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Grande Otelo: a carreira e o legado de um pioneiro da arte negra
Reportagem Seriada

Grande Otelo: a carreira e o legado de um pioneiro da arte negra

Um dos maiores atores e comediantes da história do cinema e da TV no Brasil, Grande Otelo lidou com o racismo durante toda a carreira e, 30 anos após sua morte, é pouco lembrada pelo grande público
Episódio 36

Grande Otelo: a carreira e o legado de um pioneiro da arte negra

Um dos maiores atores e comediantes da história do cinema e da TV no Brasil, Grande Otelo lidou com o racismo durante toda a carreira e, 30 anos após sua morte, é pouco lembrada pelo grande público
Episódio 36
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Ao longo da história do audiovisual brasileiro, não é raro localizar casos de pessoas negras em papeis secundários, interpretando serviçais ou mesmo sequer aparecendo por tempo suficiente para serem notados.

Mas os holofotes já estavam preparados para receber Sebastião Bernardes de Souza Prata. Certamente quase todo o público o reconhece por outro nome. No começo era Pequeno Otelo, mas após a fama, a crítica carioca o denominou de Grande.

Grande Otelo trabalhou no teatro, no rádio, no cinema e na televisão. Considerado o primeiro artista negro a obter notoriedade na mídia nacional, ainda criança o jovem Otelo cantava nas ruas de Uberlândia em busca de uns trocados.

"Eu cantava duas canções que a minha amiga, dona de um hotel, tinha me ensinado. Então eu cantava e ganhava um tostão. Uma vez, um cara não me deu o tostão e eu passei a cobrar adiantado", relembrou em uma entrevista ao programa Roda Viva, em 1987.

Aos sete anos, Otelo teve sua primeira experiência como ator ao participar da apresentação de um circo que passava por Uberlândia(Foto: Acervo da Biblioteca Nacional)
Foto: Acervo da Biblioteca Nacional Aos sete anos, Otelo teve sua primeira experiência como ator ao participar da apresentação de um circo que passava por Uberlândia

O nascimento de Otelo aconteceu apenas 2 décadas depois da assinatura da Lei Áurea. À época, Uberlândia ainda era uma cidade muito povoada pela população negra.

Os descendentes dos escravizados trazidos de África, na verdade, compunham a maioria da população mineira. Isso porque a expectativa de vida de um negro nas minas era de apenas sete anos, o que obrigava os colonos a trazerem cada vez mais escravizados para manter a produção aurífera e atender os interesses da Coroa portuguesa.

Os muitos descendentes de africanos eram frutos, em sua maioria, de estupros de mulheres escravizadas pelos seus “senhores” portugueses. Registros históricos apontam a proporção de 10 nascimentos legítimos para 100 "ilegítimos".

Um dos filhos "ilegítimos" era Chico dos Pratas, pai de Otelo. O "sobrenome" nada tinha a ver com a atividade de mineração, mas sim, porque era um agregado da família Prata, que manteve alguns ex-escravizados na propriedade mesmo após a Abolição.

Por razões desconhecidas, Chico foi assassinado a facadas quando Otelo ainda era uma criança pequena. A mãe, a cozinheira Maria de Souza, caiu no alcoolismo e era incapaz de cuidar dos próprios filhos, apesar de contar com a ajuda dos avós das crianças.

A primeira infância de Otelo foi inquieta, para dizer o mínimo. Logo ele teve que aprender a se virar por conta própria nas ruas de Uberlândia. Foi nesse ambiente, hostil à primeira vista, que ele passou a ter contato com turistas, mercadores, donos de hotéis e - claro - outros artistas.

Aos sete anos de idade teve sua primeira experiência como ator ao participar da apresentação de um circo que passou em sua cidade. Vestido de mulher, interpretando a esposa do palhaço arrancou risos da plateia.

Otelo menciona o filme "O Garoto" (1921), de Charles Chaplin, como uma influência decisiva para que seguisse a carreira de ator(Foto: Reprodução)
Foto: Reprodução Otelo menciona o filme "O Garoto" (1921), de Charles Chaplin, como uma influência decisiva para que seguisse a carreira de ator

"Minha família não tinha nenhum artista, não. Talvez algum antepassado fosse feiticeiro de alguma tribo. Sobreviver nessa terra parece, mesmo, coisa de mágico. Meu interesse pela vida artística veio junto com o gosto pela novidade", disse em uma entrevista ao Jornal do Brasil em 1975.

