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Corrida espacial dos bilionários: muito além da globalização
Reportagem Seriada

Corrida espacial dos bilionários: muito além da globalização

A nova era espacial, marcada pela ida de bilionários ao espaço, além da demonstração de poder é tentativa de emplacar a transição da globalização para a universalização
Episódio 2

Corrida espacial dos bilionários: muito além da globalização

A nova era espacial, marcada pela ida de bilionários ao espaço, além da demonstração de poder é tentativa de emplacar a transição da globalização para a universalização
Episódio 2
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Quando o homem foi ao espaço pela primeira vez, em 1961, e pisou na Lua em 1969, o termo corrida espacial referia-se a um eixo da disputa entre dois países e suas ideologias. De um lado os Estados Unidos e do outro o bloco formado pela então União Soviética.

Passados mais de 50 anos daquele período, a “New Space”, como é conhecida atualmente a busca por cruzar a fronteira da Linha de Kármán, deixou de ser uma disputa do coletivo e passou a ser uma contenda entre indivíduos.

Os bilionários Jeff Bezos, dono da Amazon, Richard Branson, proprietário do grupo Virgin, e Elon Musk, CEO e fundador da Tesla e da SpaceX, dão rosto e forma a uma nova era. Construída ao longo das últimas duas décadas, a New Space vive seu ápice com Branson e Bezos fazendo neste mês de julho as primeiras viagens à borda do espaço em veículos de suas próprias companhias.

Mas por que esses magnatas estão indo ao espaço?

Do ponto de vista econômico, o interesse desses homens estaria na comercialização de viagens para fora do planeta nos próximos anos. O chamado turismo espacial é um mercado que promete ser lucrativo e para poucos.

Já do ponto de vista social e político as viagens ao espaço colocam os bilionários, seus negócios e, consequentemente, seu poder em evidência.

Bezos e Branson figuraram na mídia global durante todo este mês, tendo os lançamentos de seus veículos espaciais televisionados ao vivo em diversos países. Branson foi o primeiro dos três. A bordo da VSS Unity, ele passou dos 85 quilômetros de altitude, onde a atmosfera terrestre é praticamente nula.

Tripulação do New Shepard (LR) da Blue Origin, Oliver Daemen, Jeff Bezos, Wally Funk e Mark Bezos posam para uma foto perto do impulsionador após voar para o espaço no foguete New Shepard da Blue Origin em 20 de julho de 2021 em Van Horn, Texas. Joe Raedle / Getty Images / AFP(Foto: Joe Raedle / Getty Images / AFP )
Foto: Joe Raedle / Getty Images / AFP Tripulação do New Shepard (LR) da Blue Origin, Oliver Daemen, Jeff Bezos, Wally Funk e Mark Bezos posam para uma foto perto do impulsionador após voar para o espaço no foguete New Shepard da Blue Origin em 20 de julho de 2021 em Van Horn, Texas. Joe Raedle / Getty Images / AFP

Nove dias depois, o dono da Amazon foi ao espaço na cápsula New Shepard, a bordo da qual atingiu altitude de 100 quilômetros no primeiro voo suborbital a ser realizado sem piloto.

A SpaceX de Musk deve realizar viagem similar em setembro deste ano e o impacto midiático pretende ser o mesmo. De preferência, para ele, maior.

A presença dos bilionários nas primeiras viagens à borda do espaço, além de um passeio extremamente caro e de uma estratégia de marketing, é uma indicação de que eles apostam suas vidas nas tecnologias onde investiram bilhões.

O New Shepard da Blue Origin decola da plataforma de lançamento carregando Jeff Bezos junto com seu irmão Mark Bezos, Oliver Daemen, 18 anos, e Wally Funk, 82 anos, em 20 de julho, 2021 em Van Horn, Texas. Bezos e a tripulação fizeram o primeiro vôo espacial humano para a empresa. Joe Raedle / Getty Images / AFP(Foto: Getty Images via AFP)
Foto: Getty Images via AFP O New Shepard da Blue Origin decola da plataforma de lançamento carregando Jeff Bezos junto com seu irmão Mark Bezos, Oliver Daemen, 18 anos, e Wally Funk, 82 anos, em 20 de julho, 2021 em Van Horn, Texas. Bezos e a tripulação fizeram o primeiro vôo espacial humano para a empresa. Joe Raedle / Getty Images / AFP

Lucas Leite, doutor em Relações Internacionais e professor na Fundação Armando Álvares Penteado (Faap), aponta que a individualização da corrida espacial mostra o grau de desigualdade no qual as sociedades estão se formando.

