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Luiz Marinho: as memórias matutas de um sábado que não acaba
Reportagem Seriada

Luiz Marinho: as memórias matutas de um sábado que não acaba

Conheça o dramaturgo que tirou das matas a inspiração para expor injustiças de uma sociedade escravocrata canavieira sem deixar de exaltar a beleza e a diversidade do seu povo
Episódio 33

Luiz Marinho: as memórias matutas de um sábado que não acaba

Conheça o dramaturgo que tirou das matas a inspiração para expor injustiças de uma sociedade escravocrata canavieira sem deixar de exaltar a beleza e a diversidade do seu povo
Episódio 33
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Naturalidade dos diálogos, personagens nada idealizados e cenários familiares a qualquer nordestino são marcas fortes dos textos teatrais do pernambucano Luiz Marinho Falcão Filho.

Seja em produções voltadas ao público adulto ou ao infantil, o autointitulado “dramaturgo matuto” construiu uma obra que moldou o fazer teatral em Pernambuco e se expandiu para todo o País.

Reconstituída em 2019 por meio de um projeto da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), a obra completa de Luiz Marinho é composta por 14 textos dramáticos que atravessam inúmeras temáticas a partir de recortes predominantemente regionalistas, mas que também podem se aproximar de ideias surrealistas e até existencialistas.

 

Teatro de Luiz Marinho - Obra completa

 

O escritor é natural da zona da mata de Pernambuco, mais especificamente do município de Timbaúba, no Planalto da Borborema. É nessa região que se passa a primeira peça teatral escrita por ele, “Um sábado em 30” (1960).

A história coloca em cena uma família de senhores de engenho de Timbaúba, que apoia a Revolução de 1930 — responsável por colocar Getúlio Vargas no poder. Em tom cômico, o texto expõe hábitos de uma sociedade patriarcal e exageradamente estratificada, mas que mimetiza pensamentos liberais de uma “renovação política”.

No final, como geralmente sugere a maioria das comédias, tudo começa exatamente como terminou. Em um momento “a arte imita a vida”, Marinho mostra que as “revoluções brasileiras”, na verdade, sempre consistiram na alternância de poder entre grupos da elite.

Em uma entrevista concedida em maio de 1987 aos jornalistas Christianne Müller, Mário Hélio e Nagib Jorge Neto, Luiz Marinho explica que o processo de construção do texto de “Um Sábado em 30” passou pelo crivo da própria mãe, dona Rosa Bezerril Falcão.

Ele afirma que em 1930 era uma criança de aproximadamente 3 anos e que, assim, os personagens foram todos inspirados na vivência que teve mais tarde com o pessoal de Timbaúba, inclusive seus parentes.

“Usar um ‘disfarce’ em meus personagens de ‘Um Sábado em 30’ foi influência de minha mãe, por considerar, na época, que os mostrar sem máscaras iria chocar a gente de nossa terra. Se não tivesse sido a observação dela, a peça poderia ser desdobrada em até três, pois era enorme”, afirmou na mesma entrevista.

A peça, que estreou no Teatro de Santa Isabel em 8 de julho de 1963, ficou em cartaz, ininterruptamente, por 3 décadas, rendendo a Marinho e aos envolvidos com as montagens uma série de prêmios. Dentre as condecorações, se destaca o Prêmio Vânia Souto Carvalho, concedido pela Academia Pernambucana de Letras (APL) aos melhores trabalhos de ficção.

Um sábado em 30, título da peça mais conhecida de Luiz Marinho, estreou em 1963, no Teatro de Santa Isabel, em montagem do TAP(Foto: Reprodução)
Foto: Reprodução Um sábado em 30, título da peça mais conhecida de Luiz Marinho, estreou em 1963, no Teatro de Santa Isabel, em montagem do TAP

 

 

Não há polarização que pare a arte

Colocando, momentaneamente, de lado sucesso de crítica e de público das suas peças, um fato chama a atenção daqueles que se debruçam sobre a obra de Luiz Marinho: apesar de quase toda a sua dramaturgia ter sido produzida em um tempo de tensões e acirramentos políticos e ideológicos, ela foi encenada tanto por grupos que comungavam uma visão política de esquerda quanto por companhias teatrais que estavam mais à direita da maioria das trupes.

Foi o caso da escolha de encenar a peça “A afilhada de Nossa Senhora da Conceição” feita tanto pelo Teatro de Amadores de Pernambuco (TAP) quanto pelo Teatro Experimental de Cultura (posteriormente rebatizado de TCP) naqueles primeiros anos de 1960, como explica o professor do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPE, Anco Márcio Vieira.