Na mesma entrevista, e em muitas outras, Otelo menciona o filme "O Garoto" (1921), de Charles Chaplin, como uma influência decisiva.

"Eu descobri que tinha que ser ator quando vi O Garoto, do Chaplin. Senti que poderia fazer a mesma coisa", disse.

A atriz e doutora em Artes, Deise de Brito, cuja pesquisa de mestrado é sobre a carreira de Otelo no teatro, reflete que, por ser oriundo de família pobre, talvez ele tenha se identificado com o filme.

"Ao ver as imagens de Jackie Coogan no cinema, ele correlacionava as ações do enredo com sua própria realidade, construindo uma projeção futura da sua vida, ou seja, a de se tornar artista como o menino das telas", diz.

Aquele ambiente, a arte, onde os negros eram preteridos, para Otelo apresentava-se como uma grande novidade, o que parece tê-lo entusiasmado.

Segundo a análise de Deise, ao ver Hoskins em cena, ele pode ter criado perspectivas. "Porém, o que ele ainda não tinha se dado conta é que Brasil e Estados Unidos eram dois contextos diferenciados, com complexidades raciais específicas"


 

 

O pequeno Otelo de um grande talento 

Sua ligação com o teatro o impulsionou a ir a São Paulo com a Companhia de Comédias e Variedades Sarah Bernhaardt.

O ator declarou, anos depois, que não fugiu com a Companhia, mas que sua mãe, Dona Maria, repassou legalmente sua tutela para a mãe de Abigail Gonçalves, que assim como ele, era uma criança nessa época. 

Junto com a menina Abigail, fazia aulas de canto erudito em um grupo denominado Ópera Lírica Nacional, localizado nos porões do Theatro Municipal.

Em 1926, quando tinha cerca de 11 anos, Otelo já integrava uma companhia teatral (Foto: Marly Serafim e Mário Franco / Reprodução)
Foto: Marly Serafim e Mário Franco / Reprodução Em 1926, quando tinha cerca de 11 anos, Otelo já integrava uma companhia teatral

Certo dia, ao acompanhar a garota a uma aula de canto, foi convidado pelo professor da garota a fazer um teste de voz. O mestre ficou impressionado com que ouviu, e lhe disse que tinha potencial para interpretar o papel operístico de Otelo, quando crescesse.

Sebastião ficou tão empolgado com o elogio que passou a se autodenominar orgulhosamente, inclusive na escola, Otelo Gonçalves.

Assim surgia o Pequeno Otelo, nome que muitas vezes utilizou nas apresentações que, com a aprovação dos pais adotivos, passou a fazer em variadas companhias de teatro. 

No final dos anos 1920, não era incomum ver alguns artistas negros participando de espetáculos. Benjamim de Oliveira, por exemplo, já era referência no circo-teatro e Pixinguinha estava se consolidando como compositor.

Em junho de 1926, parte da imprensa especializada do Rio de Janeiro dirigia suas atenções a uma companhia de teatro de revista que estrearia em julho daquele mesmo ano. O título da primeira produção, Tudo Preto, causava um burburinho entre o público. O elenco era formado, em sua maior parte, por artistas negros, ou como falava-se à época, por "artistas de cor".

Foi um grande choque quando um grupo de artistas negros, liderado por um negro, decidiu ocupar os palcos do Teatro Rialto, no Rio de Janeiro. Não faltaram piadas racistas, ironias e artigos na imprensa questionando a competência e maturidade dos profissionais envolvivos.

A caricatura de Belmonte, na revista "Careta", com o personagem Juca Pato (ao centro) foi apenas uma das dezenas de reações racistas ao espetáculo (Foto: Revista Careta / Acervo da Biblioteca Nacional )
Foto: Revista Careta / Acervo da Biblioteca Nacional A caricatura de Belmonte, na revista "Careta", com o personagem Juca Pato (ao centro) foi apenas uma das dezenas de reações racistas ao espetáculo

A repercussão e qualidade técnica do espetáculo impressionou os que achavam que os morros e subúrbios eram a maior ribalta possível para aqueles artistas.

Foi à essa trupe que Otelo se juntou quando tinha por volta de 11 anos de idade. Esse encontro do ator com um grupo de artistas negros significou uma experiência tanto artística quanto identitária.

Otelo surgiu no grupo como uma novidade, num período que a companhia buscava formas de se manter relevante. Com qualidades e habilidades artísticas incomuns para uma criança de sua idade, ele logo foi alçado às graças do público.

