Era um espetáculo simples, algo comum no teatro brasileiro atual, segundo a percepção da atriz principal. Não precisa de muita coisa, ela defende. Basta uma plateia atenta, um palco escuro, uma bancada, uma cadeira, uns papéis, um bom texto. E, claro, uma interpretação digna - algo que, naquele dia, não faltava.
Fernanda Montenegro subiu ao palco do Auditório do Parque Ibirapuera, em agosto deste ano, e leu trechos de A cerimônia do adeus, livro de Simone de Beauvoir. O texto narra a visão da escritora sobre os últimos momentos do marido Jean Paul-Sartre, filósofo existencialista.
Naquele momento, no entanto, parecia sobre Fernanda e somente ela. "O melhor seria anotar os acontecimentos dia a dia. [...] É preciso que diga como vejo esta mesa, a rua, as pessoas, meu pacote de fumo, já que foi isso que mudou. É preciso determinar exatamente a extensão e a natureza dessa mudança”, declamou.
Ao fim do espetáculo, a filha de Montenegro, a também atriz Fernanda Torres, conduziu a mãe para um espaço externo. Se dentro do auditório estavam 800 pessoas nos assentos, fora, mais 15 mil a assistiam. Emocionou-se. “Eu só gostaria de destacar um fato, que é o palco. Que é isso aqui”, disse a estrela da peça, apontando para o chão. Com 95 anos de vida e mais de 80 de dramaturgia, aquele momento definiu perfeitamente a essência da atriz: o amor pelo teatro e o apego às memórias, fugidias, mas valiosas.
Vestígios da família de Fernanda Montenegro estão na estrutura do Teatro Municipal do Rio de Janeiro. O avô materno, Pietro Nieddu, foi estucador e trabalhou na reforma do local, no início do século XX, período que, segundo ela, queriam “transformar o Rio em Paris”.
A família materna havia migrado da Itália para Minas Gerais. Mudaram-se para a então capital brasileira para fugir “da vida desesperada” da qual tentaram escapar na Europa, mas que seguiram levando, conforme palavras da própria atriz. No Rio nasceu a mãe dela, Carmen. O pai, Vitório Esteves da Silva, descendia de portugueses e logo se apaixonou pela italiana.
Fernanda, na verdade, veio ao mundo Arlette Pinheiro Monteiro. O nome com A, assim como o das irmãs, “para burlar longas espera em listas de chamadas”. Nasceu em 16 de outubro de 1929 e cresceu no subúrbio carioca. “Eu vivo em qualquer lugar, mas, no fundo, é sempre a partir desta minha cidade e deste meu país que eu olho o mundo”, diz a atriz em sua autobiografia publicada em 2019.
O envolvimento com a arte veio primeiro pelo cinema. Era a diversão da família, do pai à irmã recém-nascida. Em entrevistas, Fernanda cita “memórias remotas” de sessões de “Carlitos”, personagem de Charles Chaplin, popular nos anos 1920 e 1930. Quando alfabetizou-se, ela pôde, orgulhosa, ler as legendas dos filmes para a avó materna. “O cinema fazia parte do nosso sonho, da nossa fuga”, escreveu, também no livro.
Nas memórias da infância, a atriz guarda vivas as experiências culturais. Associa tudo a elas, sinônimos de refúgio e felicidade. Consistiam em folhetins semanais, circos, um piano na casa da tia e teatrinhos. Em uma dessas apresentações, nos fundos de uma igreja, houve a representação de uma peça chamada “Os dois sargentos”. Fernanda, então com 8 anos, interpretou um dos militares do título. “Foi como levitar”, ela diz. Foi a primeira vez que pisou em um palco.
Estreou oficialmente como atriz apenas em 1944, na Rádio Ministério da Educação e Cultura (MEC). Ainda não havia televisão e os rádios eram os aparelhos presentes nas salas das casas. Ainda como Arlette Pinheiro, iniciou com a locução e atuação. Após conseguir espaço para escrever, considerou os créditos “cheios demais” com o nome de origem e resolveu assinar, no roteiro, como “Fernanda Montenegro”. O primeiro, escolhido por achar bonito, “à la século XIX”. Já “Montenegro” era o médico da família, na infância.
A estreia no teatro ocorreu em conjunto com a TV, a nova tecnologia que enchia os olhos. Fez uma audição na recém-criada TV Tupi e, três participações depois, tornou-se a primeira atriz contratada por uma emissora brasileira. O primeiro programa foi uma adaptação da peça “Sinhá Moça Chorou”, de Ernani Fornari.
Em dezembro do mesmo ano, foi convidada por uma colega do radioteatro da MEC a participar da “Alegres Canções nas Montanhas” ou “3.200 Metros de Altitude”, de Julian Luchaire. Futuras renomadas atrizes da televisão como Beatriz Seagal e Nicette Bruno participavam da montagem.
