Do islã ao evangelho, o movimento feminista organizado começou a adentrar a religião na década de 1960, com a segunda onda feminista. Essas mulheres passaram a utilizar os textos sagrados como base para reivindicações, a partir de reinterpretações. No Cristianismo, teólogas feministas têm lutado, muitas vezes contra a própria Igreja, para contar a presença feminina na história de Jesus.
Nas Ciências Sociais, estudos sobre religião e gênero são recentes. O assunto começou a ser discutido na academia a partir da década de 1990, mas o termo teologia feminista surgiu nos anos 1960. "As teólogas feministas têm uma visão daquelas que foram as primeiras mulheres que deram essa outra perspectiva", explica o sociólogo Jonas Santos, que defendeu em 2017 a tese "Abrindo brechas na Igreja: Disputas e consensos em torno da leitura feminista da Bíblia".
A luta de mulheres por reconhecimento na Igreja Católica data de muito antes. A história da freira mexicana Juana Inês da Cruz remonta ao século XVII. Ela virou referência nos estudos feministas na América Latina por, já naquela época, ter lutado pelo direito de estudar. No fim do século XIX, com o movimento sufragista na primeira onda do feminismo, havia muitas mulheres evangélicas que faziam esse questionamento da condição de submissão e como a religião era usada para justificar a situação.
O resultado desse movimento é a Bíblia da Mulher. "Várias mulheres de igrejas diferentes se reúnem para fazer uma tradução da Bíblia sobre a ótica da mulher. Nessa época ainda não havia o feminismo em si nessas práticas", frisa Santos. A teóloga feminista Maria José Rosado conta em seu artigo “O impacto do feminismo no estudo das religiões” que a Bíblia da mulher é considerada o ponto de partida de um longo e fragmentado processo que levará, no fim dos anos 1960, à constituição de uma Teologia Feminista, em concomitância com o surgimento da Teologia da Libertação.
Há 20 anos, Terezinha Casemiro, 78 anos, coordena um grupo de leitura feminista da Bíblia. "A partir da desconstrução de textos bíblicos patriarcais, biblistas, teólogas feministas vão reconstruindo os textos e desvelando as mulheres cujo papel foi mantido escondido ou atenuado, incluindo-as como protagonistas", explica a cientista social aposentada. Ela conta que foi criada na base da tradição cristã católica e estudou a vida toda em colégio de freiras. "Sempre me inquietou a ideia de Deus como homem. Nos espaços, tanto familiares, como escolares, não tive coragem de manifestar essa inquietação", explica.
Depois de se aposentar, ela fez um curso de Ciências Religiosas, mas continuava sem respostas para os questionamentos. Em 1998, começou a participar do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos (Cebi - CE). "Dos textos opressores, condicionantes, limitantes e patriarcais, para textos libertadores, à luz da leitura popular e libertária da Bíblia", conta.
Apesar disso, Terezinha não enxerga que as instituições religiosas estejam amparando suas reivindicações como mulher. "Há nichos, setores e lideranças que apoiam as lutas das mulheres para se afirmarem como pessoas plenas de dignidade e direitos, mas institucionalmente deixam muito a desejar, não só na tradição cristã, mas em outras vertentes religiosas", lamenta.
"Se Deus é macho, então o macho é Deus". Essa frase é da obra da teóloga feminista Mary Daly e se chama “Beyond God the Father”, publicada em 1973. A imagem masculina da divindade e a figura submissa e virginal de Maria ainda é uma questão muito discutida entre as feministas cristãs, assim como Terezinha.
A teóloga feminista Andrea Lima faz parte da ONG Católicas pelo Direito de Decidir há cinco anos. Andrea sempre foi religiosa e foi questionando as práticas religiosas que ela chegou ao feminismo. "As mulheres sempre tiveram e têm muito a oferecer para a religião e outros campos. Dentro da religião, infelizmente, devido ao lado conservador e patriarcal, a gente nota que nossa prática às vezes não é reconhecida ou recebida da forma como deveria ser. E a partir da prática eu percebi que precisávamos nos manifestar de uma maneira que fossemos ouvidas", conta Andrea.
A ONG foi fundada em 1993 no Brasil levantando a pauta dos direitos reprodutivos e sexuais das mulheres. Além disso, Andrea ressalta a luta da ONG por um Estado laico. "Por sermos religiosas e termos nossa fé acima de tudo, queremos um Estado laico, para que todas as mulheres e todas as religiões tenham vez, porque se for um Estado pautado em apenas uma religião, com certeza, as outras não vão ser agraciadas com direito."
Em outubro de 2020, a Justiça de São Paulo decidiu que a ONG não podia usar o nome "'católicas"', alegando que a finalidade da associação "revela incompatibilidade com os valores adotados pela Igreja Católica". A decisão atendeu a pedido da Associação Centro Dom Bosco de Fé e Cultura, organização católica e conservadora com sede no Rio de Janeiro. A organização argumenta que a ONG "tem a pretensão de implementar agenda progressista e anticatólica em meio aos católicos". A CDD entrou com recursos e aguarda julgamentos no Superior Tribunal de Justiça (STJ) e no Supremo Tribunal Federal (STF). As partes aguardam o sorteio de ministro ou ministra que será responsável pela relatoria dos processos nos dois tribunais superiores. Não há previsão de quando o processo terá avanço.
