Os versos do título podem revelar certo desabafo de Roberto Carlos com a intelectualidade brasileira na década de 1960. Trata-se da música “Querem acabar comigo”, terceira faixa do disco de 1966 do artista. O trabalho sucede o LP “Jovem Guarda” (1965), que — curiosamente — tem como uma das canções principais “Quero Que Vá Tudo Pro Inferno”, composta por Roberto e Erasmo Carlos. À época, em meio a ditadura militar, o rei era definido pela crítica musical como alguém alheio à reflexão política sobre o País.
O livro “Querem Acabar Comigo: da jovem guarda ao trono, a trajetória de Roberto Carlos na visão da crítica musical” passeia pela trajetória de RC à luz da imprensa especializada. Recém lançada pela editora Máquina de Livros, a obra está disponível nas principais livrarias do País, em versões impressa e digital. Autor do livro, o pesquisador carioca Tito Guedes repercute ao O POVO um tanto dessa relação paradoxal: Roberto Carlos era sucesso de público, mas não da crítica.
O POVO - As canções de Roberto Carlos repercutem desde a jovem guarda. Contudo, a crítica musical e os intelectuais brasileiros definiram o artista, por muito tempo, como um alienado, limitado e até “cafona”. Por que isso ocorreu?
Tito Guedes - Em suas análises, a crítica musical costuma adotar uma régua avaliativa muito rígida, que delimita uma fronteira muito clara entre o suposto "bom gosto" e o "mau gosto". Nos anos 1960, por exemplo, quem não fizesse uma música com discurso engajado socialmente ou associada a gêneros brasileiros "tradicionais", como o samba e a bossa nova, era desvalorizado. E foi isso o que aconteceu com Roberto Carlos. Mais tarde, nos anos 1970, por sua entrega ao gênero romântico, que não tinha medo de soar melodramático, diferente de artistas "minimalistas" como os da MPB, a crítica o associou muito à música chamada "cafona", que também prezava por uma musicalidade mais dramática.
O POVO - Quais episódios se destacam dessa oposição?
Tito - O primeiro foi em 1965. Nesse ano, logo que estourou na Jovem Guarda, Roberto foi descrito como um "debilóide" que cantava músicas sobre carros por um crítico de TV que analisou o programa, o que mostra como o movimento incomodava e era mal visto pela intelectualidade da época. Depois, nos anos 1980, Roberto atravessou quase a década inteira sofrendo críticas severas, cobrado anualmente por mudanças e rupturas estéticas em seus discos. No entanto, ele nunca deixou de ter um disco avaliado pelos cadernos de cultura. O que mostra que seus trabalhos, apesar de não agradarem à maioria dos críticos, eram considerados, ainda assim, relevantes para a música brasileira.
O POVO - Essa relação conturbada com a imprensa especializada perdurou por bastante tempo na carreira de RC. Em que momento isso começa a mudar?
Tito - Na segunda metade da década de 1960, diversos acontecimentos passaram a amenizar a forma com que Roberto era lido pelos críticos musicais - embora isso não tenha significado, nem de longe, uma redenção completa. Primeiro, o surgimento da Tropicália, movimento musical de grande repercussão, defendeu, num momento de discussões acaloradas, a qualidade musical da obra de Roberto e de outros artistas da Jovem Guarda. Pouco depois, em 1968, quando ele venceu o Festival de San Remo, na Itália, que tinha enorme prestígio internacional, a crítica passou a enxergar Roberto como um artista de importância para a música popular brasileira, apesar de ainda fazer ressalvas sobre seu repertório.
O POVO - Quando há a consolidação do trono de “Rei”? O que muda na visão da crítica musical para considerar a sua discografia como “obra-prima”?
Tito - Por parte do público, essa consolidação aconteceu ainda nos anos 1960, quando ele explodiu com a Jovem Guarda e a música "Quero que vá tudo pro Inferno". Chegou a ser coroado (literalmente) no programa do Chacrinha. Por parte da crítica musical, contudo, essa consolidação demorou e sempre se deu com muitas ressalvas. Nos anos 1970, quando ele se consagrou como cantor romântico, ganhou mais respeito e passou a frequentar com cada vez mais frequência as páginas de cultura dos jornais de grande circulação, embora ainda fosse tachado muitas vezes de "cafona". Ou seja: a coroação nunca foi definitiva. Nos anos 1990, de fato, existe um resgate dos críticos de sua obra pregressa, sobretudo a produzida em fins dos anos 1960, que antes era avaliada como sem valor. Um dos fatores mais importantes é o distanciamento histórico - os críticos de 1990 puderam olhar para essa obra sem o olhar muitas vezes preconceituoso com que o então jovem Roberto era visto na época.
Livro “Querem Acabar Comigo”
De Tito Guedes
Editora Máquina de Livros
144 pág.
