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Direito de acesso de quilombolas ao ensino superior é "luta ancestral"
Reportagem Seriada

Direito de acesso de quilombolas ao ensino superior é "luta ancestral"

Pesquisadora das questões étnicas quilombolas, a doutoranda em História Social pela UFC Ana Eugênia destaca os desafios no acesso ao ensino superior e a necessidade de políticas de permanência na academia
Episódio 2

Direito de acesso de quilombolas ao ensino superior é "luta ancestral"

Pesquisadora das questões étnicas quilombolas, a doutoranda em História Social pela UFC Ana Eugênia destaca os desafios no acesso ao ensino superior e a necessidade de políticas de permanência na academia
Episódio 2
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Mãe Véia saiu de Pau dos Ferros, município do interior do Rio Grande do Norte, em 1906, e fez morada em Quixadá, mais especificamente na comunidade quilombola do Sítio Veiga. É na localidade distante 169,61 quilômetros (km) de Fortaleza que está fundamentada a ancestralidade de Ana Maria Eugênia da Silva, tataraneta de Mãe Véia. Pesquisadora das questões étnicas quilombolas, a dançadeira de São Gonçalo De acordo com o Governo Federal, a manifestação cultural é uma herança portuguesa em louvor a São Gonçalo do Amarante. A dança tornou-se uma tradição no Nordeste brasileiro. No Rio de Janeiro há uma igreja dedicada ao santo português. Ana Eugênia se reconhece na coletividade e na passagem das gerações de mulheres que vieram antes dela para dar continuidade a uma luta ancestral de direito ao acesso à educação.

“Sou filha de Socorro Eugenia, primeira professora quilombola do Sítio Veiga, dançadeira de São Gonçalo, neta de Maria Luiz parteira e tataraneta de Mãe Véia”, celebra. “Minha ancestralidade está no quilombo Sítio Veiga em Quixadá e sou filha e neta, bisneta de mulheres dançantes, raizeiras, que têm a coletividade como um dos princípios fundantes para a manutenção da vida. Que carrega em si o saber da terra, das plantas, dos animais, da vida.”

Ana Eugênia, pesquisadora das questões étnicas quilombolas, no quilombo do Sítio Veiga, onde é celebrada a dança de São Gonçalo(Foto: Márcia Paraíso)
Foto: Márcia Paraíso Ana Eugênia, pesquisadora das questões étnicas quilombolas, no quilombo do Sítio Veiga, onde é celebrada a dança de São Gonçalo

Ana Eugênia é doutoranda em História Social pela Universidade Federal do Ceará (UFC), bolsista da Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Funcap) e mestra em Humanidades pela Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab).

O acesso ao ensino superior se deu por meio do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera), quando, aos 43 anos, Ana Eugênia entrou no curso de Serviço Social pela Universidade Estadual do Ceará (Uece). Ela foi a primeira mulher do quilombo do Veiga e a primeira da família a entrar em uma universidade. Com a conquista, veio o entendimento de que não queria ficar sozinha no ambiente acadêmico: “Eu poderia até ser a primeira, mas eu não queria ser a única”.

O POVO - A senhora entrou para a universidade aos 43 anos. Como foi esse momento?

Ana Eugênia - Sou mãe solo e entrei na universidade em 2012, onde fiz um vestibular específico, uma espécie de cotas, do Pronera (Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária), e era destinado a alunos de Reforma Agrária. Foi na Uece. O curso acontecia tempo-escola e tempo-comunidade, pedagogia de Paulo Freire. Em 2013 começou e me formei em 2018. Sendo a primeira mulher quilombola das famílias Eugenia e Ribeiro a ingressar na universidade. A primeira do quilombo e a primeira da família a alcançar o ensino superior. E eu decidi que eu não queria ficar sozinha, que eu poderia até ser a primeira, mas eu não queria ser a única.

Então, entendo que a educação é de suma importância e desde então venho falando sobre a importância dos quilombolas, venho falando de nós nos espaços em que eu circulo e a importância do ensino superior.

Quando eu entrei na universidade eu tinha 43 anos, e por que tão tardiamente? Porque o normal é que a pessoa saia do ensino médio e já adentre no ensino superior. Para nós, população quilombola e população negra, população indígena e os grupos minoritários que são vistos e tidos como minoritários, essa não é a realidade. Então, eu entrei com 43 anos na universidade, já com dois filhos, e aí o desafio é de ser mãe solo, mulher e entrar na universidade, cursar o ensino superior.

