Kiaras, Sophias, Gustavos, Karolinys, Joãos, Brenas e tantos outros meninos e meninas em idade escolar que, diante da pandemia de Covid-19 e da necessária paralisação das atividades presenciais das escolas estão atravessando os meses com pouca ou nenhuma aprendizagem.
As situações se repetem nas periferias de Fortaleza e em cidades do Interior do Ceará ocasionadas por problemas como a dificuldade de adaptação do ambiente domiciliar às atividades de ensino, aprofundamento de vulnerabilidades sociais, pais com defasagem de alfabetização tendo de orientar a aprendizagem, acesso limitado ou mesmo a inexistência do acesso à internet.
Confira a seguir histórias de quatro famílias com filhos em redes municipais de ensino cujos os caminhos até o conhecimento têm sido de provações.
Infortúnios em série foram se acumulando na vida da estudante Kiara Emily, 13, desde antes do início do isolamento, que provocou a paralisação das aulas presenciais. Aluna do nono ano, o último do Ensino Fundamental, da Escola Municipal Maria Helenilce Cavalcante Leite Martins, no bairro Conjunto Palmeiras, Kiara nem mesmo recebeu os livros didáticos deste ano, que poderiam auxiliá-la neste momento de estudos remotos.
Quando vieram os decretos, em março, a menina quebrou o celular e uma chuva forte queimou o modem da internet da casa da família. Num momento crucial de adaptação à nova rotina, ela se viu longe do grupo de WhatsApp da turma pelo qual poderia receber as atividades de cada matéria e as orientações dos professores.
"É complicado estudar em casa, é difícil conseguir se concentrar nas atividades. Quando soube que não iria mais ter as aulas presenciais, fiquei nervosa, porque eu não sabia como iria me adaptar a isso. Mesmo que eu mal saísse de casa já antes, eu ia à escola e era um espaço mais fácil de eu conseguir me concentrar, porque tinha o biblioteca, o ambiente de estudo é mais calmo", conta.
Com o contato de um professor de Português, Kiara conseguiu dar segmento apenas aos estudos dessa matéria. O professor passou a enviar as atividades para o celular da mãe da aluna, a dona de casa Clediane Silva, 37, que também só recebia as tarefas quando era possível ter crédito no aparelho.
A internet, depois de quase dois meses, foi consertada na casa de Kiara e, com um dinheiro extra, a família conseguiu recuperar um computador que tem auxiliado nas pesquisas dos estudos.
Mais recentemente, junto à cesta básica entregue pela Prefeitura de Fortaleza, Kiara recebeu cadernos de atividades de Português e de Matemática. Clediane, que fez até a sétima série do Ensino Fundamental, e o irmão Ismael, que está no terceiro ano do Ensino Médio, ajudam a tirar as dúvidas que têm surgido.
Clediane conta ainda que a filha já tinha alguns problemas de insônia que se agravaram durante o isolamento.
"A vontade dela sempre foi passar pro IFCE (Instituto Federal do Ceará), e escola profissionalizante depende muito de nota. Ela nunca repetiu de ano, nunca ficou de recuperação. E agora está com medo que isso aconteça. Esse temor deixou ela mais ansiosa, mais preocupada, estressada", detalha a mãe.
Ao passo que sente falta das aulas de Inglês e de História, Kiara também pensa em como será o retorno às aulas presenciais e o volume de matérias que terá de recuperar.
"A gente pode até aprender algo em casa, mas não vai ser o mesmo, sem a supervisão do professor é meio difícil. Eu me preocupo, principalmente, porque não acompanhei as tarefas, vou ficar meio perdida. Mas espero que eles (os professores) colaborem comigo. Eu gosto de estudar e espero que eles criem um plano pra ajudar quem não conseguiu acompanhar", projeta.
Por meio de nota, a Secretaria Municipal da Educação (SME) informou que os livros para o Ensino Fundamental, enviados pelo Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD), do Governo Federal, não foram suficientes devido ao aumento de matrícula na Rede Municipal, já que a distribuição é de acordo com projeções do Censo Escolar referente a dois anos anteriores ao ano vigente.
Para realizar o ajuste, o Município faz o remanejamento dos livros que estão excedendo em alguma unidade para aquelas onde ocorre falta de livros. “Quando a demanda não é suprimida por esta via, o órgão federal orienta a solicitação da Reserva Técnica, através de sistema disponibilizado pelo Ministério da Educação".
