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Do quilombo à universidade: o impacto decisivo das políticas públicas
Reportagem Seriada

Do quilombo à universidade: o impacto decisivo das políticas públicas

As histórias de vida dos quilombolas que chegam ao ensino superior ensinam e inspiram. Quem está lá quer segurar as portas da universidade para que outros ingressem e permaneçam
Episódio 3

Do quilombo à universidade: o impacto decisivo das políticas públicas

As histórias de vida dos quilombolas que chegam ao ensino superior ensinam e inspiram. Quem está lá quer segurar as portas da universidade para que outros ingressem e permaneçam
Episódio 3
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Sair do quilombo para estudar requer, sobretudo, coragem. O percurso — até este ano de 2024 — foi trilhado por quilombolas que foram abrindo caminhos. Mas a luta é para que sejam apenas os primeiros de muitos. Racismo institucional, desigualdade social, violências epistêmicas são percalços na trajetória de filhos de quilombos no ensino superior. Para um quilombola na universidade, além de políticas específicas e apoio institucional, é preciso aquilombar.

Joseli Cordeiro, da comunidade quilombola Batoque, no município de Pacujá, localizado na região norte do Ceará, defendeu neste ano sua dissertação no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Ceará (UFC). Ela foi a primeira cotista quilombola do programa a defender a dissertação. O programa foi o primeiro a reservar vagas para quilombolas, antes mesmo dos cursos de graduação fazerem isso, o que só ocorreu neste ano, após a atualização da Lei de Cotas.

Mas chegar lá “foi uma aventura”. “Nos meus anos iniciais de ensino, tive a oportunidade de estudar dentro do quilombo. Não era uma escola quilombola, mas era muito motivada e estava entre os meus. No ensino médio, tive que ir para a cidade, foi uma ruptura muito conturbada”, lembra. Na escola, ela e os primos sofriam racismo constantemente.

Ser um quilombola é uma coisa muito exótica para os que estão lá - os pesquisadores e outros graduandos. Tinha que explicar o que é ser quilombola e onde eu venho (Joseli Cordeiro)

Joseli sempre quis fazer faculdade e a família sempre a apoiou. “Mas sempre teve o receio de estar mais longe do quilombo, da coletividade. Deixava meus pais muito aflitos”, lembra. No ensino superior, ela passou pelo que chama de “violências epistêmicas”. “Ser um quilombola é uma coisa muito exótica para os que estão lá, para os pesquisadores e outros graduandos. Tinha que explicar o que é ser quilombola e de onde eu venho”, rememora.

Joseli foi a primeira da família a se formar. Posteriormente, ela passou na seleção do edital com cotas para quilombolas na UFC. Na graduação e na pós, ela cita a importância de “núcleos de aquilombamento” que tornaram o processo possível.

“Isso fortalece para viver a universidade que, na maioria das vezes, não está preparada para nos receber. Fui acolhida por grupos, pessoas que me possibilitaram sentir o sentimento de quilombo mesmo não estando no meu território de referência. Amigas pretas periféricas que, embora não viessem do ambiente rural, me apoiaram. Pessoas pretas, outros quilombolas, pessoas de povos originários”, destaca a historiadora.

Joseli Cordeiro, comunidade quilombola Batoque, região norte do Ceará, defendeu dissertação no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Ceará(Foto: FÁBIO LIMA)
Foto: FÁBIO LIMA Joseli Cordeiro, comunidade quilombola Batoque, região norte do Ceará, defendeu dissertação no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Ceará

Por outro lado, ela menciona processos que de formas sutis invisibilizam. “Muitas vezes, é um currículo. Uma pesquisa sobre quilombo em uma disciplina, não tem um autor quilombola, não tem um texto que discuta sobre quilombo”, exemplifica.

Nesse cenário desagregador, ela avalia que editais específicos são um caminho para que pessoas quilombolas tenham a oportunidade de competir de forma minimamente igualitária. "Editais que pensem em um número maior do que um ou duas vagas."

Além do acesso, as universidades devem garantir permanência e apoio psicológico. A maioria dos estudantes quilombolas sai de territórios distantes e, na maioria dos casos, com dificuldades financeiras. "Eles precisam ter a garantia de onde morar, do que comer. E aí tem a questão das bolsas de permanência, de pesquisa."

... acho o espaço de ser a primeira muito solitário... sou fruto de um processo coletivo. Ser quilombola, justamente, está cercada pelos meus e as minhas (Joseli Cordeiro)

Joseli frisa ainda necessidade de apoio psicológico visto que o ambiente acadêmico pode ser hostil e os quilombolas carregam uma carga pesada do racismo institucional. É preciso também adequar os currículos. "Não dá mais para a gente trabalhar com um currículo de 20, 30, 40 anos. A gente tem professores que trabalham os mesmos autores brancos europeus há 20, 30 anos", expõe.

Essas são estratégias para garantir o direito de que outros quilombolas como Joseli possam estar no ensino superior. "Eu me sinto muito feliz. Mas eu acho o espaço de ser a primeira muito solitário. Eu penso que não estar sozinha é muito melhor. Eu sou fruto de um processo coletivo. Ser quilombola, justamente, estar cercada pelos meus e as minhas", reflete.