Diante desse contexto, Andrea aponta que o trabalho desempenhado pelas teólogas feminista tem ficado cada vez mais dispendioso. Desde o Concílio Vaticano II, na década de 1960, a Igreja só recuou em relação aos direitos das mulheres e questões de gênero, conforme ela salienta. A ponto de se chegar à perseguição sofrida por membros da Igreja Católica. Foi o caso de freira teóloga Ivone Gebara, uma das fundadoras do CDD.
"Ivone Gebara é um grande exemplo no Brasil, mas em nenhum momento ela se afastou dessa Igreja que a calou e a perseguiu. Não estamos interessadas em ir contra uma Igreja de que fazemos parte. Estamos contra as ações do patriarcado, aquilo que nos limita, que quer controlar nosso corpo e nossa mente", completa Andrea sobre a motivação em continuar lutando contra as estruturas da própria religião.
Esse é um questionamento frequente para Eliana Coelho. A feminista evangélica de 37 anos diz que, ao contrário de outras amigas que preferem falar que são feministas cristãs, ela se autodenomina feminista evangélica para disputar esse perfil do evangélico tradicionalista. Um campo cuja atuação política ganhou notoriedade na eleição do presidente Jair Bolsonaro. Ela se converteu aos 14 anos, mas, desde pequena, a mãe a levava à igreja, apesar de o pai não ser convertido e nem frequentá-la.
"Se você pensar do jeito que o televangelismo e o fundamentalismo religioso pregam, existe contradição, mas, se você conhecer a Bíblia e o debate que tem dentro dela, você vai ver que não. A versão que está em voga é a fundamentalista, é ela que apoia Bolsonaro", afirma.
Para explicar isso, Eliana separou religião e espiritualidade. "Eu posso ter uma espiritualidade fundamentalista e nunca ter pisado em uma igreja. Eu entendo que isso é um reflexo da contemporaneidade. Essa bricolagem e esse trânsito que faço, é uma coisa da contemporaneidade", comenta a professora sobre o exercício de reinterpretação dos preceitos bíblicos.
Eliane lembra de coisas que a incomodavam desde a adolescência, quando frequentava cultos. "No ministério de artes, a gente tinha uma amiga que era divorciada, e eu via como ela tinha muitos talentos e não era incluída em nada, e isso me incomodava", explica. Em 2013, na série de manifestações, ela começou a se engajar mais nos movimentos sociais e nas redes sociais. Descobriu o grupo "Feministas cristãs" no Facebook. Foi lá onde encontrou outras mulheres que também ousam questionar práticas patriarcais dentro das assembleias. Nessa época, ela já tinha parado de frequentar igrejas e, apesar disso, não se sente menos evangélica.
Pesquisa do Datafolha, publicada em janeiro de 2020, mostrou que 50% dos brasileiros são católicos e 31%, evangélicos. Mulheres representam 51% entre os católicos e 58% entre os evangélicos. Estudo do demógrafo José Eustáquio Alves, professor aposentado da Escola Nacional de Ciências Estatísticas do IBGE, feito também em 2020, projetou o crescimento da população evangélica, que segundo ele deve ultrapassar a população de católicos no País a partir de 2032, com crescimento médio de 0,8% ao ano desde 2010.
É importante diferenciar o trabalho de teólogas feministas dos estudos feministas da religião. De acordo com a teóloga feminista Linda Woodhead, ao abordar o estudo de religião e gênero em termos de uma problemática simples: a religião é “boa” (libertadora) ou “má” para as mulheres, os estudos feministas da religião acabam reforçando o discurso patriarcal das religiões.
Jonas explica que, no caso da tradição católica cristã, o movimento feminista afetou a estruturação interna. "Até o começo do século XX, prevalecia a ideia de submissão da mulher. Neste Concílio (Vaticano II) há essa mudança. Elas atribuem essa mudança às demandas do movimento feminista das décadas de 1950 e 1960", explica. O objetivo do Concílio do Vaticano II, convocado pelo papa João XXIII em 1961, era "promover o incremento da fé católica e uma saudável renovação dos costumes do povo cristão, e adaptar a disciplina eclesiástica às condições do nosso tempo", como declarou a própria autoridade na bula papal "Humanae salutis".
Nos anos 1980, o papa João Paulo II escreveu documento retomando as ideias do Concílio, mas, em um contexto geral, no documento não existe uma discussão sobre outros papéis para as mulheres. "Parece que o único papel da mulher é ser mãe ou freira. Volta a discussão da virgindade mais uma vez, uma discussão que as teólogas feministas questionam bastante", explica Jonas.
De acordo com o sociólogo, isso foi uma resposta da Igreja às pressões sociais. Ele explica que, ao contrário do que diz o discurso de que a religião é totalmente diferente das esferas sociais, ela é impactada pelas questões de classe, raça e gênero. Em 2020, o papa Francisco nomeou a italiana Francesca Di Giovanni como subsecretária da seção de relações com estados do Secretariado de Estado, órgão que cuida das questões administrativas e da diplomacia do Vaticano. Ela foi a primeira mulher a ocupar uma alta posição neste órgão.
Olhar para o humano a partir da fé, das crenças e da influência exercida pela religião na sociedade