“Se a gente pensar que os EUA aumentaram sua pobreza nos últimos anos, assim como boa parte do mundo, isso é um indicativo muito negativo e acaba sendo uma representação da falência de uma série de questões, acordos e princípios supostamente existiriam”.

O pesquisador aponta ainda que atualmente a iniciativa privada tem uma capacidade de investimento e criação de tecnologia que disputa com a pública. Mas os ganhos não sendo distribuídos na mesma medida.

“Programas espaciais como o europeu, o chinês e de outros países, dependem fortemente de investimento público e estatal. É um investimento que dá um retorno em tecnologia interessante, seja militar ou em questões civis, como ciência e saúde.

"Fazer algo assim tem um impacto enorme de visibilidade, nas redes sociais e no mundo como um todo e isso vai ter um reflexo nas empresas desses homens. Parece ser uma estratégia. Não iria muito para a questão do turismo espacial, é mais uma questão neoliberal<br>" Fabio Gentile, PhD em Filosofia e Política

Já na iniciativa privada, Leite diz não conseguir perceber essa busca pela ciência ou pelo bem comum. “Acho que é o contrário, porque ali há uma busca por tecnologia no sentido instrumental. Não estou dizendo que a ciência não é instrumental, sempre houve interesses, mas o que a gente percebe a partir dos bilionários é diferente. Qual o objetivo deles? Provavelmente há, mas são pessoas que não sabem nem como gastar tanto dinheiro e por isso criam aventuras fora da realidade de um mundo de pobreza e de fome”, ressalta.

Fabio Gentile, PhD em Filosofia e Política pela Universidade L'Orientale, de Nápoles, diz que a atual corrida espacial parte da lógica neoliberal de um “individualismo sem freios” e sinaliza possíveis objetivos almejados pelo grupo de bilionários.

“Fazer algo assim tem um impacto enorme de visibilidade, nas redes sociais e no mundo como um todo e isso vai ter um reflexo nas empresas desses homens. Parece ser uma estratégia que está sendo desenvolvida por eles. Não iria muito para a questão do turismo espacial, é mais uma questão neoliberal”, diz.

O cientista político ressalta ainda que o mundo ficou pequeno para a fortuna de alguns empresários. “São homens que se apresentam como nomes das eras virtuais, donos de megaempresas globalizadas. Vvivemos a transição da globalização para a universalização”, ironiza, acrescentando que outro objetivo é “mostrar o poder de suas fortunas para atrair investimentos e possíveis acordos com a iniciativa pública”, encerra.

 

 

Os bilionários e as viagens

Jeff Bezos segura os óculos de aviação que pertenceram a Amelia Earhart , durante uma coletiva de imprensa sobre seu voo no New Shepard da Blue Origin para o espaço em 20 de julho de 2021 em Van Horn, Texas. Bezos disse que trouxe os óculos com ele no voo Joe Raedle / Getty Images / AFP(Foto: Getty Images via AFP)
Foto: Getty Images via AFP Jeff Bezos segura os óculos de aviação que pertenceram a Amelia Earhart , durante uma coletiva de imprensa sobre seu voo no New Shepard da Blue Origin para o espaço em 20 de julho de 2021 em Van Horn, Texas. Bezos disse que trouxe os óculos com ele no voo Joe Raedle / Getty Images / AFP

Jeff Bezos

Fundador da Amazon e proprietário do jornal The Washington Post, Jeff Bezos, 57, é a pessoa mais rica do mundo. Com uma fortuna estimada pela revista Forbes em cerca de US$ 180 bilhões, Bezos viajou ao espaço no último dia 20 de julho, aniversário da primeira viagem do homem à Lua, a bordo da cápsula New Shepard.

Fabricada pela empresa Blue Origin, fundada em 2000 e da qual também é dono, a cápsula de 18,3 metros de altura e completamente autônoma, foi impulsionada por um foguete. Apesar de ter sido o segundo bilionário a ir ao espaço, Bezos foi pioneiro em alguns aspectos durante a sua viagem.

Foi, ao mesmo tempo, o primeiro voo suborbital a ser realizado sem piloto; o que levou a pessoa mais velha e a mais nova ao espaço; e o primeiro, até agora, no qual um dos passageiros pagou para estar a bordo. O foguete que levou Bezos e mais três tripulantes foi lançado a partir de uma base no meio do deserto no estado americano do Texas.

A viagem pode ser dividida em cinco etapas: o lançamento do foguete; a separação da cápsula com os passageiros do propulsor; o tempo de dez minutos que a cápsula leva para alcançar o espaço, ficando cerca de quatro minutos acima da Linha de Kármán que divide a atmosfera da Terra e o espaço; a volta do propulsor de maneira autônoma; e o retorno da tripulação a bordo da New Shepard à Terra, em queda livre, com o peso amortecido por três paraquedas.