A maior alegria é pensar que outras e outros poderão também fazer essa trajetória. “É o meu intuito, enquanto filha quilombola de Batoque, enquanto uma mulher negra, é, não sei se abrir portas, mas mantê-las abertas, para que muitos mais dos meus e das minhas possam fazer isso também”, sonha.

 

 

A experiência do Projeto Escola da Terra

O projeto Escola da Terra – Formação de Professores de Escolas Multisseriadas do Campo, Quilombolas e Indígenas, criado a partir do lançamento do Programa Nacional de Educação no Campo (Pronacampo) pelo Governo Federal em 2013, tem impacto relevante para a formação dessas populações, com a formação de mais de três mil professores.

Professora adjunta da Faculdade de Educação da UFC, Clarice Zientarski explica que o projeto envolve a formação de professores e distribuição de materiais didáticos. Há mais de dez anos, o projeto começou como extensão e curso de aperfeiçoamento. Depois, passou a oferecer curso de especialização com as mesmas características.

Projeto Escola da Terra, criado em 2013 para a formação de professores, vem sendo uma experiência relevante para as populações quilombolas e indígenas(Foto: CARLUS CAMPOS/ADOBE STOCK)
Foto: CARLUS CAMPOS/ADOBE STOCK Projeto Escola da Terra, criado em 2013 para a formação de professores, vem sendo uma experiência relevante para as populações quilombolas e indígenas

Com ações de ensino, pesquisa e extensão, o projeto é realizado numa parceria entre UFC, Ministério da Educação (MEC), Secretaria da Educação do Estado (Seduc) e secretarias municipais de Educação.

“Muitos são formados em faculdades de esquinas, só nos fins de semana. Uma formação aligeirada, frágil. A Escola na Terra vem na contramão, com uma formação mais densa, teórica, mas também com a práxis. Com a pedagogia da alternância, trabalhando o tempo-universidade e o tempo-comunidade. Depois, colocam em prática o que aprenderam na sua comunidade”, detalha.

Realizado em parceria com UFC, Ministério da Educação, Secretaria da Educação do Estado e secretarias municipais, o Projeto Escola da Terra  formou mais de 3 mil professores(Foto: Ilustração Carlus Campos)
Foto: Ilustração Carlus Campos Realizado em parceria com UFC, Ministério da Educação, Secretaria da Educação do Estado e secretarias municipais, o Projeto Escola da Terra formou mais de 3 mil professores

Ela destaca que esses grupos, especialmente os quilombolas, foram historicamente excluídos. “A exclusão social e educacional de uma maneira geral permanece. Se a gente for analisar os dados do Ceará, enquanto se divulga que tem as melhores notas do Ideb, educação na idade certa, há um índice de analfabetismo, e os grupos mais excluídos são justamente os negros”, afirma.

Segundo ela, alguns projetos fizeram a pauta avançar, “mas é insuficiente diante da realidade que está posta”. “A Escola da Terra assim como outros projetos contribuem, mas não são suficientes para um projeto de inserção na vida desses sujeitos históricos e sociais.”

Clarice avalia que o sistema de cotas ainda é precário, considerando que “esses grupos têm uma educação básica muito frágil para concorrer, é quase inacessível”. Ela corrobora que alguns ingressam, mas que a permanência é muito difícil dadas as condições. “A universidade é pública, mas os estudantes pagam por muita coisa. Na área das humanas, houve um avanço. Nos outros cursos, não. O número é muito baixo nas engenharias e na área da saúde”, analisa.

 

 

“Ancestralidade é trajetória”: educação para fortalecer os territórios

A psicopedagoga Marleide Nascimento, de 39 anos, nasceu e se criou na comunidade de Alto Alegre, localizada na zona rural de Horizonte, Região Metropolitana de Fortaleza. A comunidade conta com mais de 300 famílias associadas à Associação dos Remanescentes de Quilombo do Alto Alegre e Adjacências (Arqua), conforme o Mapeamento das Comunidades Quilombolas do Ceará.

Marleide nasceu pelas mãos de uma parteira, uma mulher negra como ela, a Mãe Irene. "Sou filha de Chica Rosa, uma mulher raizeira, benzedeira, mulher que gostava do cultivo com a terra, uma agricultora."

Traçar essa árvore da ancestralidade é celebrar a ligação que se tem com as pessoas que vieram antes. Isso é importante porque os quilombolas que entraram nas universidades na última década são responsáveis por abrir um caminho para que outros remanescentes de quilombos consigam ter acesso ao ensino superior. Como disse Nêgo Bispo, “a ancestralidade é trajetória”.

Marleide Nascimento, professora da rede pública, é da comunidade de Alto Alegre, zona rural de Horizonte (RMF)                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                          (Foto: Beatriz Boblitz)
Foto: Beatriz Boblitz Marleide Nascimento, professora da rede pública, é da comunidade de Alto Alegre, zona rural de Horizonte (RMF)

Hoje professora da rede municipal de Fortaleza, Marleide viu sua trajetória educacional ser atravessada por uma violência aos 12 anos de idade.