Contudo, a SME aponta que o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) adiou a abertura do sistema para esta solicitação. Apenas no fim de junho, o sistema da autarquia foi reaberto, mas passou por problemas e teve de ser, novamente, fechado sem previsão de data para normalização.
Com o celular da mãe nas mãos, o menino Gustavo Bezerra Roldão, 10, se coloca perto da porta do banheiro. É que ali, vez ou outra, o sinal da internet do vizinho chega e ele consegue assistir a um pedaço do vídeo que o professor mandou o link.
Também é daquele canto da casa, no Conjunto Ceará, que a mãe, a artesã Carla Cristina Bezerra Roldão, 38, baixa os PDFs mandados às terças-feiras no grupo na Escola Municipal Irmã Maria Evanete no WhatsApp, e envia para a lan house do bairro - aberta à meia porta, mesmo quando não podia poder.
É na lan house que Carla consegue um preço camarada para imprimir as atividades escolares dos filhos Gustavo e Sophia Bezerra Polinário, 7.
“Tem que ficar balançando direto o celular pra internet pegar. Dá pra ver os vídeos, mas fica pausando, isso atrapalha, eu me desconcentro, tenho que voltar, porque, quando para e volta, eu nem sei o que ele tava falando antes”, conta Gustavo
Ele é aluno da quarta série do Ensino Fundamental e tanto ele quanto Sophia tinham uma rotina de quatro horas de estudo pela manhã, que foi substituída pela resolução de tarefas por uma hora no turno da tarde, sob a supervisão da mãe.
A artesã conta da saudade que a dupla tem da escola. Sophia chegava a vestir a farda e chorar para ir à aula.
“Na escola tinha tarefinha, brinquedo, meus amiguinhos, a professora. E eu aprendia mais na escola. Quero voltar a ir. Vou chegar lá e dar abraço na professora, na tia da cantina, nos amiguinhos. Abraço não que, não pode, né? Vou dar uma palma de cotovelo”, declara Sophia.
Como Gustavo sabe ler, a atenção de Carla fica mais voltada para Sophia - a pequena, que cursa a segunda série, é facilmente dispersa do estudo em casa.
“O Gustavo é rápido, ele faz o dever dele só, o que ele não sabe ele me pergunta. A Sophia é mais difícil, porque ela ainda está aprendendo a ler e não se concentra. Além disso, são duas crianças pra assistir aos vídeos que os professores mandam e é só um celular, aí sempre complica”, detalha Carla
Além dos vídeos e do conteúdo dos PDFs, os dois recebem cadernos de atividades mensalmente, junto com as cestas básicas e ainda há a resolução de exercícios nos livros didáticos.
“Claro que, disso tudo, têm algumas coisas que eles tão pegando, mas a maioria mesmo é melhor na mão da professora. Fora que nesse tempo de quarentena nem todo mundo tem tempo e paciência pra ensinar menino. Acho que vai ser preciso fazer um reforço grande quando voltar”, indica a mãe.
Poliana Rodrigues, 25, ainda tentou. Organizou uma mesinha, colocou papel, lápis de cor, tinta e pôs os dois filhos João Miguel, 3, e Brena Kelly, 5, sentados para as atividades escolares na sala de casa.
Moradora do bairro Campo Novo, em Quixadá, no Sertão Central, a família ainda depende da internet cedida do vizinho e do bom tempo para que o sinal de telefonia chegue. As atividades que a mãe tenta ter acesso são da Escola Manoel Cândido Dantheias Creche, onde os filhos são alunos do Infantil III e V.
“Dia desses, eu fui ser a professora deles, mas não tem como. Peguei o caderno deles, fui ensinar as vogais, eles estressam a gente. Eles me veem como mãe e não como a professora. Do mesmo jeito a casa, que eles não entendem como a escola. Então, eles não se concentram. É muito difícil, por conta da idade deles. Eu ainda pego o cronograma da professora aqui e acolá, não faço todo dia, porque eles não ficam, não querem assistir, querem ver outras coisas”, conta a mãe.
Poliana ainda detalha que a filha menor, Melissa, de 1 ano e 8 meses, acostumada a passar as tardes sozinha em casa com a mãe, tem reivindicado caderno e lápis quando vê as tentativas de ensino dos irmãos. “É uma confusão, no fim, nenhum dos três aprendem”, lamenta. O trio ainda é atrapalhado pela qualidade do sinal da internet que só pega, às vezes, na sala.
A instabilidade é tanta que a entrevista concedida ao O POVO, mesmo feita por telefone, só foi possível depois de muitas tentativas, e o envio de uma foto da família nunca pode se concretizar.