De acordo com publicações da época, Otelo chegou ao grupo de teatro com a dicção bem articulada, declamação fluida, cantando em outros idiomas, além de uma desenvoltura corporal comparável aos colegas adultos e mais experientes.

Gravura de William Shakespeare, do livro First Folio, Inglaterra, 1623(Foto: Claudio Divizia / Adobestock)
Foto: Claudio Divizia / Adobestock Gravura de William Shakespeare, do livro First Folio, Inglaterra, 1623

Mário Nunes, um dos fundadores da Associação Brasileira de Críticos Teatrais, conheceu Otelo em 1927. Em seu livro "40 anos de Teatro" ele relata o encontro no qual o ator lhe revelou a escolha pelo nome artístico.

"Sou Otelo Gonçalves. O Gonçalves vem do meu pai adotivo, que foi quem me descobriu em Uberlândia. E encontrado o nome da família, eu precisava de um nome de batismo. E escolhi então Otelo. Sabe por quê? Porque adoro Shakespeare e quero ser o primeiro negro a encarnar o Otelo, que só ainda não representei porque é impossível encontrar uma Desdemona da minha idade e da minha cor", teria dito o jovem ator.

Nunes deixou muito claro nas críticas que escreveu o quanto ficou admirado com a desenvoltura de Otelo. Seu comentário apresenta aspectos encontrados em outras notas sobre o garoto como o "menino prodigioso", "o artista nato" e o "espírito precoce", mas aponta, também, características da sua forma de interpretar.

A elegância em cena é ressaltada como uma de suas marcas principais e suas nuances cômicas de um artista iniciante são aceitas com sucesso.

Otelo recitava textos referindo-se à Leopoldo Fróes e à Margarida Marx, ambos ícones na época da comédia e da revista, respectivamente, como "colegas de trabalho". A atitude, percebida com "uma naturalidade de um adulto e com um timing típico de um ator cômico", arrancava gargalhadas do público.

Para Tiago de Melo Gomes, especialista na história cultural do Rio de Janeiro, a atuação de Otelo junto à Companhia Negra de Revistas representou um avanço para a comunidade negra.

"Quer dizer, o negro não estava alheio e passivo ao discurso sobre a questão da nacionalidade, a qual continuaria a ser tema de debates em diversos ambientes", afirma. 

Fundada em 1926 pelo artista baiano De Chocolat, a Companhia Negra de Revistas foi a primeira no país formada por atores e atrizes negros(Foto: Acervo da Biblioteca Nacional)
Foto: Acervo da Biblioteca Nacional Fundada em 1926 pelo artista baiano De Chocolat, a Companhia Negra de Revistas foi a primeira no país formada por atores e atrizes negros

Porém, o pesquisador ressalta que esse conjunto de aspectos convergia para um vislumbre carregado de exotismo, como se fosse "para ser exibido como uma coisa rara, deixa pasmos os que vêm e ouvem".

Para ele, a Companhia Negra de Revistas, por meio dos seus textos, ora assimilava preconceitos arraigados na sociedade e ora satirizava esses mesmos preconceitos se autoafirmando como classe pensante.

"Assim, se formou um grupo que era negociador da sua sobrevivência numa sociedade de problemática racial peculiar, e foram eles quem apontaram para Otelo não só caminhos ao seu trabalho, mas estratégias para como 'ser negro' no Brasil", finaliza.

Lucas H. Rossi dos Santos, que dirigiu o recém-estreado documentário "Otelo, o Grande", afirma que é preciso resgatar a importância do ator para os trabalhadores negros da cultura.

"É muito importante observar que, historicamente, Otelo é um Exu, entendeu? É um cara que abre os caminhos"

 

 

A quem interessar possa: um jovem artista negro  

Tudo parecia estar correndo às mil maravilhas para o garoto, que chega a excursionar por todo o Brasil, recebendo críticas das mais elogiosas da imprensa. Até o dia em que sua inseparável amiga-irmã Abigail vai estudar na Europa. Os Gonçalves decidem, então, abrir mão da paternidade adotiva de Otelo.

Assim, Sebastião vira um menino de rua, dormindo em bancos de jardim, fazendo pequenos trabalhos, engraxando sapatos, e não raramente sendo recolhido pelo juizado paulistano ao Abrigo de Menores, no bairro do Paraíso.