Vieira pontua que no contexto tanto do TAP quanto do Teatro Popular do Nordeste, por exemplo, Hermilo Borba Filho e Ariano Suassuna viam as histórias do cangaço como “um tema épico a ser explorado”, valorizando a cultura popular e suas narrativas.

No entanto, a abordagem realista e acadêmica que Marinho utilizava em suas peças, que retratavam a vida e as lutas daqueles homens e mulheres, era criticada por esses mesmos grupos, que diziam preferir uma arte que “não se limitasse a imitar ou reproduzir a vida”.

Por outro lado, conforme o professor, o TCP via em figuras como a de Lampião uma oportunidade de promover uma maior conexão entre o público e a obra, utilizando sua figura para discutir questões sociais e políticas de forma acessível e impactante. A obra de Marinho seria, então, um veículo para críticas sociais, refletindo as tensões e as lutas ideológicas da época.

O fato é que, independente da orientação ideológica, o texto de Luiz Marinho aglutinou grandes talentos. “Estórias do Mato — A Afilhada de Nossa Senhora da Conceição”, encenação dirigida por Luiz Mendonça em 1963, reuniu nomes como Ilva Niño, Moema Cavalcante e José Wilker. Anos mais tarde, em 1974, Marinho e Mendonça repetiram a parceria, porém em palcos cariocas e com o texto “Viva o Cordão Encarnado”. A montagem rendeu a ambos o Prêmio Molière, que era conhecido como o “Oscar do teatro brasileiro”.

O Teatro de Cultura Popular (TCP) montou algumas peças de Luiz Marinho, entre elas "A derradeira ceia"(Foto: Reprodução)
Foto: Reprodução O Teatro de Cultura Popular (TCP) montou algumas peças de Luiz Marinho, entre elas "A derradeira ceia"

Anco Márcio Vieira finaliza explicando que embora não fosse diretamente associado a nenhum grupo, a versatilidade de Luiz Marinho permitiu que suas obras fossem apreciadas em diferentes esferas, contribuindo para a diversidade do teatro nordestino da época.

O professor foi o responsável pelo trabalho de resgate das obras originais de Marinho, que podem ser encontradas na coletânea “O Teatro de Luiz Marinho”. Separados em quatro volumes, as 14 obras se dividem entre textos inéditos e raridades resgatadas de sebos literários, publicadas em livros e revistas, fragmentos e peças com versões diversas.

O trabalho de pesquisa foi iniciado em 2009 e demorou uma década para ser publicado. O organizador contou com o apoio de dezenas de bolsistas do Departamento de Literatura da UFPE para digitalizar o material, enquanto ele se debruçava para fazer a organização, introdução e notas.

Anco Márcio, professor da UFPE, é autor da biografia "Luiz Marinho - o Sábado Que Não Entardece" e foi responsável pela compilação de toda a obra dramatúrgica do autor(Foto: Reprodução)
Foto: Reprodução Anco Márcio, professor da UFPE, é autor da biografia "Luiz Marinho - o Sábado Que Não Entardece" e foi responsável pela compilação de toda a obra dramatúrgica do autor

 

 

Memórias e místicas da vida matuta

O chefe do Departamento de Artes da Universidade Federal de Pernambuco, Igor de Almeida Silva, explica que, na obra de Luiz Marinho, a memória é “maquiada pela ficção”.

“Não para revelar sua alteridade, mas para ocultar sua origem documental e memorialística. Ou seja, proteger sua gente de futuros constrangimentos: de se ver e ouvir diante de um palco de espelhos, testemunhar seus segredos, seus hábitos e suas crenças sendo desvelados”, conclui.

Embora o próprio autor só admita essa ficcionalização da memória em “Um Sábado em 30”, na obra “A Incelença” Luiz Marinho não promove apenas o resgate de uma das manifestações religiosas mais ricas do Nordeste, mas também a denúncia das injustiças sociais e o olhar sobre os aspectos pitorescos que envolvem os ritos fúnebres do sertão.

Toda a peça acontece em torno de um velório de um camponês, seu Quirino, empregado de um engenho de açúcar na Mata Norte pernambucana. Ao tempo em que vão se desenrolando as ações dos personagens, os cantos fúnebres — as incelenças — vão entrecortando as falas.

O professor Anco Márcio pontua que além de criar a partir das próprias vivências, Marinho é hábil em entrelaçar o trágico e o cômico.

“Embora a peça aborde temas sérios e dolorosos, como a morte e a injustiça, ela também incorpora elementos de humor e leveza, refletindo a complexidade da vida e a resiliência do povo nordestino”, afirma.

Essa intersecção entre memória, realidade e fantasia foi o mote para a exposição “Luiz Martinho, um resgate do autor que veio da mata”, promovida em julho de 2024 no Teatro Hermilo Borba Filho.