Quanto: R$ 42 (impresso) e R$ 28,90 (e-book)
Ao fim da década de 1960, que mostrou o trabalho de Roberto Carlos ao mundo, o artista já havia produzido nove discos. Com Erasmo e Wanderléa, participou de festivais e transmissões televisivas pelo Brasil, mas também realizou shows internacionais, como na França. O cantor, inclusive, casou-se com Cleonice Rossi Braga em 1968, adotando sua filha mais velha, Ana Paula Rossi Braga. Com ela, teve ainda dois filhos: Luciana Carlos e Roberto Carlos Segundo. No álbum “Roberto Carlos” (1969), se percebe a transição do rockeiro para o romântico. Tem-se, aí, novas facetas da discografia do artista que perduram até hoje.
Roberto Carlos está em isolamento social desde março de 2020, quando a Covid-19 chegou ao Brasil. Por isso, teve o especial de fim de ano cancelado e o cruzeiro “Projeto Emoções Praia do Forte (BA)” adiado para 2022. Em entrevista recente ao O Globo, defendeu a ampla campanha de vacinação para o enfrentamento da pandemia e disse que o contexto potencializou seu transtorno obsessivo-compulsivo (TOC). Ele parou de fazer chapinha no cabelo. E, tomando sorvete, assiste ao reality show Big Brother Brasil 21.
Roberto se prepara para ver sua trajetória em filme, dirigido por Breno Silveira. E, ainda, apronta mais um tema de novela. Durante o período de reclusão, tem feito novas canções. No momento em que celebra seus 80 anos de existência, reflete (mais do que nunca) sobre o antes, agora e depois. Já dizia sua canção mais tocada de todos os tempos: “É Preciso Saber Viver”.
Ana Mary C. Cavalcante, jornalista
Fã tem esses pensamentos, de achar que é amigo do cara. O cara, no caso, é o artista. E, no caso do Roberto Carlos, é o rei. Então, na lógica do fã, somos amigos do rei. Por que não? Se Roberto tem um milhão de amigos, não é possível que eu não esteja no meio deles. Bicho, o papo firme é o seguinte: para mim, RC (já temos até certa intimidade) é meu amigo de fé, amigo de tantas jornadas e alguns vinhos, ao lado do Chico (sim, o Buarque). Somos dois românticos ridículos e fora de tempo. Daqueles que ainda mandam flores.
Mas nossa relação não começou no jardim da nossa casa, não. Começou no alpendre que margeava o quintal da casa da minha avó materna. Eu tinha uns oito, dez anos (no máximo), lia contos de fadas e eram, então, dezembros. A patota toda da mesma idade, uns 20 primos e primas vestidos de Natal, numa ciranda, cantando para os adultos:
De todos os lugares vinham aos milhares
E, em pouco tempo, eram milhões
Invadindo ruas, campos e cidades
Espalhando amor aos corações
Em resposta, o céu se iluminou
Uma luz imensa apareceu
Tocaram fortes os sinos, os sons eram divinos
A paz tão esperada aconteceu.
Inimigos se abraçaram e juntos festejaram...
(Parece que foi ontem. Ou, talvez, aconteça ainda amanhã)
Eu fazia o refrão, a parte do “lá lálálá lá lá lá” – que, na letra original de “A Guerra dos Meninos”, era “na nanana na na na”. Enfim. O importante é que não tinha rede social, na época, e ficou tudo na memória – que se encarrega de fazer a edição e o encanto.
Depois dos dezembros, quando RC batia ponto antes da ceia em família, vieram as jovens tardes e noites de domingo: as paradas de sucesso, Chacrinha e Globo de Ouro, e o coração já encontrando o rumo – ou se perdendo de vez. Do alpendre para o sofá da sala foi um pulo.
A patota crescia e a ciranda continuou, mas de maneira diferente – meio quadrilha-drummoniana: João amava Teresa que amava Raimundo/ que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili/ que não amava ninguém. E RC ali, no meio, falando da primeira vez, da ânsia mais louca, de curvas e cavalgadas e de um caminho encantado que a natureza ensina. Era uma brasa, mora?
"Não sei por que razão, tudo mudou assim. Agora, é tão difícil olhar o mundo e ver o que ainda existe. A alegria ficou triste, Roberto: mais de 300 mil mortos, e avançando para 400 mil ausências, em pouco mais de um ano, no País, pela Covid-19... "
Tanto quanto os shows do Roberto Carlos em Fortaleza. Depois da carteira assinada, eu fui a todos, indo e voltando pelo Paulo Sarasate e pelo Castelão: do Marina Park ao Siqueira Clube (ou foi no Lagoa, da Parangaba? Faz tanto tempo, que eu só me lembro que um dos shows do rei foi numa quadra, no fim do mundo).
