De pedaço de carvão à mão, o menino começou a rabiscar as paredes e a calçada da Fundição Santa Isabel, no Centro de Fortaleza. O pai, seu Sabino, não gostava muito da ideia de ver o filho gastando tempo com desenho: como os irmãos, Antônio deveria crescer e se dedicar à fabricação de peças metálicas.
Mas depois do carvão veio a tinta guache, e Sabino se deu conta de que já estava na casa do sem jeito. Foi aí que o pai entregou o filho nas mãos de Dona Mundica, conhecida professora de artes da década de 1930 na Capital, cuja técnica utilizada era a cópia.
Pronto. Daí não parou mais. Pintor, desenhista e gravador, Antônio Bandeira se tornou um dos artistas mais singulares das artes brasileiras.
Aquela fundição, com suas fagulhas e explosões, nunca saiu da cabeça do cearense. Assim como o flamboyant, árvore frondosa que encantava os olhos infantis de Bandeira.
Esses dois elementos, o ferro fundido e a planta florida, são representativos da obra construída pelo artista ao longo dos seus 45 anos de vida, interrompidos repentinamente no dia 6 de outubro de 1967, por complicações durante uma cirurgia na garganta em um hospital parisiense.
Entre o que a natureza dá e o que o homem faz com as próprias mãos, um mundo de cores e traços foi construído e agradou diferentes olhares.
“Ele dedicou a vida à pintura. Meu tio morreu muito novo, mas foi intensa a produção dele”, conta o sobrinho Francisco Bandeira, também artista plástico. Francisco aponta que Antônio vivia com veemência e afeto as cidades pode onde passava e que a obra do premiado pintor é reflexo direto do entorno.
“Ele era um andarilho, vivia Paris, Rio, Fortaleza. Quando ele estava por aqui, adorava ir à Praia do Mucuripe, ia para o Mercado São Sebastião comer e beber. Ele aproveitava bem o sol daqui, sempre comentava da importância da luminosidade de Fortaleza para o seu trabalho, dizia que aqui tem uma luz diferente”.
Apesar de ter saído muito jovem da Capital, Bandeira movimentou a cena artística enquanto esteve aqui. Com apenas 19 anos, fundou, ao lado de artistas como Mário Baratta, o Centro Cultural de Belas Artes (CCBA), projeto que deu origem, dois anos depois, à Sociedade Cearense de Artes Plásticas (Scap).
Por aqui, encontrou apoio de amantes das artes que ajudaram o jovem a conseguir espaço, a exemplo do pintor suíço Jean-Pierre Chabloz (que se tornou um dos mentores de Bandeira ao incentivá-lo a ir à Europa) e Antônio Martins Filho, então reitor da Universidade Federal do Ceará (UFC).
“Não dá mais para pensar o Bandeira encerrado em si mesmo. Pensar o artista é pensar ele na sua rede de relações sociais. Eles (Bandeira e seus pares) proporcionam à Cidade uma conexão com o mundo. É prova de que Fortaleza não estava isolada. Por aqui, circulavam diferentes atores do mundo das artes”, avalia a historiadora da arte Carolina Ruoso, doutora pela Universidade Paris 1 Panthéon-Sorbonne.
Aos 23 anos, o artista mudou-se para o Rio de Janeiro, onde logo apresentou sua primeira exposição individual, no Instituto de Arquitetos do Brasil. Após um ano em solos cariocas, Bandeira conquistou bolsa de estudos do governo francês e ganhou o mundo.
Essas cidades, que acabavam indo parar nos quadros, ajudam a entender uma peculiaridade da obra de Bandeira: o pintor passeava entre o figurativismo (que propõe uma “imitação” do mundo) e o abstracionismo (que nega a figuração na busca de um olhar mais subjetivo).
“Bandeira fazia o que podemos chamar de uma abstração figurativa, unindo duas coisas opostas. Ele tinha essa capacidade”, aponta o curador e pesquisador Max Perlingeiro, detalhando que o cearense titulou grande parte dos seus trabalhos, dando, assim, um caminho de apreciação aos fruidores.
“Quando você olha uma obra do Bandeira, você fica diante daquela forma, daquela cor e você vê a etiqueta e tem escrito, por exemplo, o título Cidade queimada de sol. Imediatamente você visualiza a cidade e vê que ela está queimando, vê o sol, vê tudo”, descreve o estudioso, que há mais de 30 anos pesquisa o trabalho do pintor.
Cidade queimada de sol (1959), uma das mais conhecidas telas de Bandeira. Foto: Chico Albuquerque, em 20/08/2000
Indo na contramão da abstração vigente nas décadas em que atuou (quando o protagonismo estava voltado às formas geométricas), Bandeira constrói, desde o começo da sua carreira internacional, um caminho muito próprio dentro da arte.
Em Paris, ele ainda chega a frequentar a École Nationale Supérieure des Beaux-Arts e a Académie de la Grande Chaumière, mas logo sai, pois buscava mesmo uma arte para além do academicismo.
“Ele tentou ir para duas escolas, mas Bandeira era uma pessoa muito irrequieta. Ele não se adaptou e fugiu, porque queria descobrir novas linguagens”, conta Francisco.
Curadora da exposição Antônio Bandeira: um abstracionista amigo da vida, atualmente em cartaz na Unifor, Regina Teixeira de Barros aponta as peculiaridades do homem que foi um dos pioneiros da abstração no País.
“O expressionismo abstrato, de uma forma geral, é identificado com um certo existencialismo, no sentido mais dark do termo. O Bandeira tem uma pintura leve, não é carregada de um sentimento negativo do mundo. Para ele, a pintura é uma fonte de prazer", detalha, apontando que o cearense definitivamente não pode ser avaliado “preso” a um ou outro movimento artístico.
“Ele pintava paisagens, cidades, partia da realidade. O Bandeira desenvolveu um certo pensamento visual abstratizante. Ele é fora da casinha, até mesmo para os europeus que eram contemporâneos dele. Bandeira é um artista peculiar”, define.
Retrato de menino, óleo sobre madeira, pintado em 1942
Muitos foram os prêmios, exposições e movimentos artísticos na carreira de Bandeira entre Brasil e Europa. Na França, aliou-se a artistas reconhecidos como Alfred Otto Wolfgang Schulze, o Wols, e Camille Bryen. Os três teriam formado um grupo, entre 1949 e 1951, chamado Banbryols (não existem registros, porém, dos trabalhos dessa época).
No Brasil, no começo da década de 1950, Bandeira participou da primeira Bienal Internacional de São Paulo e, na segunda edição do evento, saiu vencedor do concorrido Prêmio Fiat. Fez ainda exposições individuais em cidades como Nova York e Londres.
Uma marca que segue viva 50 ano após a morte do cearense cuja obra reinventou fronteiras geográficas e artísticas