A peça foi, segundo suas palavras, “um fracasso”, mas foi nela que Fernanda conheceu o futuro marido, Fernando Torres. “Se entrosaram de cara”, disse. Casaram em 1953 e viveram uma vida itinerante, de amor ao teatro. Do casamento, nasceram dois filhos: Cláudio, nascido em 1962 e Fernanda Torres, em 1965. Ambos também foram para o ramo artístico.
Os dois - Montenegro e Torres - foram cúmplices. Fernanda elogia a diversidade da atuação do marido: dirigia, atuava, produzia, a depender da necessidade. Ela queria o palco. Juntos, percorreram o Brasil com peças e, depois, dividiram produções na televisão e no cinema. Foram casados por 56 anos, até a morte de Fernando, em 2008.
A atriz construiu uma família na arte e dela envolveu-se. Hoje, coleciona prêmios, mas o primeiro considerado “pomposo” por ela, ocorreu em 1966: o Moliére, entregue no Teatro Municipal do Rio. Coincidentemente, o mesmo que seu avô ajudou a construir. No discurso de agradecimento, relembrou a memória dele e ofereceu-o simbolicamente. Décadas depois, em entrevista à jornalista Hildegard Angel, comentou sobre o ocorrido, pensativa; “Tudo é um eterno retorno”, disse.
Fernanda Montenegro é conhecida por sua versatilidade. Atuou em comédias, dramas, ação, suspense. Não se limitou também a um veículo. Da rádio foi para a TV, o cinema, streaming e, claro, para o teatro, sua força vital. Fez novelas, filmes, peças, séries, minisséries, comerciais e escreveu livros. Em vários momentos da vida, fez tudo ao mesmo tempo. São 48 projetos para a televisão e 39 filmes, segundo o
Suas obras mais marcantes na televisão incluem as novelas Baila Comigo (1981), Guerra dos Sexos (1983), Babilônia (2015) e O Outro Lado do Paraíso (2017), além de Belíssima (2005), na qual viveu a marcante vilã Bia Falcão. No teatro, fez mais de 65 peças e realizou leituras dramatizadas de, além de Beauvoir, de Nelson Rodrigues - grande ídolo seu.
Mas seu trabalho mais marcante talvez seja em Central do Brasil (1998). A atuação como a redatora de cartas Dora rendeu indicações no Globo de Ouro e no Oscar. Esa última, consistiu na primeira indicação de uma atriz latina e a única de uma brasileira, até hoje. Mobilizou milhares de brasileiros, que torceram em frente à televisão como se vissem uma partida de futebol. Perdeu o prêmio para a atriz Gwyneth Paltrow, resultado amargo e relembrado mesmo décadas após. Em 2020, por exemplo, a atriz Glenn Close disse que a vitória “não fez sentido”.
O cinema trouxe reconhecimento internacional. Iniciou nas telonas com A Falecida (1965), inspirado no romance de Nelson Rodrigues. Obras de destaque incluem Eles Não Usam Black-Tie (1981), A Hora da Estrela (1985), O Que é Isso, Companheiro? (1997), O Auto da Compadecida (1999), A Vida Invisível (2019) e, mais recente, Ainda Estou Aqui (2024).
O IMDb totaliza 34 indicações e outras 51 vitórias em premiações. Destaques incluem o Emmy Internacional com a atuação na minissérie Doce de Mãe (2012). Além disso, em 1999, recebeu a Grã-Cruz da Ordem Nacional do Mérito das mãos do então presidente Fernando Henrique Cardoso. Comenda é a mais alta dada a um cidadão brasileiro. Fernanda Montenegro é, ainda, imortal da Academia Brasileira de Letras (ABL). Desde 2022, ocupa a cadeira 17.
Com tantos prêmios acumulados, reconhecimento e homenagens, Fernanda Montenegro vê-se como uma oficiante do teatro brasileiro. Esteve a serviço dele e sempre estará. Ironicamente, em entrevistas, fala da profissão com desconfiança. “Uma função estranhíssima. Você não se conforma em ser só você, ter só sua vida. vai se multiplicando, se entupindo e você tem um continente. Mas o que você sonha, luta e integra como igual, de carne e osso, como explica isso?”, disse ao programa Sangue Latino do Canal Brasil.
As críticas são intensas. Costuma citar a atuação como algo “sem nobreza”, “não prioritário”, “sem função palpável”, “desconfortável”. O ator seria um sujeito viciado, preso, que, se não for todos, não é ninguém. “Mas tem algo ali submerso, vital”, é, no entanto, o complemento dela a essas características. “É o único lugar onde tudo é possível. Vale tudo ali, da coisa mais sublime, à coisa mais torpe. O homem é isso. Há uma necessidade de estarmos juntos, o espectador e o ator”, disse, na mesma sabatina da TV Brasil.
Assim, nunca abandonou a profissão. Nunca tirou pausas e segue ativa com 95 anos. No dia que os pais foram enterrados, pediu para ser mais cedo, para não atrapalhar uma apresentação na TV. Quando o marido faleceu, estava em cena. Soube. E seguiu o show. Naquele momento, não era ela, era outra.