“Quando se escreve sobre Marinho, existe um enfoque muito grande nas obras e menos no sujeito. Assim, criou-se uma lacuna muito grande para entender que sujeito é esse que escreve. A racialidade e o território possuem uma grande importância para entendermos quem é que está escrevendo”, disse o curador da exposição, Henrique Falcão.

Os elementos religiosos que estão presentes em sua obra também faziam parte da vida de Luiz Marinho, como explicou o curador. Adepto da Jurema Sagrada, Marinho é considerado o primeiro juremeiro a ser condecorado pela Academia Pernambucana de Letras.

A mostra "Luiz Marinho, um resgate do autor que veio da mata" resgata a trajetória de um pioneiro na defesa da literatura e do teatro com raízes fincadas na cultura popular nordestina(Foto: Reprodução)
Foto: Reprodução A mostra "Luiz Marinho, um resgate do autor que veio da mata" resgata a trajetória de um pioneiro na defesa da literatura e do teatro com raízes fincadas na cultura popular nordestina

“Alguns pesquisadores chegaram a questionar se o posicionamento de Marinho enquanto juremeiro era uma espécie de espetáculo poético, como uma parte da pesquisa dele. O fato, porém, é que ele era juremeiro. Isso causava um estranhamento já que, na época, a jurema era vista de forma folclórica. Porém, ele a vivenciava como uma religião tradicional”, finaliza Falcão.

A Jurema Sagrada, também conhecida como “catimbó” em algumas regiões, é uma prática religiosa que possui elementos afro-brasileiros, indígenas e até cristãos. É uma manifestação muito característica da Zona da Mata de Pernambuco, como revela o artigo “A Jurema Sagrada — Resiliente religião de matriz indígena do Nordeste do Brasil”, do historiador Alexandre L'Omi L'Odò. O autor, mestre em ciências da religião e sacerdote juremeiro e do candomblé, diz que há pouca documentação histórica que resgate as práticas religiosas indígenas entre os séculos XVI e XX, o que deixou uma lacuna difícil de ser preenchida por completo no campo comum da história.

A Jurema Sagrada é uma tradição religiosa que nasceu dos índios que habitavam o litoral da Paraíba, Rio Grande do Norte e no sertão de Pernambuco antes da colonização portuguesa em 1500(Foto: Quilombo Cultural Malunguinho)
Foto: Quilombo Cultural Malunguinho A Jurema Sagrada é uma tradição religiosa que nasceu dos índios que habitavam o litoral da Paraíba, Rio Grande do Norte e no sertão de Pernambuco antes da colonização portuguesa em 1500

“Por outro lado, a permanência da forma de ser indígena na nossa língua, comida, imaginário e religiosidade, comprova o que os documentos não registraram — afinal eram escritos pelos colonizadores opressores brancos. Os terreiros de Jurema são os maiores livros orais acerca da cultura indígena e, de certo modo, africana. Eles demonstram a tradição em seus traços culturais e filosóficos, nos limites da antropologia, sociologia e da história”, informa um trecho do estudo.

A ancestralidade racializada presente não só na Jurema, mas em todas as manifestações culturais da Zona da Mata de Pernambuco são indícios da pujança cultural da região diretamente representada na obra dramatúrgica de Luiz Marinho. Essa diversidade também pressupõe um elemento que o dramaturgo considerava indispensável: o debate.

 

 

Um mergulho nos legados marinhos

Romildo Moreira, diretor do Teatro Santa Isabel, no Recife, escreveu que o dramaturgo gostava de ouvir e sempre se emocionava com o que ouvia a respeito de suas peças. Em especial quando o comentário vinha de alguém da plateia após assistir a uma de suas criações.

Segundo o gestor cultural, Luiz Marinho também era atento às críticas e as considerava fundamentais para o seu exercício de autor teatral.

As críticas e discussões não tardaram a chegar em outros espaços para além dos palcos. Na academia, a obra de Luiz Marinho inspirou dissertações, teses e ensaios. Uma das pesquisas foi produzida pela mestra em Teoria da Literatura Amanda Lins Seabra. Sua dissertação de mestrado analisou três peças infantis do dramaturgo pernambucano: “Foi um Dia”, “As Aventuras do Capitão Flúor no Reinado do Dente Cariado” e “A Família Ratoplan”.

Apesar das obras voltadas à criança serem minoria no conjunto das produções, Luiz Marinho nunca encarou esse trabalho como algo de menor importância.

“Analisando suas peças, é possível entender exatamente como ele quer prender a atenção do seu público, os elementos que ele escolheu para gerar o riso”, diz a pesquisadora.