Foi ali que conheceu Eugênia de Queiroz, esposa do influente advogado e político Antonio de Queiroz, que lá estava para “adotar” uma ajudante na cozinha. Ela não conseguiu sua ajudante, mas se encantou com aquele menino franzino esperto, que sabia declamar poemas e contar piadas.

Adotado agora pela família Queiroz, Otelo estudou nos tradicionais Colégio Sagrado Coração de Jesus e Caetano de Campos, onde recebeu educação formal de qualidade, aprendendo inclusive noções de inglês e francês.

Em 1934, Otelo entrou para Companhia Jardel Jércolis, um dos maiores empresários do teatro de revista naquele momento. O ator acreditava que, além da significativa experiência que iria adquirir com os artistas da trupe de Jardel, esse seria o caminho pra voltar ao Rio de Janeiro e se fixar na então capital.

Dentre as muitas curiosidades que surgem a partir da biografia de Otelo, essa talvez seja uma das que mais levante questões. Por que três pessoas brancas se interessariam em dar assistência a um menor negro no início do século 20?

Otelo teve os Queiroz como tutores durante um período de sua adolescência, e era considerado "quase da família"; a situação é descrita por especialistas como uma herança da sociedade escravocrata(Foto: Marly Serafim e Mário Franco / Reprodução)
Foto: Marly Serafim e Mário Franco / Reprodução Otelo teve os Queiroz como tutores durante um período de sua adolescência, e era considerado "quase da família"; a situação é descrita por especialistas como uma herança da sociedade escravocrata

A pesquisadora Deise de Brito levanta a hipótese de que o artista estava no centro de uma mentalidade escravocrata que perdura até hoje: as famílias das Casas Grandes tinham seus serviçais, em geral jovens negros, que faziam serviços domésticos mais leves em troca de abrigo e comida.

A primeira família, os Gonçalves, o teria adotado porque Abigail Gonçalves teria visto uma das apresentações de rua de Otelo e dito ao pai que achou a performance engraçada; portanto, gostaria de "levar o negrinho pra casa". 

Mesmo o adolescente Otelo parecer ter sido indisciplinado, teimoso e difícil de controlar, foi com a família Queiroz com quem ele passou mais tempo.

Otelo poderia ser considerado como filho pelos Queiroz, ser tratado como os outros, como o mesmo afirmou em alguns depoimentos, mas essa consideração não foi suficiente para que se mantivesse a responsabilidade sobre ele e não o repassasse para outro tutor.

Diante de sua peculiar rebeldia e insistência em ser artista, Antônio de Queiroz decidiu procurar outro tutor que estivesse envolvido com arte para cuidar dele até que atingisse a maioridade.

Antônio de Queiroz transferiu, então, a tutela de Otelo para Miguel Max, empresário de uma companhia de teatro e cunhado da atriz Margarida Max.

Eles fizeram um ciclo de apresentações pelo interior de São Paulo contrariando os ideais do garoto, que já tinha o Rio de Janeiro como meta fixa.

Outro problema a perturbar as relações do tutelado com o tutor era convivência com a esposa de Miguel, Maria Max.

Otelo até que a tinha como uma mulher de bom coração, pois mantinha sozinha e com grande sacrifício, a casa da Mãe Solteira em Santos, cidade em que viviam. Mas como Maria era adepta ao espiritismo, atribuía todos os males do mundo ao sobrenatural.

A família da atriz Margarida Max (centro) foi uma das que tutelou o jovem Otelo, chegando a incluí-lo no elenco de suas produções (Foto: Reprodução)
Foto: Reprodução A família da atriz Margarida Max (centro) foi uma das que tutelou o jovem Otelo, chegando a incluí-lo no elenco de suas produções

"Se caía uma colher no chão, era obra dos espíritos; se o feijão queimava no fogão, eram os espíritos. Ela via espíritos na casa toda", disse Otelo em uma entrevista ao Jornal do Brasil em 1974

Passada a curta experiência com o empresário Miguel Max, Otelo se preparou para estar sob "os cuidados" do tutor seguinte: o cenógrafo Rubem de Assis.

No entanto Assis teve que viajar ao Rio de Janeiro para resolver questões de trabalho bem nos momentos finais da prontidão da papelada de tutela. Assim, Otelo passou um bom período sem tutor em São Paulo, pois não podia viajar ao Rio de Janeiro, devido ao fato de ainda ser menor de idade.