Somente no Censo 2022, os quilombolas foram incluídos nas estatísticas do BGE(Foto: Ilustração Carlus Campos)
Foto: Ilustração Carlus Campos Somente no Censo 2022, os quilombolas foram incluídos nas estatísticas do BGE

O POVO - Quais foram os principais desafios encontrados nesse caminho?

Ana Eugênia - Então, foram muitos desafios, né? O primeiro deles era ter que deixar meus filhos, mas sabia que minha família cuidava. Nos quilombos há esse princípio de solidariedade. Que se você precisa sair, a família fica com os filhos. Mas uma [das crianças] era muito pequena e às vezes eu levava, isso me deixava ficar mais tranquila. E também um dos desafios era você estar em um espaço que é estranho, um espaço em que o teu corpo é tido e visto como exótico, um espaço em que o teu conhecimento não é contabilizado.

Então, eu me via e me sentia como sujeito de segunda categoria. E foi bem difícil a adaptação. O que facilitou o processo é que era uma turma que passava pelas mesmas dificuldades, eram os mesmos enfrentamentos, porque eram todos oriundos do campo, e aquelas dificuldades nós enfrentamos juntos.

Então, eu sempre penso na importância de você estar junto com os seus, embora sendo pessoas de diferentes lugares e estados, mas o que nós tínhamos em comum era a relação com a terra, porque todos aqueles estudantes da época do Serviço Social, da turma do Pronera, eram oriundos do campo. A gente sabia lidar, a gente sabia o jeito do outro, a gente vivia, embora em lugares diferentes, mas a realidade era muito parecida.

E isso foi importante para enfrentar os desafios, que foram muitos. O maior deles foi a questão do preconceito racial, porque a maioria eram pessoas negras, que tinham seus modos de ser e de agir diferentes, e isso incomodava as pessoas ali da universidade, mas nós enfrentamos. Em 2018 eu concluí o ensino superior, e foi uma felicidade enorme ser a primeira e abrir caminhos.

Sempre tive nessa mente de entrar e em qualquer lugar que eu estiver, eu vou estar abrindo caminhos para que outras pessoas possam adentrar também. Porque se eu entrei na universidade é porque alguém, outras gerações me proporcionaram isso. Não foi à toa, né? É uma luta constante e é uma luta ancestral para que a gente possa ter direito a acessar o ensino superior, direito à educação de forma geral.

O POVO - Qual é a importância da propriedade histórica quilombola nesse processo?

Ana Eugênia - Nego Bispo, grande intelectual quilombola, filósofo, nosso mestre que ancestralizou no passado, ele vai dizer no livro “A terra dá, a terra quer”, ele vai dizer que nós somos povos de encruzilhada. Não é qualquer caminho que serve para a gente, nós temos trajetória. E ele diz, nós somos começo, o meio e começo. As nossas trajetórias não têm fim.

E aí é importantíssimo que a gente conheça a nossa trajetória. Que a gente conheça quem veio antes de nós, de como o nosso povo foi consolidado, qual a história dos quilombos, para que a gente possa compreender porque é que há tanta desigualdade. E como nós somos povos de circularidade e de encruzilhada, sabendo disso, vamos lutar para que os nossos direitos sejam assegurados. Vamos lutar para que haja uma reparação histórica para as nossas gerações e as gerações futuras. E, para tanto, é preciso conhecer a história dos quilombos.

Filósofo Antônio Bispo dos Santos, o Nêgo Bispo(Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS Filósofo Antônio Bispo dos Santos, o Nêgo Bispo

Muitos dizem que o Brasil é rico por conta do café, do charque, da cana de açúcar. Isso é uma falácia, isso é um despautério. O Brasil é rico devido ao sangue dos povos africanos que foram obrigados a cruzar o Atlântico, do sangue dos povos indígenas que foram dizimados, mortos, estuprados, de todos esses povos. Então, é preciso uma reparação histórica para com essas populações.

A maioria dos quilombolas que estão hoje no ensino superior é o primeiro da família. Isso é uma violência sem precedência. Veja, eu cheguei à universidade com mais de 40 anos, depois de mais de um século que o meu povo chegou ao quilombo Sítio Veiga é que a gente tem a primeira quilombola a ingressar no ensino superior, a romper com o latifúndio do saber.