Marinho conseguiu perceber um movimento de mudanças que foi comum tanto ao livro infantil quanto ao texto de teatro para crianças. Ambos estiveram inicialmente ligados à educação tradicional e à transmissão de valores morais. Somente a partir da década de 1970, começa uma ruptura com a lógica anterior, dando lugar a um maior compromisso com o estético e o lúdico e se afastando de questões moralizantes ou muito pedagógicas.

 

 

Na peça “Foi um dia”, a primeira que Marinho escreveu para crianças, o primeiro elemento de destaque é o uso do linguajar característico do povo nordestino, com grande influência negra, aproximando a fábula da realidade das crianças a quem o texto dramático se dirige.

A obra também inverte a tradição das jovens indefesas e sem escolha, que dependem de um príncipe que as resgatem e a quem devem entregar o seu amor. A personagem principal da peça, Belarosa, apesar de ser uma menina explorada e maltratada pela madrasta e por sua meia-irmã — um clássico — não fica apenas esperando a sorte ir ao seu encontro.

É a jovem, e não o príncipe, que se aventura em busca do seu objetivo, que é reencontrar o amado e desfazer o mal-entendido provocado por sua irmã maldosa, Regina. No fim das contas, é Belarosa que salva o príncipe herdeiro do Reino da Pedra Fina, que estava prestes a casar, enganado, com sua irmã malvada.

“A obra é dinâmica e esse ritmo é marcado pela verdadeira corrida entre as personagens e a quantidade de personagens da peça — incluindo animais falantes, velhinhas em apuros, além da Lua, do Sol e do Vento, personificados — também trazem dinâmica e originalidade para o texto”, afirma Amanda Seabra.

O uso do linguajar, trejeitos e elementos característico do povo pernambucano é uma das marcas mais fortes da obra de Luiz Marinho(Foto: Teatro de Amadores de Pernambuco / Reprodução  )
Foto: Teatro de Amadores de Pernambuco / Reprodução O uso do linguajar, trejeitos e elementos característico do povo pernambucano é uma das marcas mais fortes da obra de Luiz Marinho

Já em “A Aventura do Capitão Flúor no Reino do Dente Cariado”, Marinho incorpora ao longo da narrativa, referências populares e atuais para a época, como o grupo adolescente Menudo, ao grito da torcida do time de futebol Sport Clube do Recife e à figura do super-herói tipicamente americano, encarnada pelo personagem Capitão Flúor.

O autor também brinca com a sonoridade das palavras e com rimas em alguns momentos da obra. Todas essas ferramentas aproximam o texto da realidade do seu público, propiciando uma maior identificação e saindo do rótulo de “pedagógico”, apesar de ser um texto que pode contribuir com processos de ensino-aprendizagem.

Em “A Família Ratoplan”, Marinho surpreende por conseguir tocar em uma diversidade de temas sem pretender ser muito minucioso, ao passo que também não esconde a natureza das críticas que tece. Uma delas, e talvez a mais surpreendente, é a crítica anticolonial, observada a partir da relação entre os personagens internacionais Mickey Mouse e Topo Gigio. Os ratos são importados da indústria cultural para a dramaturgia, não como personagens amados pelas crianças, mas como afetados astros que se sentem superiores por pertencerem a culturas diferentes.

A pesquisadora explica que um dos principais diferenciais do dramaturgo é a abdicação do “controle absoluto” do texto feito para crianças, o que revelaria uma plena confiança na capacidade do público em produzir significado a partir do texto apresentado.

“São vários os momentos na peça em que Marinho constrói diálogos que possibilitam a ‘leitura’ da criança, inclusive trazendo a ingenuidade poética do pensamento na infância”, diz.

Na análise de Amanda Seabra, o conjunto da obra infantil do dramaturgo faz dele um vanguardista, que “mudou a forma de fazer literatura e dentro dela, a dramaturgia, para as crianças brasileiras”.

Natural da região do Planalto da Borborema, em Pernambuco, Luiz Marinho foi um dos mais importantes dramaturgos do século XX(Foto: Reprodução )
Foto: Reprodução Natural da região do Planalto da Borborema, em Pernambuco, Luiz Marinho foi um dos mais importantes dramaturgos do século XX

“Marinho era capaz de criar um universo místico, que parece ter saído de um sonho de criança, onde é possível sentar à mesa para conversar com o Sol, onde os poderosos podem ser bobos e os sábios podem ser aqueles desprezados”, conclui.

Com um grau a mais de fantasia, um tom de crítica e uma rubrica no lugar certo, o texto dramatúrgico que Luiz Marinho legou ao público é uma intersecção de possibilidades. Ao passo que pode ser um retrato da memória de um povo, está também eternizando um recorte muito específico de tempo e de espaço.
Crítico, inovador, irreverente ou vanguardista, Luiz Marinho sempre terá o mérito de ter coletado do sertão pernambucano histórias que refletem, antes de tudo, as experiências humanas.


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