"Eu fui violentada e expulsa de casa, obrigada a sair do meu território porque a vítima é sempre culpabilizada. Hoje, eu vejo que aquilo foi uma estratégia de sobrevivência que a minha mãe usou para que eu pudesse sobreviver e resistir", avalia. "Eu resisti a partir de muita luta."

Ela saiu de casa para morar e trabalhar em casa de família na Capital. “A minha mãe disse assim (para a dona da casa): 'Você não precisa pagar nada. A única coisa que eu quero é que você permita que a minha filha estude’”. E assim foi dos 12 aos 17 anos.

Aos 17, precisou cuidar do pai e o sonho de tentar uma faculdade precisou esperar. Aos 23 anos teve o primeiro filho.

“Mesmo assim eu não desisti. Foi quando surgiu o Prouni, e eu tive acesso à minha primeira formação”, diz a professora, que na época cursou Marketing em uma faculdade particular e conseguiu se formar por meio do Programa Universidade para Todos (Prouni). “Eu levava meu filho todo dia comigo. Saía do trabalho e levava ele para a aula porque não tinha com quem deixar.”

Marleide Nascimento foi uma das quilombolas presentes no 17º Encontro das Comunidades Quilombolas do Ceará, no Quilombo Sítio Veiga, em Quixadá, e acompanhou as discussões que levaram à criação de estratégias para o acesso dos quilombolas na Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab).

Ela cursou Pedagogia por ser o único curso na época que aderiu ao programa. Depois, ingressou no mestrado em Humanidades.

A gente vai saindo da universidade e vai deixando outras sementes. Aí quando eu saio, eu saio pra ocupar outros espaços (Marleide Nascimento)

Com o direito da educação conquistado, Marleide se viu diante da missão de fortalecer outros territórios a partir da educação. Para isso, ela visitava territórios quilombolas para falar da importância dos jovens ingressarem nas universidades.

“Sempre houve uma interlocução entre a minha vida pessoal e o meu território porque eu sempre estive nas trincheiras, lutando para que o território fosse reconhecido e para que também houvesse educação de qualidade para as crianças quilombolas do meu território e a nível estadual”, defende Marleide.

“A gente vai saindo da universidade e vai deixando outras sementes. Aí quando eu saio, eu saio pra ocupar outros espaços”, relata. “Assumi a gestão de uma escola quilombola no meu território, fui diretora e lá comecei a pautar a educação escolar quilombola.”

Hoje, Marleide é atuante na Comissão Nacional para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (Cadara), instituído pelo Ministério da Educação (MEC) em maio de 2023. “Sou representante dos quilombos do Brasil, e nós pensamos estratégias de como vamos pautar essa educação contextualizada nos estados. Pensando não apenas na educação étnico-racial mas na educação especial quilombola também.”

Marleide Nascimento integra a Comissão Nacional para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, instituído pelo MEC(Foto: Beatriz Boblitz)
Foto: Beatriz Boblitz Marleide Nascimento integra a Comissão Nacional para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, instituído pelo MEC

Para ela, as políticas públicas são suportes importantes para uma população invisibilizada. “Muitas vezes (o quilombola) não consegue ir à escola porque não tem o transporte adequado, muitas vezes o transporte nem existe na comunidade rural. Se não há transporte, eu não consigo ir para a cidade”, explica.

A psicopedagoga entende que entrar no ensino superior é só o começo: “Esses sujeitos precisam permanecer. Para isso, necessitam da garantia de existir e de resistir, e por isso que a Bolsa Permanência é muito importante”.

“Os estudantes não têm condições de sair dos seus territórios que muitas vezes estão a 300 km de Fortaleza e de outros polos que possuem universidades públicas, sem eles terem condição de permanecer. Sem ter oportunidade inclusive de trabalhar porque quando eu saio do meu território e vou para a cidade estudar, eu preciso pagar o meu aluguel, preciso comer”, finaliza.

 

 

Comunidades longe das escolas

Pesquisa do Mapeamento das Comunidades Quilombolas do Ceará publicada em 2019 indicou que a distância da comunidade do Sítio Veiga (onde ocorreu o 17º Encontro das Comunidades Quilombolas do Ceará) para a escola de ensino fundamental mais próxima era de 3 km. Já quem precisava acessar uma escola de ensino médio precisava percorrer uma distância maior: 14 km.

De acordo com informações coletadas pelo Censo Demográfico 2022, o Nordeste concentra a taxa mais baixa de alfabetização de quilombolas (78,40%). O Censo indica que o analfabetismo entre quilombolas a partir de 15 anos de idade era 2,7 vezes superior ao registrado na população total do País.

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Quilombolas no ensino superior

Aquilombar para permanecer. Série especial discute os desafios das universidades para acolher a população quilombola do Ceará, dificuldades de acesso ao ensino superior, trajetórias de mobilização por políticas públicas e questões de permanência desses povos na academia.