A nave New Shepard foi batizada em homenagem ao astronauta Alan Shepard, primeiro estadunidense a ir ao espaço, em 1961. Bezos pretende retomar missões à Lua e quer fazê-lo dentro dos próximos três anos.

 

 

O empresário Richard Branson (Foto: Patrick T.Fallon/AFP) (Foto: PATRICK T.FALLON/AFP)
Foto: PATRICK T.FALLON/AFP O empresário Richard Branson (Foto: Patrick T.Fallon/AFP)

Richard Branson

Dono de um patrimônio avaliado na casa dos US$ 6 bilhões, o magnata britânico Richard Branson foi o primeiro de três bilionários, que disputam a hegemonia na corrida espacial denominada New Space, a viajar à borda do espaço.

Fundador do grupo Virgin, que iniciou no ramo de lojas de música, ele fundou a empresa Virgin Galactic, responsável pelo lançamento. Branson voou a bordo do WhiteKnightTwo, avião não convencional batizado de VSS Unity no último dia 11 de julho, exatos nove dias antes de seu concorrente Bezos.

O foco de Branson é mais modesto e prático em relação ao de Bezos. Ele pretende estabelecer uma franquia capaz de oferecer voos turísticos, como o feito por ele, para curiosos que possam pagar pela viagem.

Para isso, busca desenvolver aeronaves espaciais reutilizáveis que também seriam capazes de transportar carga em trajetos curtos pelo espaço suborbital. Atualmente, a Virgin Galactic é a única das empresas dos bilionários com ações na Bolsa, mas acumula prejuízo que supera US$ 100 milhões neste ano.

O voo de Branson teve duração aproximada de 20 minutos e decolou em uma pista do Spaceport America, primeiro espaçoporto comercial, criado por ele em 2011 e localizado no estado americano do Novo México. O foguete VSS Unity, da sua empresa de astroturismo, Virgin Galactic, Holding Inc, decolou às 12 horas e pousou 41 minutos depois.

 

 

Elon Musk, fundador da SpaceX, fala durante o Satellite 2020 no Washington Convention Center em 9 de março de 2020, em Washington, DC (Foto de Brendan Smialowski / AFP)(Foto: Brendan Smialowski / AFP)
Foto: Brendan Smialowski / AFP Elon Musk, fundador da SpaceX, fala durante o Satellite 2020 no Washington Convention Center em 9 de março de 2020, em Washington, DC (Foto de Brendan Smialowski / AFP)

Elon Musk

Nascido na África do Sul e posteriormente conseguindo a cidadania americana, o empresário Elon Musk tem fortuna estimada em cerca de US$ 161 bilhões. Dono da fabricante de carros Tesla, ele é um dos três homens mais ricos do planeta.

Musk embarcou na empreitada espacial ao fundar a empresa SpaceX, em 2002, com os milhões adquiridos a partir da empresa PayPal, da qual foi um dos fundadores. De lá para cá, a SpaceX já lançou dezenas de foguetes e fechou contratos com a Nasa e com outras agências pelo mundo para colocar satélites em órbita.

Musk é o único dos três bilionários que ainda não foi ao espaço, mas pretende mudar isso em breve. Ele chegou a reservar uma passagem para um dos voos da Virgin Galactic, empresa do rival Branson, segundo a imprensa dos EUA.

Apesar disso, a SpaceX é quem está mais à frente na corrida espacial. Há anos a empresa transporta cargas para o espaço e já chegou a desembarcar cosmonautas na Estação Espacial Internacional.

As naves de Musk já viajam pela órbita terrestre, enquanto os voos da Blue Origin, de Bezos, e Virgin, de Branson, são suborbitais. Também por isso, o foco de Musk é mais ambicioso. Ele pretende enviar civis à Estação Espacial Internacional no fim deste ano.

Musk também considera ser possível enviar missões tripuladas a Marte em 2024. Apesar de problemas no caminho, como explosões de espaçonaves não tripuladas, ele fala publicamente sobre a vontade de colonizar o planeta vizinho.

Com fama de popstar agitador nas redes sociais, Musk já prometeu no Twitter que construiria 100 naves espaciais anualmente, capazes de transportar 100 mil pessoas da Terra para Marte sempre que as órbitas dos planetas estiverem alinhadas.

 

 

Como os governos entram nessa história

Na segunda metade do século XX, o espaço foi amplamente disputado entre Estados Unidos e a antiga União Soviética numa das maiores corridas políticas e ideológicas da história. A última missão tripulada para além da órbita terrestre ocorrida no início da década de 1970 marcou o fim da busca por hegemonia espacial naquele período.