Vagou muito pela cidade, dormindo em pensões e fazendo, provavelmente, todos os tipos de trabalho para garantir sua sobrevivência. Otelo se viu, novamente, em situação de rua. 

"Essas histórias são bem típicas de uma sociedade com resquícios escravocratas como a nossa, na qual uma criança agitada e inteligente como o pequeno Otelo, era transformado num 'bibelô negro', como um objeto em uma loja", explica Deise.

 

 

Grande Otelo: a cor da arte

Segundo periódicos, jornais, biografias, depoimentos, entrevistas e livros, durante os três anos que Otelo trabalhou na Companhia Jardel Jércolis, ele participou de nove espetáculos e realizou duas temporadas no exterior, a primeira no final de 1934 e a segunda no final de 1935.

Os espetáculos que contaram com a participação de Otelo foram: Ensaio Geral (1934), Goal! (1935), Carioca (1935), Rio - Folies (1935), De Ponta a Ponta (1935), Maravilhosa (1936), Estupenda (1936), Magnífica (1936) e No Tabuleiro da Baiana (1937).

Durante a estadia de Otelo na companhia de Jércolis, as tensões raciais foram mais intensas. Apesar do seu talento reconhecido, ele era constantemente alocado em papéis esteriotipados, como o arquétipo do sambista-carioca-malandro.

Uma questão que não passou despercebida pelo público. Otelo, afinal, era mineiro e toda sua formação teatral foi feita em São Paulo.

Não era pelo fato de ele ser um homem negro que já saberia todos os trejeitos e gingados do samba carioca. Ele não tinha as referências necessárias para ter tal desenvoltura.

Em "Carnaval no Fogo" (1949) Grande Otelo e Oscarito apresentavam uma paródia de Romeu e Julieta, na qual Otelo também fazia um papel feminino (Foto: Reprodução )
Foto: Reprodução Em "Carnaval no Fogo" (1949) Grande Otelo e Oscarito apresentavam uma paródia de Romeu e Julieta, na qual Otelo também fazia um papel feminino

Assim, o público não se viu e nem enxergou nele os tipos da Lapa e dos morros. Mário Nunes afirmou, no Jornal do Brasil, que The Great Othelo - nome pelo qual passou a ser conhecido - constituiu “surpresa reservada ao público, que gostou”.

Foi na peça "Carioca" que a arte de Otelo falou mais alto que os papeis sociais pela primeira vez. Na peça Carioca, ele interpretava um personagem chamado Samba, que em dado momento se apaixonava por uma moça branca, da classe média.

Segundo Otelo, o personagem de Oscarito, pai da moça por quem Samba tinha se apaixonado, dirigia à ele frases muito humilhantes, provavelmente de cunho racista, as quais causavam um grande impacto na plateia que ria muito.

Até que um dia, sem consultar ninguém, resolveu se vestir de mulher para contracenar com o seu futuro parceiro, representando uma das filhas do personagem do ator Manuel Vieira. O público riu muito com ele e, pelo menos naquela noite, Otelo fez mais sucesso que Oscarito.

 

 

Da Urca para o mundo

Depois da bem-sucedida atuação na temporada de "No Tabuleiro da Baiana", em 1937, Grande Otelo continuou a realizar apresentações com a atriz Déo Maia no Rio de Janeiro, São Paulo, Argentina e Uruguai.

Formando uma dupla com a artista, eles levavam principalmente as duas cenas que ficaram famosas e que tinham a música No Tabuleiro da Baiana e Boneca de Pixe. Esta última, com o título original de Namoro de Preto e a autoria de Ary Barroso e Luiz Iglesias.

A dupla foi convidada em 1938 pelo empresário do Cassino da Urca para realizar um ciclo de apresentações na temporada de carnaval daquele ano.

De 1933 a 1946, o Cassino da Urca, administrado pelo empresário Joaquim Rolla, foi um dos lugares mais badalados do Rio de Janeiro (Foto: Reprodução)
Foto: Reprodução De 1933 a 1946, o Cassino da Urca, administrado pelo empresário Joaquim Rolla, foi um dos lugares mais badalados do Rio de Janeiro

Segundo as informações levantadas em depoimentos do ator e no livro de Sérgio de Cabral, Grande Otelo e Déo Maia eram responsáveis pelos números de cortina "Nome dado às apresentações mais curtas, para manter o público entretido enquanto era feita a troca de cenário ou figurinos" . Assim, os parceiros geralmente comentavam fatos engraçados e conhecidos da época.

