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Anitta de corpo livre e língua solta
Reportagem Seriada

Anitta de corpo livre e língua solta

Quebrando recordes nas principais plataformas, a música da artista representa o Brasil em palcos internacionais. Confira detalhes da história de uma das cantoras mais polêmicas, adoradas e criticadas do país.
Episódio 3

Anitta de corpo livre e língua solta

Quebrando recordes nas principais plataformas, a música da artista representa o Brasil em palcos internacionais. Confira detalhes da história de uma das cantoras mais polêmicas, adoradas e criticadas do país.
Episódio 3
Tipo Análise Por

 

 

Contar a história de uma personagem como Anitta, com páginas que tem caligrafias diferentes, cores chamativas, alguns monstros e nenhuma fada madrinha, não é simples. Vinda da Zona Norte do Rio, ela se consagrou nos últimos anos no pop, funk e outros ritmos com uma postura de desbravamento de novas tendências e de novos mercados, seguida de polêmicas e controvérsias pelo seu jeito de falar e agir. Aqui, iniciamos juntos uma rota para conhecer (e quem sabe até entender) os principais caminhos traçados pela carioca ao longo da vida e da carreira.

Anitta, cantora, construiu sua trajetória no mundo da música e como empresária do setor de entretenimento(Foto: Zé Paulo Cardeal)
Foto: Zé Paulo Cardeal Anitta, cantora, construiu sua trajetória no mundo da música e como empresária do setor de entretenimento

 

 


Era Larissa antes de ser Anitta

 

Em março de 1993, o bairro da periferia do Rio de Janeiro, Honório Gurgel, recebia o nascimento de Larissa de Macedo Machado, a dona do pseudônimo Anitta. Filha de uma artesã e de um vendedor, a menina começou a mostrar inclinações para a música ainda na infância. Mas foi no início da década de 2010, já no fim da adolescência, que Larissa vestiu a armadura de Anitta.

O cenário do capítulo inicial da carreira da carioca foi a produtora Furacão 2000. Descoberta por produtores da empresa em um vídeo postado no seu canal do Youtube em 2010, Larissa foi convidada para testes, onde impressionou dançando stiletto. Ela também frequentava os bailes funk da produtora, constantemente dançando e sorrindo na direção das câmeras que transmitiam os eventos para a televisão na época: “Sempre na minha vida, fui uma pessoa que não dá ponto sem nó. Tudo que eu faço, cada frase que eu falo, cada atitude que eu tomo, tem um motivo”, detalha a cantora no documentário produzido pela Netflix, "Anitta: Made in Honório" (primeira temporada).

Anitta, cantora, no início da carreira(Foto: )
Foto: Anitta, cantora, no início da carreira

E continua: “Como todo lobby que eu faço, eu não deixo claro que eu tô indo lá pra coisa X ou Y. Eu queria que eles soubessem que eu cantava, mas eu não queria falar: Oi, eu canto, me ajuda aí, gente. Então, eu peguei em casa e fiz esse vídeo ‘teoricamente despretensioso’, cantando. Então eles viram o vídeo, viralizou, e falaram: Vem aqui fazer um teste.”

Pouco tempo depois, Larissa começa a fazer diversos shows pela periferia do Rio, capítulo quando ela adota Anitta como nome artístico, inspirada na personagem da minissérie da TV Globo, "Presença de Anita", vivida pela atriz Mel Lisboa, que, segundo ela, conseguia ser “ser sexy sem ser vulgar, menina e mulher ao mesmo tempo".

Anitta na estreia da série da Netflix, Anita: Made in Honório (Foto: Reprodução/Instagram)
Foto: Reprodução/Instagram Anitta na estreia da série da Netflix, Anita: Made in Honório

Mas as raízes que deram origem a Anitta são mais profundas. Na segunda temporada do documentário "Vai Anita", feito pela Netflix em 2020, a cantora, sozinha e de frente para a câmera, revela que na adolescência, foi abusada sexualmente. “Para todos vocês que se perguntam da onde que saiu a Anitta, nasceu daí. Nasceu da minha vontade e necessidade de ser uma mulher corajosa, que nunca ninguém pudesse machucar, que nunca ninguém pudesse fazer chorar, que nunca ninguém pudesse magoar, que sempre tivesse uma saída pra tudo. Foi daí. Eu criei essa personagem aí.”

Larissa abriu espaço para Anitta. As pessoas que a acompanham na vida e na carreira contam neste documentário que as duas mulheres coexistem e se exteriorizam conforme o ritmo da dança pedido pelo momento. Larissa está presente nas reuniões familiares e na saída dos ensaios e reuniões com sua equipe; Anitta está nas salas de decisões e sob os holofotes nos palcos e nos tapetes vermelhos.