Isso é de uma tremenda violência. Eu sou a sexta geração da família Eugênio, lá do quilombo Sítio Veiga, e eu sou a primeira geração que está tendo a oportunidade de meus filhos entrarem na universidade. Meus filhos saíram do ensino médio e já foram para a universidade, e isso é fruto de muita luta, de uma luta ancestral.

O POVO - De que forma a universidade mudou a sua realidade?

Ana Eugênia - A universidade, e aí eu vou falar no contexto da Unilab, que para mim é uma universidade maravilhosa, que tem uma pedagogia maravilhosa, são professores comprometidos e cuja experiência de acesso para os quilombolas foi uma das maiores, que foi através do edital específico, que começa em 2017, lá no Quilombos Sítio Veiga, no 17º Encontro Estadual das Comunidades, em que uma das pautas era a educação. Que na ocasião vão professoras Eliane Costa, Jaqueline Costa, professor e doutor Ivan Silva, um estudante internacional, Samura Caetano, Geovane Quilombola, que até então era o primeiro quilombola a entrar na Unilab e que começa a questionar: “Por que os quilombolas não estão aqui nessa universidade?”

E nesse encontro, esses professores ouviram a demanda dos estudantes, aliás, da juventude quilombola, que dizia que queria entrar na universidade, porém não tinha oportunidade. E aí quando eles voltam, eles tensionam um edital, que no final de 2017, abre-se um edital no curso de Pedagogia onde foram destinadas 11 vagas, seis para quilombolas e cinco para indígenas, aqui no contexto do Ceará. E esse edital tem a duração de dois anos.

Foi de suma importância, primeiro porque ele foi pensado, foi pautado na especificidade, desde o acesso, né? Os alunos tinham uma prova específica, era um processo avaliativo específico e depois ele entrava, ele ia se juntar aos demais. Esse processo, eu lembro que, e aí eu escutava muitos estudantes quilombolas comentarem, de que as pessoas, quando eles iam falar de como tinham entrado, as pessoas diziam: "Ah, você entrou pelo edital específico?" É como se a gente não tivesse capacidade. E a gente diz assim: “Nós entramos pelo edital específico e nós entramos devido a uma necessidade, uma reparação histórica. Não é porque nós somos coitadinhos, não somos”.

Para Ana Maria Eugênia, a riqueza do Brasil vem do sangue dos povos africanos que foram obrigados a cruzar o Atlântico, do sangue dos povos indígenas que foram dizimados, mortos, estuprados, de todos esses povos(Foto: Ilustração Carlus Campos)
Foto: Ilustração Carlus Campos Para Ana Maria Eugênia, a riqueza do Brasil vem do sangue dos povos africanos que foram obrigados a cruzar o Atlântico, do sangue dos povos indígenas que foram dizimados, mortos, estuprados, de todos esses povos

O edital específico é uma reparação histórica, assim como as cotas. É pelos processos de violência sofridos pelos nossos ancestrais no passado que essas mazelas perduram até hoje. E isso causa e amplia as desigualdades sociorraciais. É preciso pensar em políticas de cunho afirmativo. E esse edital foi de suma importância para que estudantes quilombolas adentrassem na universidade.

No Ceará, a Unilab foi a primeira com essa experiência e foi muito positiva. Infelizmente esse edital foi cancelado, exatamente porque a nossa presença incomoda. A nossa presença mudou a cara da universidade, porque até então as pessoas quando ouviam falar de quilombolas, automaticamente se voltavam ao passado e viam o quilombo de Palmares, lá na época de Zumbi e Dandara. E não conseguiam pensar nos quilombos contemporâneos, era como se nós não existíssemos.

Houve uma interação e integração porque os estudantes da universidade que não conheciam os quilombos e os quilombolas passaram a conhecer, assim como os quilombolas passaram a conhecer outros territórios. E isso é importante. Ganha a universidade, ganham os quilombos.

E nesse ganho, que não dá para dizer quem ganha mais, quem ganha menos, mas ambas as partes ganham porque, no âmbito da universidade, a universidade amplia o olhar e abre as portas para mais sujeitos e, no âmbito dos quilombolas, esse conhecimento vai também ampliar os conhecimentos que nós já temos.

Como eu disse, imaginem a encruzilhada que o Nego Bispo fala, né? São vários caminhos e, assim, o conhecimento. Existem vários conhecimentos, nenhum é mais ou menos que o outro, mas todos eles são importantes e, com esse acúmulo de conhecimento, a gente pode pensar e lutar por uma sociedade mais justa e igualitária, a partir do acúmulo e do ajuntamento desses conhecimentos.