Em 1939, o Cassino da Urca contratou a atriz, cantora e dançarina Josephine Baker para uma temporada. A artista, já conhecida no Brasil desde a década de 1920, era uma das grandes vedetes do cenário internacional e uma das artistas mais aclamadas da França.

Em junho do mesmo ano, Luiz Peixoto convidou Otelo para participar do quadro que estava dirigindo e do qual Josephine Baker seria a protagonista.

A cena segundo a concepção de Peixoto era intitulada Casamento de Preto, em referência ao número de sucesso apresentado meses antes.

Grande Otelo fazendo "Boca de Flor" para Josephine Baker, em 1939(Foto: Revista O Cruzeiro / Acervo da Biblioteca do MASP)
Foto: Revista O Cruzeiro / Acervo da Biblioteca do MASP Grande Otelo fazendo "Boca de Flor" para Josephine Baker, em 1939

Baker fez o papel da noiva e Otelo representou o noivo. Além dessas duas personagens, havia os convidados e os músicos da festa completando mais ou menos um elenco de 12 a 14 pessoas, todas negras.

Dentre os músicos estavam nomes conhecidos como Heitor dos Prazeres, Geraldo Pereira e Armando Maçal. Desde o ano da inauguração, pela primeira vez, no palco do Cassino da Urca, encenaria um elenco totalmente composto por artistas negros.

Após Casamento de Preto, Grande Otelo ganhou muitos créditos frente à plateia e a diretoria do Cassino da Urca. A partir de 1940, passou a ser convidado com mais frequência para realizar apresentações na casa sendo contratado posteriormente como artista permanente.

O Cassino da Urca parece ter sido para o ator um local onde ele se firmou como um artista de todas as plateias. Otelo estava disposto a fazer rir tanto o público popular da Praça Tiradentes, como o público economicamente favorecido do Cassino.

 

Ouça "Boneca de Piche", canção de Ary Barroso interpretada por Grande Otelo

 

A rotina de trabalho na Urca funcionava de forma dinâmica. Eram levados aos palcos shows de atrações diversas como: duetos, apresentações de grupos musicais, apresentação de corpo de baile, além de exibições de cômicos com as suas imitações, piadas e comentários satíricos sobre os acontecimentos.

A sátira e a crítica continuaram em cena, mas com ressalvas e recursos sutis para se expressarem, já que muitos políticos frequentavam o ambiente.

Otelo se dedicou também a fazer paródias e imitações de outros artistas. Não conseguimos obter a quantidade exata de quantas caricaturas vivas ele construiu lá, mas eis aqui algumas das celebridades que serviram de alvo para os seus trabalhos cômicos: as vedetes Josephine Baker e Mistinguett; os cantores Pedro Vargas, Carlos Gardel e Jean Sablon; além da francesa, Luciene Boyer.

Lá se tornou o homem do show, o cômico das piadas engraçadas, o imitador de artistas, o ator das paródias.

 

 

 Otelo das grandes telas 

Em 1941, a produtora Atlântica Cinematográfica é criada com a qual assina um contrato exclusivo que dura cerca de 20 anos.

O primeiro filme gravado na produtora vai ser um de seus maiores sucessos, “Moleque Tião”, já que mostra sua capacidade como ator dramático, além de sua forte comicidade.

A década de 40 é um período de muita produtividade artística para Otelo, já que ele trabalhava no cassino, na produtora, no teatro e ainda gravava suas músicas, vencendo o carnaval de 1942 com a composição de seu samba Praça Onze.

Na Sonofilmes participou de 3 produções: Pega Ladrão! (1940), Laranja da China (1940) e Céu Azul (1941), dirigidas por Ruy Costa. São comédias carnavalescas com números musicais que partiam da fórmula dos musicais que se faziam nos Estados Unidos.

Otelo participou de É Tudo Verdade (1942), obra inacabada de Orson Welles (1915-1985), tornando-se amigo e uma espécie de guia turístico do diretor estadunidense.

A película não foi concluída porque, na visão dos executivos da produtora RKO, Welles filmou “o que não devia”, ou seja, o povo brasileiro, em especial, os pobres e os negros, seu modo de vida, seus costumes, sua cultura. 