Eu começava a juntar dinheiro para o ingresso a partir do mês seguinte ao último show, tinha a “caixinha do show do RC”. Íamos eu e minha Lady Laura, o amor para toda canção. Tentei, mas nunca peguei uma rosa (não chegava na arquibancada) – só um dia desses da pandemia, é que eu consegui uma, na live do RC, pelo QR code. De todo modo – de ônibus, de topic, de táxi ou a pé, foram tantas alegrias; velhos tempos, belos dias. Quando se aglomeravam todas as saudades. Quando a gente bebia, em cada boca, o gosto de tudo. Quando nossos corpos eram a mistura perfeita, o côncavo e convexo.
Não sei por que razão, tudo mudou assim. Agora, é tão difícil olhar o mundo e ver o que ainda existe. A alegria ficou triste, Roberto: mais de 300 mil mortos, e avançando para 400 mil ausências, em pouco mais de um ano, no País, pela Covid-19... As mãos buscando, em vão, alguma presença. Lembranças que chegam em noites tão vazias. Vamos vivendo por viver, os valores confusos, reprimidos, sem saber aonde ir. A distância tira pouco a pouco a esperança. Tantos planos, sonhos, feitos em pedaços pelo novo coronavírus e por outros absurdos.
"Ainda assim, ficaram as canções, meu amigo, uma para cada história de amor. Éramos festa, Roberto; e, eu agarro, ainda seremos. Seguimos caetaneando: um dia, outra vez, a areia branca, a água azul do mar, janelas e portas vão se abrir, as luzes e o colorido, mais um instante, ficar"
Ainda assim, ficaram as canções, meu amigo, uma para cada história de amor. Éramos festa, Roberto; e, eu agarro, ainda seremos. Seguimos caetaneando: um dia, outra vez, a areia branca, a água azul do mar, janelas e portas vão se abrir, as luzes e o colorido, mais um instante, ficar.
Porque sempre nos restará/nos resta o amor. (Um brinde) Amor não tem a ver com tempo, não é, meu velho?, mas com atrevimento. Papo firme: Roberto e eu preferimos as curvas da estrada da vida. Estou falando desse Roberto amante, de fazer as estrelas mudarem de lugar, de se dá muito mais do que está e o que não está escrito. Para nós, o amor é assim: tem sua própria lei, na desordem do quarto e neste mundo desamante. (Mais um brinde) E já pensamos em viver a vida só de amor. Quem nunca?
Acontece que também houve um casamento e três divórcios. E RC ali, comigo, em todo fim de madrugada. Sempre que eu tinha tanto para falar, mas com palavras não sabia dizer, apertava o play e Roberto dizia: Como vai você/ que já modificou a minha vida/ Razão da minha paz já esquecida?”. Ou então: “Sua estupidez não lhe deixa ver que eu te amo/ use a inteligência uma vez só/ quantos idiotas vivem só/ sem ter amor. A saideira: Me esqueci, de tentar te esquecer/ Resolvi, te querer, por querer/ Decidi te lembrar quantas vezes/ Eu tenha vontade, sem nada perder". E lá pelas tantas: “Se alguém tocar seu corpo como eu/ não eu não diga nada./ Não vá dizer meu nome sem querer/ à pessoa errada. Era Roberto atrás de Roberto.
"Eu e RC mantemos um amor demais antigo, amor demais amigo, que de tanto amor viveu. Detalhes de uma vida, sabe? Roberto Carlos – a 120... 150... 200 km por hora – me traz meu passado e as lembranças"
Até que quase tudo sumiu na poeira dos grandes amores. Mas quase também é mais um detalhe, não é RC? Bom, então, foi o tempo de conhecer o Chico e dar risada do grande amor. Isso, só depois dos lençóis macios, travesseiros soltos, roupas pelo chão. Primeiro, foi o Roberto.
Eu e RC mantemos um amor demais antigo, amor demais amigo, que de tanto amor viveu. Detalhes de uma vida, sabe? Roberto Carlos – a 120... 150... 200 km por hora – me traz meu passado e as lembranças. Esses seus cabelos brancos, esse seu olhar cansado continuam me dizendo coisas, momentos que eu não esqueci: as coisas simples que dizemos antes de dormir; de manhã, o bom-dia na cama; o beijo, depois, o café, o cigarro e o jornal. Sei tudo que o amor é capaz de me dar. Se chorei ou se sorri... (Um brinde) Você tinha razão, Roberto – meu querido, meu velho, meu amigo.
Para celebrar os 80 anos de Roberto Carlos, O POVO preparou uma série de playlists de canções do rei. Na primeira delas, "Um milhão de amigos", os sucessos de RC na voz de seus intérpretes:
Em "As canções que você fez pra mim", as composições de Roberto Carlos lançadas por outros intérpretes e inéditas em sua voz:
Já em "Como é grande o meu amor por você", uma Seleção Vida&Arte, com canções diversas da discografia de Roberto Carlos para ouvir em qualquer tempo. Confira!
Reportagem especial mostra como o rei Roberto Carlos e sua obra se espraiaram pela cultura brasileira. Famosos e anônimos indicam o seu Roberto preferido: o da jovem guarda, o da religião, o das canções românticas...