O POVO - E como a sua realidade impacta na universidade?

Ana Eugênia - A universidade tem sido uma luta constante. É uma luta para acessar, e para permanecer é uma outra luta. Primeiro porque a universidade, como eu já disse, não foi pensada para nós. Nós estamos aqui porque nós somos atrevidos mesmo, nós somos atrevidos e entendemos que a universidade também é nossa.

Mas quando a gente chega é como se a gente não tivesse chegado com nenhuma bagagem, quando na verdade nós somos conhecedores, nós somos conhecedores das plantas, da terra, do meio ambiente, da vida, da vida em comunidade, da luta pelo território, a gente está nos quilombos resistindo a todo tempo. Então, quando a gente chega à universidade, para muitos professores é como se a gente chegasse vazio. É como se o nosso conhecimento não valesse nada, e é um grande equívoco, né?

Nosso modo de ser, de falar, é ignorado, muitas vezes. Muitas vezes não levam em consideração a dificuldade que aquele estudante teve lá na escola, do ensino fundamental ao ensino médio, e isso vai refletir na universidade. Às vezes os estudantes também não têm acesso à bolsa, e nós sabemos que os quilombos, eles ficam muito distantes das universidades, então muitas vezes esses estudantes têm que sair do seu território.

Já é um grande impacto, e esse é também um dos desafios: você sair dos seus territórios e ir para um outro lugar. A maioria dos quilombolas, eles saem pela primeira vez (da comunidade) para ingressar no ensino superior, e isso é muito desafiador, você precisa pelo menos das condições para permanecer. Auxílio-moradia, auxílio-estudantil, bolsa-permanência são fundamentais para que o estudante quilombola permaneça e tenha sucesso no ensino superior.

O que nós queremos é que ele entre, ele permaneça, ele conclua e ele dê continuidade. É isso que nós queremos. Nós não queremos só o ensino superior, nós queremos mais, nós queremos ir para o mestrado, nós queremos ir para o doutorado, nós queremos ir para o pós-doc e nós brigamos e lutamos para isso. Mas tem sido desafiador, porque as pessoas acham que muitas vezes que se você tem uma graduação, então já basta, mas não, nós queremos continuar e vamos continuar, vamos abrindo o caminho para que outras pessoas, outros quilombolas também possam vir. Não só quilombolas, mas a gente luta para que outros grupos que historicamente estiveram fora das universidades possam adentrar.

Quilombolas do Sítio Veiga, em Quixadá, a 169,61 km de Fortaleza(Foto: Arquivo pessoal/ Ana Eugenia)
Foto: Arquivo pessoal/ Ana Eugenia Quilombolas do Sítio Veiga, em Quixadá, a 169,61 km de Fortaleza

O POVO - Falando nas comunidades quilombolas como um todo, de que forma o acesso à universidade se reflete nos povos tradicionais?

Ana Eugênia - Olha, outro dia eu tava conversando sobre essa questão de como a nossa entrada nas universidades se reflete dentro dos territórios. É que depois que a gente entra na universidade a gente começa a entender mais qual é o pacto da branquitude. E aí, por exemplo, quando se vai fazer a questão, a demarcação do território, a gente fica pensando: “Nossa, se naquele tempo eu tivesse esse conhecimento que eu tenho hoje, como seria diferente?”.

Muda, a nossa visão muda porque você passa a compreender até uma compreensão maior do conhecimento, assim como também a universidade, ela passa a ter um conhecimento maior sobre o modo de ser e de viver dos quilombolas e dos territórios. E isso também amplia a nossa visão de mundo no âmbito da saúde, no âmbito da educação.

A gente vai poder lutar com mais ênfase sobre a educação escolar quilombola, a gente vai poder lutar para que a saúde da população quilombola seja implementada no âmbito nacional, estadual e municipal. Nós vamos lutar por políticas que, de fato, respeitem a nossa particularidade e conheçam mais sobre a população quilombola, porque é vergonhoso quando você vai na esfera pública e as pessoas não sabem nem escrever a palavra quilombola. Muitas vezes não tem a categoria étnica.