Mas o familiar muda. A tecnologia vem e renova as formas de atuação. Fernanda viu tudo de perto. Após o Rádio e o cinema, surgiu a TV, a internet, o streaming e, em um pulo, a imagem dela era transmitida em aparelhos celulares, nas mãos de cada um.
Para a atriz, a renovação vem junto com a industrialização da arte, com interesses econômicos. As cenas na TV, descreve, precisam ser adaptadas para cortes curtos, conforme o período marcado para a transmissão do comercial. Adaptações semelhantes ocorrem no cinema. Tudo é econômico. Quase tudo. “Por isso o teatro sobrevive eternamente. Hoje, os espetáculos são pequenos, mas os teatros estão cheios.”
O impacto econômico deve ser considerado em medidas de incentivo à cultura. O teatro movimenta dinheiro dentro e fora dele. Os atores, os diretores, figurinistas, os pipoqueiros da entrada, os táxis que levam os espectadores, as passagens de ônibus. Tudo isso é a economia circulando, em torno da arte. “Tudo envolta do teatro é uma solução de caráter empresarial, de socorro social. Só trazem o teatro como se fosse uma sofisticação, uma inutilidade”, reclama a atriz.
Para ela, o teatro deve atingir as periferias. Todos os espaços “intelectualizados” precisam incluir mais mulheres, pessoas negras. "Teatro tem que ter [incentivo]. Estou falando da minha vivência mais profunda. Tem toda uma estrutura de sobrevivência econômica, e se você tiver que fazer cenário, tiver que trazer todo um apoio artístico, e também de atendimento profissional, porque parece que tudo aquilo é uma mágica. Não é", comentou a atriz à TV 247.
Sentada em frente à jornalista Hildegard Angel, Fernanda Montenegro disse, séria: “Eu não tenho futuro”. A afirmação gerou protestos da entrevistadora, amiga da atriz. Não adiantou. Ela reforçou o que disse, balançou a cabeça e apegou-se ao que já foi. “Me situo neste processo, no século passado e dando adeus. Ator não tem futuro, ator não deixa nada. Você deixa filmado, não é teatro.”
Já esquece muitas das falas, confessa. Por isso, tem recorrido a leituras dramatizadas. Sinônimo de lucidez, ela segue falando firme, mesmo parecendo frágil, conduzida pela filha no teatro, curvando-se ao fim de peças.
Para os espectadores, vê-la é mágico. Gabriel Garcia era um dos espectadores da leitura de Simone de Beauvoir. Lembra de ter visto Fernanda pela primeira vez, nas telonas, em Central do Brasil. Ainda criança, só veio entender o impacto dela anos após. Surgiu o sonho de ver a atriz em seu espaço natural. "Foi muito emocionante, não só pela dramaticidade da coisa, mas pelo simbolismo. Uma mulher de 95 anos subindo ao palco para se manter sã, lúcida. Sem deixar de produzir. Levando a arte dela adiante", diz ele.
Fernanda é uma participante do processo político. Diz ser de uma geração, nos anos 30 e 40, vinda de guerras e fronteiras, mas repleta de esperança. Sempre lutou pela democracia e posicionou-se. “Tenho esperança. O que foi a nossa luta contra esses militares durante 21 anos. O que isso nos custou? Havia esperança nos palcos e nas canções”.
Ela pondera se a esperança hoje acabou. A “eletrônica” modificou e muito as relações. Mas, nela, a fé segue. “Tenho ido muito ao teatro e vou em um ato de fé. E sei que ali vou ter ou todo nele, ou em um momento, ou em um ator, ou em um cenário, em algum momento ali terá uma potência teatral que eu vou estar ali para ver.”
Foi convidada para ser ministra de José Sarney, primeiro governo após o regime militar, mas recusou. Disse que o amor pelo teatro não havia se esgotado, iria seguir atuando. Hoje, se diz contra as reeleições; posiciona-se, com frequência, contra o Governo de Jair Bolsonaro (PL). Ao ser questionada se este seria pior do que a Ditadura Militar, ela assentiu. “Dói mais por que foi através do voto”, disse ao programa Fantástico, da Rede Globo.
Sobre sonhos, ela volta a retomar os olhos para trás. “Acho que meu sonho foi realizado. Sou de uma família tribal de herança. Fernando e eu quisemos ter filhos. E tivemos nossos filhos. E eles vieram pra nossa área, ainda que com um profundo sentimento nosso de falta, porque tínhamos que sair nos fins de semana para os palcos. Não sei se existia antes de Freud esse sentimento de que os pais são a ruína dos filhos. Tem isso um pouco.”
Já quanto às decepções, prefere olhar para o hoje. “Se teve, eu não quero saber. O que eu posso fazer?”
Série vai explorar personagens - famosos e anônimos - para destacar histórias de vida