A costureira Raquel Silva Siqueira, 39 anos, é decidida. Não se negou a aparecer em fotografias. Mesmo que o assunto da reportagem fosse violência doméstica. Não se constrange de descrever sua experiência, de se mostrar como uma vítima que conseguiu superar o problema. Quis saber quando seria publicada, queria se ver, ler, mostrar o que havia dito na entrevista. Já falou do assunto outras vezes. "Não tenho vergonha. Foi verdade, infelizmente."
Foi a personalidade forte e a atitude no momento certo que a fizeram fugir de um brevíssimo casamento de apenas cinco meses. Literalmente fugir. Antes que algo pior acontecesse. Os fatos são de sete anos atrás. Raquel não chegou a ser agredida fisicamente, sofreu a violência psicológica, "tão grave quanto". Ela descreve desde cárcere privado a gritos e situações "doentias" de ciúme.
"Quando ele ia sair, me trancava dentro do quarto. Saía com minha identidade, CPF, carteira de trabalho dentro do bolso dele. Me deixava trancada. Eu só saía se fosse com ele."
"Era muito ciumento, muito possessivo. Eu não podia ligar para minha mãe, minha irmã, se ele não estivesse perto ouvindo. Na cabeça dele, já perturbada, elas iriam me passar recados de ex-namorados. Quando ele ia sair, me trancava dentro do quarto. Saía com minha identidade, CPF, carteira de trabalho dentro do bolso dele. Me deixava trancada. Eu só saía se fosse com ele", enumera. Lembra do dia que o então marido disse ter visto um homem encostado e um poste piscando e acenando para ela. Fruto da imaginação dele que ela hoje chama de "perturbada".
O casamento civil foi em 8 de agosto de 2014. Foram morar na cidade dele, Ubajara, a 326 km de Fortaleza. Do namoro que durou um ano, com um homem que conheceu "educadíssimo, cavalheiro", Raquel se surpreendeu vivendo com uma pessoa que assumira outra personalidade. "É o que dizem da pessoa dissimulada, estratégia para dar o bote. Aquilo estava me fazendo mal". Como escapou? "Um dia ele inventou uma reforma na casa, uma pintura, a porta não estava fechada direito, resolvi fugir."
Correu dali e, numa caminhada sem saber para onde ia, encontrou a porta do Sindicato dos Trabalhadores Rurais da cidade. Parou para pedir ajuda. Pelo acaso, ou "foi a mão de Deus", lá também funcionava um núcleo de enfrentamento à violência contra a mulher. Raquel detalhou sua história e se descobriu no perfil de uma vítima de violência doméstica. Sugeriram que ela denunciasse à Polícia. "Quero ir agora", e foi levada para a delegacia. Em Tianguá, distante 50 km de onde estava.
Quando Raquel já fazia o relato ao delegado, o marido chegou. "Ele chega de-ses-pe-ra-do (separa as sílabas enfaticamente). 'Doutor, é minha esposa, ela não conhece nada aqui'. E o delegado 'o senhor esteja preso em nome da lei'. Foi algemado e levado direto pra cadeia". Logo a juíza concedeu medida protetiva. Não sabe quanto tempo ele ficou preso, liberado sob fiança. Voltou a vê-lo na audiência do divórcio, no ano seguinte. "Andou me ligando depois, mas foi avisado pela Polícia que poderia ser preso novamente. Nunca mais tive notícias."
Além do benefício da lei que protege mulheres e pune agressores, Raquel já conheceu a própria Maria da Penha Fernandes, a biofarmacêutica cearense que batiza a legislação. Ganhou o livro dela, "Sobrevivi, Posso Contar" (editora Armazém da Cultura, 1994 - preço médio R$ 49). "Se eu disser que não tinha sentimento, tô mentindo. Mas o lado infeliz falou mais alto. Não estava bem com ele. O que diria para a mulher que sofre violência? Coragem. A dependência financeira conta. Por isso tem que estudar, se profissionalizar. Hoje sou mais esclarecida, não era antes. Não é fácil, mas tem que denunciar." Raquel também quer escrever seu livro um dia. "Pra servir de alerta". Decidida como ela é.
Em levantamento de dados exclusivo, a Central de Jornalismo de Dados do O POVO - DATADOC mostra como o Ceará ignora a raça das mulheres vítimas de violência doméstica, comprometendo políticas públicas