Com Hildegard Angel, Otelo e Elke Maravilha estrelaram o longa "O Barão Otelo no barato dos bilhões", de 1971(Foto: Arquivo Nacional )
Foto: Arquivo Nacional Com Hildegard Angel, Otelo e Elke Maravilha estrelaram o longa "O Barão Otelo no barato dos bilhões", de 1971

Filmaram-se 42 horas de material bruto, colorido e em preto em branco. Ao que consta, parte das películas foram literalmente jogadas no oceano pelos estúdios RKO.

Ao longo de mais de 40 anos, o restante foi abandonado em meio ao mofo dos arquivos da Paramount, até ser encontrado, em meados da década de 1980, sem condições de restauro integral.

Entre 1948 e 1954 seriam produzidos uma dezena de filmes, chanchadas, com a dupla Oscarito (1906-1970) e Grande Otelo, que, anteriormente, trabalharam juntos nas comédias Tristezas não Pagam Dívidas (1944; José Carlos Burle) e Não Adianta Chorar (1945; Watson Macedo).

A lista de filmes que foi estrelada pela dupla é extensa: É Com Este que Eu Vou (1948), Barnabé, Tu És Meu (1952), Carnaval Atlântida (1953) e Três Vagabundos (1952), os quatro dirigidos por José Carlos Burle.

Por sua vez, Watson Macedo os dirigiu três vezes: E o Mundo se Diverte (1949), Carnaval no Fogo (1950) e Aviso aos Navegantes (1951); Carlos Manga outros dois, Dupla do Barulho (1953) e Matar ou Correr (1954).

Finalmente, o longa Caçula do Barulho (1949) se deu sob a batuta do italiano Ricardo Freda.

Tadeu Pereira, professor da Universidade Federal de Rondônia e pesquisador da biografia de Otelo há mais de 20 anos, explica que o artista passou por todas as escolas do cinema brasileiro, se tornando um dos poucos negros à época a ocupar um lugar de destaque no cenário artístico nacional.

 

Confira seis filmes para conhecer a arte de Grande Otelo 

"Sua presença é uma forma de mostrar a beleza, a singeleza, a qualidade da comunidade negra. Ele sabia que a sua permanência nesses espaços cotidianamente era uma forma de assegurar o espaço do negro nesses locais", afirma.

Apesar desta contribuição, o preconceito ainda era pungente na vida do criador. Sebastião, mesmo carregando o peso do nome Grande Otelo, recebia três vezes menos que Oscarito, com quem fez colaborações 16 vezes durante a carreira.

Para além disso, não era visto como o grande criador que era. Para a sociedade da época, um homem negro atuando era concebível, mas criando, não.

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"Para poder participar dos processos de criação ele mexia nos roteiros, modificava os personagens de forma a deixar as suas marcas", explica Tadeu.

Otelo era impedido, também, de viver sua própria fé. Filho da Umbanda e do pai de santo Eriveldo Martins, o ator não pôde se revelar como umbandista justamente por ser uma figura pública.

Além disso, não podia estar atrelado aos lugares da boêmia, mesmo que fosse nestes lugares em que suas criações mais astutas ganhavam vida, ainda que não fosse visto como criador.

"Não concebiam que ele se portasse como negro, que estivesse em um terreiro, que frequentasse o samba e a boêmia. O queriam distante das práticas da negritude. Mas foi esse mesmo universo negro que o tornou um grande criador, o Grande Otelo", finaliza o pesquisador.

Macunaíma, de Joaquim Pedro de Andrade (1969)(Foto: Reprodução)
Foto: Reprodução Macunaíma, de Joaquim Pedro de Andrade (1969)

Papéis de destaque ainda estariam reservados para ele. Dois pontos altos da carreira de Otelo foram por seu desempenho em Assalto ao trem pagador (1962) de Roberto Farias e Macunaíma (1969), adaptação da obra-prima de Mário de Andrade, dirigido por Joaquim de Andrade.

Por sua atuação em Macunaíma recebeu três prêmios de melhor ator. E antes mesmo do filme estrear, Otelo fimou ainda Os Herdeiros, de Cacá Diegues, contracenando com Sérgio Cardoso, Odete Lara e Isabel Ribeiro.

 

 

Um legado desvanecido 

Mas a despeito da visibilidade e diversificação dos papéis de Grande Otelo ao longo da carreira, o ator termina sua vida televisiva na TV Globo, em plena década de 1990, como Eustáquio.

O personagem era o único aluno negro da Escolinha do Professor Raimundo, ridicularizado por não saber falar direito: colocava trema em todas as sílabas e, para responder as questões do professor interpretado por Chico Anísio, precisava da ajuda de todos os outros colegas.