A dona de casa teme pelo futuro dos filhos, principalmente da mais velha que, para o ano, iria para o Ensino Fundamental. “Este ano, eu tô dando como perdido, ela não aprendeu quase nada, não sabe escrever o nome. Talvez precise repetir a série. Acho que só recupera com um reforço grande quando voltar a ter escola”, opina. Poliana projeta um retorno complicado que irá demandar um período de adaptação.
“Às vezes, penso que, quando for pra voltar, vai ser como quando eles tinham dois anos de idade, que choravam quando eu deixava na escola. Acho que, eles acostumados a não sair de casa, a gente vai passar por aquilo tudo de novo, eles vão estranhar”, acredita.
“Eu sempre falo muito pras pessoas tentarem se colocar no meu lugar: 'Se você fosse estudante, não tivesse tendo suas aulas, e o que fosse passado pela escola não chegasse até você, porque você não tem o meio de comunicação para receber, você se sentiria prejudicada?' Pois é assim que eu me sinto. Sinto que vou ficar atrasada e que vai ser difícil acompanhar os outros alunos.”
Pela declaração a estudante Karoliny do Nascimento, 14, narra seus sentimentos. Ela, que é aluna do nono ano da Escola Municipal de Ensino Fundamental Evaldo Holanda Maia, e o irmão Kaiã Arlen do Nascimento, 12, que cursa o sexto na Escola de Ensino Fundamental Valdetrudes Edith Holanda, moram na comunidade do Bom Nome, em Limoeiro do Norte, no Vale Jaguaribe.
Tendo disponível em casa apenas um celular com parte do display defeituoso e conectado à internet por dados móveis (o que inclusive dificultou o envio de uma foto da família para O POVO), os dois recebem nos grupos de WhatsApp das escolas links de YouTube, exercícios em arquivos de PDFs, além de indicação de atividades nos livros didáticos.
“A maioria dos professores passa vídeo do YouTube e tarefas baseadas nos vídeos. Quem não consegue ver os vídeos dificulta fazer as tarefas. E não é sempre que tenho como ter crédito de internet. Quando é do livro, a gente consegue, ficam as dúvidas, a gente pesquisa, dá certo. Fora que as atividade que mandam em PDF, meu celular não baixa e não abre”, detalha a mãe da dupla, a costureira Luzia Costa do Nascimento, 41.
Com a pandemia, a situação financeira da família complicou. Luzia perdeu o emprego na facção de costura, o marido que é eletricista também está sem trabalho. A renda tem vindo somente do auxílio-doença que o filho Kaiã recebe - e parte considerável vai para os remédios do tratamento neurológico do adolescente e para os colírios de Karol, que é cega de um dos olhos. As duas condições de saúde são limitadoras quanto ao tempo de exposição às telas de celular. O ideal seria conseguir imprimir as atividades.
“Mas além de eu não conseguir baixar o arquivo, como vou tirar dinheiro pra pagar impressão de folha de atividade? A folha tá R$ 0,80, dez folhas que eu imprimir é R$ 8, é um quilo de frango. Se eu fizer isso, é uma refeição a menos dentro de casa”, calcula a mãe.
Para Luzia e Karol, contabilizar as atividades remotas como hora-aula do ano letivo não leva em conta a realidade de uma parte dos alunos de zona rural e de baixa renda. “O município tem de pensar para atingir todos os alunos e tá atingindo só quem mora na zona urbana e tem alguma condição financeira”, acredita a costureira.
“Eu nunca repeti um ano, nunca fiquei de recuperação, sempre fui uma das melhores alunas nas salas que estudei. Espero realmente que eles procurem uma forma de ajudar a essas pessoas que, assim como eu, não puderem estudar neste momento. Se não, eu vou me sentir injustiçada”, pontua Karol.
Neste episódio da série que mostra como a pandemia acentuou a desigualdade no acesso à educação, a partir do cenário de famílias carentes que não têm internet, você leu histórias da vida real, onde predomina a adversidade. Veja o conteúdo do episódio anterior e do seguinte:
Episódio 1 - Contextos de vulnerabilidades sociais e falta de acesso à internet se interpõem à educação ofertada durante a pandemia.
Episódio 3 - A realidade da falta de acesso de à internet também tem impacto sobre os professores.
Reportagens dá voz aos alunos de redes municipais de ensino com dificuldades de acesso às atividades de educação remota durante a pandemia. Aborda também bons exemplos de professores que têm tentado driblar os desafios que se interpõem entre os alunos e a aprendizagem.