jeovane Ferreira, doutorando em Antropologia Social pela Universidade Federal de Goiás (UFG), cresceu na comunidade do Alto Alegre, zona rural de Horizonte, Região Metropolitana de Fortaleza.
Ele esteve presente no Encontro das Comunidades e destaca que a Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab) surgiu como alvo dessa reivindicação, "especialmente pelo seu projeto institucional de cooperação, interiorização e solidariedade entre povos".
"Naquela época era possível questionar a Unilab: onde está o povo quilombola na Instituição? Por quais razões esse povo não fazia parte também desse projeto? E foi a partir da busca de respostas para essa problemática que iniciou-se uma trajetória de mobilização pelo acesso, consequentemente pela permanência de quilombolas – o que é processo contínuo", recupera.
Para Jeovane Ferreira, discutir a presença de quilombolas no ensino superior exige um olhar crítico para o passado educacional brasileiro. Ele avalia que o campo da educação no País é constituído por intensas e constantes disputas, além de exclusões que variam de acordo com os grupos que buscam acessá-la.
“Isso não implica falar de uma realidade vivenciada exclusivamente pela população quilombola, muito pelo contrário, qualquer diferença nesse espaço carrega consigo um histórico de violência e exclusão sem precedentes”, explica. “É verdade que os níveis de exclusão se intensificam quando lançamos o nosso olhar para compreender a situação atual da presença quilombola nas universidades.”
Ainda de acordo com Jeovane, a trajetória de mobilização quilombola por acesso às políticas públicas tem raízes profundas em uma história de resistência e de luta por direitos básicos e essenciais para a garantia da cidadania. "Por isso, é fundamental reconhecer que existem trajetórias, no plural, no sentido de que o próprio movimento quilombola tem se organizado, mobilizando-se politicamente, para reivindicar a mudança e transformação dessas realidades."
Uma coisa é chegar, outra é permanecer, frisa Cláudia quilombola. "Quando a gente chega à universidade, vêm outros desafios. As pautas de apoio da própria universidade, não tem", compartilha.
As dificuldades causadas por desigualdades históricas já a fizeram pensar em desistir. Mas um pensamento é mais forte: “Eu lembro que não estou lá só por causa de um título de doutora. Não é. Um quilombola entrar na universidade é um ato político”.
O número de quilombolas no ensino superior brasileiro é incerto. O Censo da Educação Superior, divulgado anualmente pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), não traz dados sobre estudantes quilombolas matriculados. Isso é reflexo da falta de dados sobre essa população.
Apenas no Censo 2022, pela primeira vez, os quilombolas foram incluídos nas estatísticas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Levantamento mostra que a população quilombola do Brasil é de 1,32 milhão de pessoas — ou 0,65% do total de habitantes.
No Ceará, são 23.955 pessoas autodeclaradas remanescentes de quilombos. Destes, 19.360 não vivem nos territórios oficiais. Ou seja, cerca de 80% dos quilombolas identificados no Ceará não vivem em territórios oficialmente delimitados como quilombos.
Em novembro de 2023, o presidente Lula sancionou o texto de atualização da Lei de Cotas (nº 12.711/2012). Uma das mudanças foi a inclusão de estudantes quilombolas como beneficiários, nos moldes do que já ocorria para pretos, pardos, indígenas e pessoas com deficiência (PcDs).
Logo após, o Ministério da Educação (MEC) publicou portaria atualizando as regras para a classificação no Sistema de Seleção Unificada (Sisu) conforme mudanças na Lei de Cotas.
Em âmbito nacional, o ministério cita o Programa de Bolsa Permanência (PBP) como principal política de apoio à permanência de estudantes de minorias étnico-raciais no ensino superior. Com o objetivo “de minimizar as desigualdades sociais, étnico-raciais e contribuir para permanência e diplomação dos estudantes de graduação indígenas, quilombolas e dos estudantes em situação de vulnerabilidade socioeconômica, matriculados em instituições federais de ensino superior”.