O papel pareceu um retorno a seus primeiros filmes na da década de 1930, quando ainda era notória a reincidência de um tipo de racismo que se valia de estereótipos do século XIX para caracterizar os negros.

Nesse sentido, Grande Otelo foi, no entender do pesquisador Luiz Felipe Hirano, um intérprete do cinema e do racismo no Brasil em seu duplo sentido: “tanto um ator que interpretou papéis marcantes que expressaram visões racistas e antirracistas, quanto um intérprete que permite pensar os impasses e potencialidades do cinema que se fez vingar no Brasil”.

Grande Otelo no personagem Eustáquio, na Escolinha do Professor Raimundo, na TV Globo(Foto: Reprodução TV Globo)
Foto: Reprodução TV Globo Grande Otelo no personagem Eustáquio, na Escolinha do Professor Raimundo, na TV Globo

Em entrevista ao Estado de S. Paulo no ano anterior à sua morte, Otelo declarou: "Eu me sinto como uma pessoa que não deu certo. Não fez 10 pontos na vida. Foi até cinco, seis pontos."

Lembrado de que era considerado "patrimônio do Brasil", fazia questão de destacar: "O ator. Mas o cidadão não é."

Nos anos finais de sua carreira, as lembranças de toda sua carreira artística deram lugar à fama de boêmio. E Otelo também refletia sobre o tema, já idoso.

"O que pesa mais foi o tempo que farreei. Foi um tempo perdido. Pesa, mas não me dá remorso, porque, afinal de contas, a vida é isso", disse na mesma entrevista ao jornal paulista. 

"Diverti-me bastante, inconsequentemente, às vezes. Hoje não tenho capacidade nenhuma de me divertir, nem de divertir os outros", refletia, aos 77 anos de idade.

Grande Otelo também lamentava o fato de precisar continuar trabalhando mesmo na terceira idade:

"O ser humano tem de entender que, depois dos 70 anos, a gente quer sombra e água fresca."

Ruth de Souza e Grande Otelo na novela global Sinhá Moça (1986) (Foto:  Acervo TV Globo)
Foto: Acervo TV Globo Ruth de Souza e Grande Otelo na novela global Sinhá Moça (1986)

Grande Otelo morreu em 26 de novembro de 1993, aos 78 anos de idade, quando teve um acidente cardiovascular brutal por volta das 14h30, ao desembarcar em no aeroporto Charles De Gaulle, em Paris.

Otelo estava junto de sua companheira, Terezinha Brandão Costa. Após cumprimentar os funcionários do voo da Varig e brincar com uma recepcionista da empresa, ele passava por uma passarela quando sofreu uma queda brusca, causada por uma parada cardíaca.

O ator estava na França para receber uma homenagem no 15º Festival dos Três Continentes na cidade de Nantes. Em 1985, Grande Otelo já havia recebido do país a Medalha das Artes e das Letras durante viagem do então presidente francês, François Mitterrand, ao Brasil.

No dia anterior, 25 de novembro, havia participado do lançamento de seu livro de poesias, Bom Dia, Manhã, no Festival de Cinema de Brasília. 

Navegue pela linha do tempo da carreira de Grande Otelo 

 

 

Apesar das inúmeras contribuições às artes de Sebastião Bernardes de Souza Prata, no Brasil são raras as homenagens significativa à ele.

O teatro com seu nome em Uberlândia está fechado há mais de uma década e só em maio de 2024 começou a receber obras de restauração. Não existe no País nenhum museu ou espaço que agrega a documentação deixada por Sebastião, nem seu legado.

Para o professor Tadeu Pereira, isso é um sinal do silenciamento imposto às personalidades negras.

"O que deram de volta a esse sujeito foi uma tentativa de silenciamento. Essa sociedade não reconhece ainda o significado, a beleza e a grande contribuição do Sebastião e sobretudo da comunidade negra para a construção desse país".

Muito além de Grande Otelo, Macunaíma ou Eustáquio, Sebastião foi um andarilho. Incapaz de ficar preso a um só espaço artístico ou a uma só linguagem, sua atuação de fronteira e por que não dizer malandra impulsionou, de forma natural, sua penetração em platéias distintas, seja a da Praça Tiradentes ou a do Cassino da Urca.

E andando, ainda que em círculos em alguns momentos, a grandeza de Otelo permanece em cada papel de destaque que é confiado a um artista negro.

 

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