 

 

O sucesso nacional

 

Como todo bom enredo, a história de Anitta precisa de um plot-twist, e os próximos parágrafos estão repletos deles. Começando no ano de 2013, já fora da Furacão 2000 e sob a gerência da empresária Kamilla Fialho, a canção “Meiga e Abusada” vira sucesso no Rio de Janeiro e nas rádios de todo o país, o que rende à nossa personagem um contrato com a gravadora Warner Music Brasil. Aqui, a narrativa que estamos seguindo começa a mudar de forma e de estilo.

Anitta investiu em hits que bateram recordes e chamou a atenção das premiações internacionais(Foto: Divulgação)
Foto: Divulgação Anitta investiu em hits que bateram recordes e chamou a atenção das premiações internacionais

Naquele mesmo ano, seu primeiro hit “Show das poderosas” ficou no topo das listas de músicas mais vendidas em uma plataforma digital, e entre as mais tocadas nas rádios brasileiras. No YouTube, o clipe da música foi o primeiro de uma artista nacional a alcançar a marca de 100 milhões de visualizações na plataforma.

O primeiro álbum de estúdio de Anitta levou como título seu pseudônimo, lançado ainda em 2013 com músicas como “Menina Má”, sucesso de 2012, e “Zen”, que rendeu indicações ao Grammy Latino na categoria “Melhor Música Brasileira”. Já no Brasil, o álbum dividiu os críticos musicais do país.

No ano de 2014, uma nova janela com diferentes desafios, complexidades e exigências foi aberta: Anitta começa a gerenciar sua própria carreira com a fundação da empresa Rodamoinho. A partir daí, a artista que já expressava sem muitos filtros seu jeito de ser e de pensar, expandiu sua atuação para outros palcos, de onde nasceram colaborações e criações que trouxeram o funk e outros ritmos para um cenário com uma maior e mais diversificada plateia.

Anitta veste uma peça em preto escolhida por Anna Wintour e é acompanhada no Met Gala 2021 por Alexandre Birman(Foto: Alicia Shi / F2Max / Divulgação)
Foto: Alicia Shi / F2Max / Divulgação Anitta veste uma peça em preto escolhida por Anna Wintour e é acompanhada no Met Gala 2021 por Alexandre Birman

Nos anos seguintes, outras mudanças importantes vieram. Quando o designer Giovanni Bianco assina a identidade visual do vídeo clipe “Bang!”, de 2015, uma nova era se inicia: as fronteiras nacionais se expandem para abrigar um público de críticos, fãs e haters de diversos países, com luzes mais fortes sob os latino-americanos.

Nos Jogos Olímpicos Rio 2016, Anitta dividiu o palco de abertura com os cantores consagrados Gilberto Gil e Caetano Veloso no show visto por milhões de espectadores espalhados pelo globo.

Mas, como vocês leitores devem saber, sucessos não são construídos apenas com tijolos de ovação. Na ascensão para os grandes palcos, Anitta se deparou com públicos que pouco se identificavam com seu estilo e ritmo, além de críticos (profissionais ou autointitulados) que apostavam que a coroa de “artista” que Anitta "forjava" desapareceria num brevíssimo intervalo de tempo. Parece que erraram.

 


The Girl from Rio

 

Anitta durante o lançamento do single "Girl From Rio" percorreu o mundo e virou meme(Foto: Divulgação)
Foto: Divulgação Anitta durante o lançamento do single "Girl From Rio" percorreu o mundo e virou meme

“Gente, tive uma ideia” se consagrou como uma das frases mais temidas pelos que trabalham com a cantora. O perfeccionismo e dedicação que permitiram a Anitta posições executivas como as de Head de Inovação e Criatividade na Ambev em 2019, ou como Conselheira de Administração do Nubank em 2021, são como facas de dois gumes.

“Ela é muito participativa e ela sabe muito o que quer”, então seja com dançarinos, diretores musicais, produtores, seguranças ou gerentes, “ela xinga quem tiver que xingar” para que o trabalho seja feito da forma como ela quer, compartilha um de seus diretores,  Rafael Castilhol, para a Netflix em 2020. “A gente planeja, programa tudo pra aquela ideia que ela acordou, e, no dia seguinte, ela acorda com outra ideia, que é muito melhor, às vezes, mas que enfim, gera um retrabalho, um esforço de toda a equipe”.

Renan Machado, irmão e produtor de Anitta, vai além e expõe o que seria o mais difícil de trabalhar com a artisa carioca, numa das cenas do documentário produzido pela Netflix: "Acho que um dos piores defeitos que quem trabalha com ela sofre”, diz se emocionando, “é que ela não sabe demonstrar que gosta do teu trabalho”.

O controle máximo e a exigência extrema podem até chocar o entorno da artista, mas esse "jeito de ser e de fazer as coisas", também permitiram que Anitta, estrategicamente, ampliasse seu nome e sua influência em mercados locais de vários países, conquistando colaborações com artistas como Cardi B, Madonna, J Balvin e Maluma, mostrando uma habilidosa capacidade de reinvenção artística em cada projeto.

A menina e mulher de Honório empunhou a bandeira do funk carioca para o Brasil e para o mundo, erguendo com ela diversos outros criadores que lutam contra o preconceito que o gênero sofre no cenário político-social do país, além da diluída ignorância dos gringos.