Na sequência de anos de tensão da Guerra Fria, as duas superpotências arrefeciam paulatinamente o ímpeto de demonstrar força ao outro desbravando o espaço. 

No período da Guerra Fria, os avanços espaciais, para além do campo tecnológico, tinham um amplo significado político. Cada passo dado "para cima" era considerado importante para o aumento de influência no contexto da época.

Lucas Leite, professor de Relações Internacionais da Faap, diz que há hoje uma retomada do interesse de países na questão espacial, mas aponta para diferenças entre o atual momento e o registrado no século passado. Recursos, novos atores e falta de elementos para definir as regras de uma nova disputa são alguns deles.

“O crescimento do interesse de China, Índia, Rússia e até com países africanos iniciando programas espaciais sinaliza que a geopolítica continua importante em um mundo mais multilateral, conectado e com mais potências emergindo. Isso significa que, se tivermos uma nova corrida espacial, mais atores e, consequentemente, interesses estarão envolvidos”, projeta.

Ainda segundo Leite, não existe um sistema internacional que cuide ou regulamente a exploração do espaço e os países precisam debater e acertar posicionamentos. “É possível declarar soberania sobre algo fora da Terra? Eles podem realizar uma missão e falar: 'bom, Marte vai ser colonizado pelo país X porque ele ocupou primeiro?' Isso pode gerar conflitos e uma série de desavenças”, projeta.

Outra diferença está no aspecto econômico, pois o cenário atual é de recursos mais escassos. Portanto, é difícil que o padrão da “era Apollo” seja vista novamente.

O Programa Apollo foi um conjunto de missões da Agência Espacial dos Estados Unidos (Nasa) entre as décadas de 1960 e 1970 que levou o homem à Lua. É difícil que ele se repita porque o Apollo foi uma espécie de cheque em branco do governo americano para vencer a corrida espacial contra a URSS. Por isso, a entrada de novas pessoas na equação espacial (iniciativa privada) é defendida como parte da viabilidade do tema.

Foto de arquivo, obtida da Nasa, mostra o retrato oficial da tripulação dos astronautas da Apollo 11 tirados no Centro Espacial Kennedy em 30 de março de 1969. Da esquerda para a direita, aparecem Neil A. Armstrong, comandante; Michael Collins, piloto do módulo; Edwin E. Buzz Aldrin, piloto do módulo lunar(Foto: AFP)
Foto: AFP Foto de arquivo, obtida da Nasa, mostra o retrato oficial da tripulação dos astronautas da Apollo 11 tirados no Centro Espacial Kennedy em 30 de março de 1969. Da esquerda para a direita, aparecem Neil A. Armstrong, comandante; Michael Collins, piloto do módulo; Edwin E. Buzz Aldrin, piloto do módulo lunar

O cientista político Fábio Gentile concorda que as grandes potências têm sofrido com limitações nos investimentos em geral, o que afeta, sobretudo, a política espacial.

“Fica muito complicado, enquanto Estado, privilegiar esse setor com poucos recursos e com os desafios de combater a desigualdade. Então claro que os governos veem com bons olhos aqueles que fazem isso de forma privada, podendo gerar desenvolvimento de tecnologias para os países”.

O pesquisador explica ainda que bilionários como Elon Musk e Jeff Bezos sabem disso e realizam suas viagens espaciais para mostrar seu poderio. “Dentre os objetivos desse tipo de ação está claramente uma tentativa de mostrar viabilidade na parceria público-privada”.

Entretanto, Gentile questiona o retorno espacial de fato para os países numa época onde a falta do sentimento de “coletividade” afeta a percepção pública sobre o tema.

“Qual seria, de fato, o retorno para grandes potências, o que eles fariam em outros planetas? Não consigo entender. Acho que é um discurso ideológico para se mostrar como potências, mas de maneira diferente da Guerra Fria. A China, que hoje rivaliza com os EUA, não é a Rússia da década de 1960. Já é um país com boa tecnologia e finanças também. No capitalismo globalizado de hoje a China já é um país que já mexe na equação mundial”.

Sobre retornos tecnológicos, Lucas Leite aponta que os investimentos podem fazer com que determinados países saiam na dianteira em termos de energia nuclear, de Defesa, de criação de energia e do lançamento de satélites, dentre outros.

“A corrida espacial representa avanços extremamente importantes, mas quando ela é feita num caráter individual, e até egoísta no caso de bilionários indo ao espaço, a gente percebe que a questão perde relevância”, finaliza.

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