Então, nós muitas vezes não aparecemos nesses espaços porque sequer tem o termo quilombola, e isso invisibiliza o nosso povo. Isso vai dificultar que sejam pensadas políticas públicas para a nossa população. Quem está nos espaços públicos deve conhecer quem é a população que vai atender. É indígena? Quantos povos há? Onde é que eles estão? É quilombola? Tem quilombola nesse município? Como é que eu vou fazer para saber? Tem que estudar. Tem que estudar.

Ana Eugênia é quilombola do Sítio Veiga, dançadeira de São Gonçalo e doutoranda em História Social pela UFC(Foto: Arquivo Pessoal)
Foto: Arquivo Pessoal Ana Eugênia é quilombola do Sítio Veiga, dançadeira de São Gonçalo e doutoranda em História Social pela UFC

O POVO - Como a senhora avalia as políticas de permanência atualmente? Elas são efetivas?

Ana Eugênia - O Censo de 2022 foi de suma importância porque pela primeira vez contabilizou a população quilombola. No Ceará, nós somos quase 24 mil quilombolas, presentes em 68 municípios, e isso é de suma importância porque agora, se o Estado, de uma ponta a outra, dizia que não podia fazer nada porque não sabia onde existia quilombola, onde eles (os quilombolas) estavam, agora tem um retrato fiel. É um documento que aponta a situação dos quilombolas e de seus respectivos territórios.

Nossa luta mãe é a questão do território, a demarcação do território, ela é a mãe de todas as lutas porque se os quilombolas tiverem acesso ao território, eles vão poder ter uma educação, vão poder estudar dentro de seus territórios e pautar uma educação escolar quilombola. Eles vão ter um posto de saúde dentro do território, eles vão ter mais dignidade, então a luta pelo território é a mãe de todas as lutas e é fundamental.

As políticas efetivas, as políticas valorativas, elas precisam respeitar essa particularidade. Nós não queremos só acessar, nós queremos permanecer. E uma das formas de a gente acessar é que se respeite a nossa particularidade, como destaca a convenção 69, ou art. 68 da Constituição, que vai falar que essas comunidades têm seus modos específicos. Então, as instituições precisam lidar com isso. No Ceará, veja, nós temos mais de 100 comunidades quilombolas.

Hoje, no Ceará, nós temos em torno de cinco pessoas que são doutoras quilombolas. É muito pouco. Nós somos quase 24 mil. E para você só ter quatro ou cinco doutores, é muito pouco. Então, daí você vê que é preciso que tenha mais política valorativa para que o nosso povo possa ter seu jeito. Direitos assegurados.

Ana Eugênia, pesquisadora das questões étnicas quilombolas, entrou na universidade aos 40 anos(Foto: Eliaquim Gonçalves)
Foto: Eliaquim Gonçalves Ana Eugênia, pesquisadora das questões étnicas quilombolas, entrou na universidade aos 40 anos

O POVO - Que caminhos poderiam fazer a diferença nessa questão das políticas de permanência?

Ana Eugênia - Os caminhos para que pensem em uma forma de incluir a população é uma inclusão participativa. Quem não senta para aprender não pode levantar para ensinar. A primeira coisa que tem que fazer é escutar esses sujeitos e construir essas políticas de forma conjunta, de forma coletiva.

Não dá para você pensar em uma política de inclusão elaborada sozinha, do seu modo, sem escutar, sem ter a participação desses sujeitos. O edital específico da Unilab para indígenas e quilombolas foi importantíssimo porque foi construído de forma coletiva, e ainda assim havia muitos problemas que a gente estava tentando enfrentar.

Hoje na Unilab nós temos uma política de ação afirmativa que inicialmente foi pensada por nós, mas que hoje a atual gestão faz sozinha sem escutar os seus pares e por isso que não dá certo. E por isso que vem cada vez mais entrando pouquíssimas quilombolas na Unilab. Por que? Porque precisa de uma política específica.

Não adianta eu preparar um banquete e botar um muro bem alto entre a pessoa que está com fome e o banquete. Algumas pessoas podem até chegar até a comida, mas a maioria ficará do outro lado com fome. Então, pensar em políticas de permanência é, sobretudo, escutar os sujeitos atendidos por essa política.

Então, viva as cotas, viva as políticas de ações afirmativas e viva os quilombos e os quilombolas, que são sujeitos de direito e que devem ser respeitados por toda a sociedade e devem ser incluídos dentro de uma política de ação afirmativa. Nós queremos um Brasil para os quilombolas, um Ceará para os quilombolas.

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