Na próxima cena, escrita durante a pandemia de Covid-19, esse traço da personalidade de Anitta também esteve presente. “As pessoas esperam dos artistas coisas que elas não esperam dos políticos no Brasil”, comentou a roteirista Taísa Machado sobre o posicionamento da cantora em lives produzidas em colaboração com especialistas sobre política, meio-ambiente e racismo, causando impacto no público de milhões de seguidores nas redes sociais.

Anitta rebate comentários machistas sobre a coreografia de 'Envolver'(Foto: Reprodução/ Instagram @anitta)
Foto: Reprodução/ Instagram @anitta Anitta rebate comentários machistas sobre a coreografia de 'Envolver'

“Quero ser real”, propõe Anitta, ao falar sobre o interesse de expor a realidade do Rio de Janeiro “diferente daquele que você conhece”, na sátira "Girl from Rio", lançada em 2021. As imagens que acompanham a letra no videoclipe da canção (pessoas, principalmente mulheres, de diferentes etnias e corpos) divergem de um Brasil que, por décadas, foi lindo, branco e harmônico, segundo o clássico de Vinícius de Morais, "Garota de Ipanema".

Mas, ao passo que essa personagem levanta “bandeiras em nome do real”, também permite que parte de sua história seja narrada com um tom contraditório ao assumir que fez dezenas de procedimentos cirúrgicos e estéticos para alterar a própria aparência, inclusive mencionando os profissionais que usou para as diferentes áreas do corpo. “Não é que eu não me aceite. Eu me aceito, mas eu gosto de mudar”, confessa.

 

Para encerrar as palavras que já foram escritas na narrativa da cantora, temos outra característica controversa. Desde seus primeiros trabalhos, ela prega a liberdade das mulheres com seu próprio corpo, sendo conhecida e lembrada por muitos como ícone da sensualidade pelas danças e moda presentes nessas produções. No entanto, para muitos, ela também colabora para a manutenção de estereótipos sobre as mesmas mulheres que defende.

Ao passo em que ela se percebe como agente na ressignificação da sensualidade feminina, com o “direito da mulher ser o que quiser - de vestir roupa curta e ‘rebolar a bunda’”, neste momento de sua jornada, ela está sob os holofotes do mundo  com seu último hit ‘Envolver’, que  bateu recordes. Foi a primeira mulher latinoamericana a conquistar o pódium no Top Global de músicas do Spotify em março de 2022. Em abril, conquistou a mesma posição no ranking da Billboard Global.

Cantora carioca Anitta em imagem de divulgação do disco "'Versions of Me"(Foto: Marco Ovando/Divulgação)
Foto: Marco Ovando/Divulgação Cantora carioca Anitta em imagem de divulgação do disco "'Versions of Me"

Sob essas luzes mais intensas e de origens mais diversas, usuários de diferentes plataformas sociais reagem e imitam em vídeos curtos a coreografia que acompanha a canção no clipe oficial, dirigido pela própria Anitta, no qual ela dança com o ator com quem contracena e simula uma transa. 

Com todo esse percurso trilhado, a música e a cultura brasileiras se tornam mais conhecidas, e, como aconteceu com a “Onda Coreana”, portas podem ser abertas para muitos outros brasileiros no futuro, nas mais diversas áreas.

A polêmica, no caso carioca, é que ela traduz o Brasil de hoje com os mesmos estereótipos antigos. Uma frase da dona desta história, teoricamente descontextualizada, foi estampada na primeira versão da capa de uma revista americana Nylon Magazine, publicação do festival Coachella: "Na América, as pessoas só querem parecer descoladas. No Brasil, todo mundo quer é se divertir e transar."

 


O futuro da carioca

 

Como prometido no início da nossa rota, a história dessa Garota do Rio foi escrita por ela e pelo contexto em que ela existe com diferentes formas, cores e personagens. Ela é, com todos os seus lados e controvérsias, a artista solo que mais impactou a música brasileira na última década.

Anitta na festa do MET Gala em 2022(Foto: DIMITRIOS KAMBOURIS / GETTY IMAGES NORTH AMERICA / GETTY IMAGES VIA AFP)
Foto: DIMITRIOS KAMBOURIS / GETTY IMAGES NORTH AMERICA / GETTY IMAGES VIA AFP Anitta na festa do MET Gala em 2022

E sob luzes agora mais brilhantes, certamente testemunharemos suas novas produções e colaborações que continuarão a atrair olhares de fãs, haters ou mesmo de estranhos, e ao passo em que Anitta escolheu passar pelo véu que divide os palcos nacionais dos internacionais, ela também carrega na bagagem uma maior responsabilidade enquanto artista.

Cantando em grandes festivais internacionais e como sujeito de matérias escritas em alguns dos importantes periódicos do mundo, ela leva no rosto, no ritmo e nas palavras -para o bem ou para o mal- o nome brasileiro.



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