Atualmente, segundo o MEC, há 6.563 estudantes quilombolas no Sistema de Gestão de Bolsa Permanência (SisBP) elegíveis para o recebimento de bolsa. Ao todo são mais de 13 mil beneficiários do programa.
A previsão é de que o número aumente visto que o MEC anunciou a disponibilização de 5.600 novas bolsas no sistema destinadas a estudantes indígenas e quilombolas matriculados em cursos de graduação presencial, inscritos no SISBP e que estão na situação "Aguardando análise do Pró-Reitor".
A Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab) é a instituição de ensino superior no Ceará com maior número de quilombolas, com 214 estudantes na graduação. Segundo a Unilab, quando os alunos ingressam passam pelo setor de Serviço Social para que seja avaliado se o discente vai receber o auxílio da Universidade.
Na Universidade Federal do Ceará (UFC), são 17 discentes de graduação quilombolas: oito do sexo masculino e nove do feminino. Segundo a instituição, os registros restringem-se a 2024, quando foram estabelecidas cotas para quilombolas.
Em dezembro de 2023, o Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão (Cepe) da UFC aprovou resolução que ampliou a possibilidade de acesso à pós-graduação. Os editais de todos os processos seletivos de pós-graduação stricto sensu (mestrado e doutorado) passaram a reservar no mínimo 30% de suas vagas a candidatos pretos, pardos, indígenas, quilombolas e pessoas com deficiência.
“Como se trata de uma política nova, por enquanto ainda não há dados consolidados sobre ingressantes, mas apenas sobre o número de vagas: de 2020 a 2024 foram ofertadas 29 vagas para quilombolas em editais de pós-graduação stricto sensu na UFC. Esse número deverá subir consideravelmente nos próximos meses, pois grande parte dos programas de pós-graduação divulga editais ao longo do segundo semestre e este é o primeiro ano após a nova resolução entrar em vigor”, prospecta a gestão.
Atualmente, há na UFC pelo menos três projetos de extensão que, de alguma forma, estão relacionados a comunidades quilombolas: Escola Da Terra — Curso De Especialização em Educação do Campo e Pedagogia Histórico-Crítica; Aliança para combate às doenças tropicais negligenciadas em populações vulneráveis; e Pedras e Gente: diálogos entre universidade e sociedade através da popularização da geologia e paleontologia.
No caso da Universidade Estadual do Ceará (Uece), a Pró-reitoria de Graduação (Prograd) informou que, para o ingresso dos estudantes nos cursos de graduação, 50% das vagas são reservadas para cotistas.
Há cotas para a população negra, autodeclarados pretos ou pardos e cotas para povos indígenas com percentuais iguais aos da população cearense, conforme o último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). “Dessa forma, apesar de não haver um recorte específico para a população quilombola, as cotas étnico-raciais são abrangentes a esta população”, diz a Instituição.
No caso da Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA), após pesquisas ao Programa Nacional de Formação de Professores da Educação Básica (Parfor) e ao Departamento de Ensino de Graduação (DEG), “concluiu-se que não há registro específico de indígenas quilombolas na Pró-Reitoria de Graduação”.
A Universidade Regional do Cariri (Urca), por sua vez, afirma que atua no intuito de realizar políticas de permanência na Universidade. A Universidade realiza levantamentos socioeconômicos da população preta, parda, indígena e quilombola. “Apesar de termos na região algumas comunidades quilombolas, atualmente não há autodeclarados no quadro da universidade e estudantes ou professores quilombolas”, informa.
A Comissão de Heteroidentificação da Urca destaca que, desde a criação do processo em 2019, como garantia de acesso às políticas de cotas na Universidade, nenhum aluno se autodeclarou quilombola para ingresso.
Aquilombar para permanecer. Série especial discute os desafios das universidades para acolher a população quilombola do Ceará, dificuldades de acesso ao ensino superior, trajetórias de mobilização por políticas públicas e questões de permanência desses povos na academia.