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Tempo de Guardar
Reportagem Seriada

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A data para o fim do racionamento em Campina Grande estava marcada. Deveria ter sido no último sábado, 26 de agosto. Porém, o Ministério Público local preferiu desconfiar que a água vinda do São Francisco não estaria armazenada em quantidade suficiente. E foi apresentada ação civil pública cobrando explicações. Com a chegada da água à região, o segundo maior município paraibano, de 400 mil habitantes, já pode se dar o luxo de parar de poupar água?

A partir do questionamento jurídico, feito à Companhia de Água e Esgoto da Paraíba (Cagepa), o fornecimento parcial foi mantido: metade da cidade com água nas noites de domingo até quarta-feira; a outra metade, das madrugadas de quinta às manhãs de domingo. Ainda é tempo de guardar. Mas a empresa ainda avalia até quando segurar a distribuição.

A escala de abastecimento em Campina Grande foi iniciada desde 6 de dezembro de 2014. Chegou a ser pior: eram cinco dias da semana sem nada nas torneiras. À época, o açude Boqueirão, que abastece a cidade, acumulava 22% de volume. Já preocupava.

Agravou-se ao ponto de ter somente 2,9% em 18 de abril deste ano. Eram 11 milhões de metros cúbicos (m³), quase seco. Foi o dia que a vazão da transposição entrou no reservatório. Teriam sido apenas mais três meses de abastecimento. Por dia, quando não estava sob racionamento, Campina Grande consumia 1.300 litros/segundo (l/s). Com fornecimento limitado, caiu para 950 l/s.

Com a crise hídrica amenizada pelo Velho Chico, a régua do Boqueirão marcou 8,1% no último dia 16. Medição ainda considerada volume morto - quando o traço não passa de 8,2%. Para o MP paraibano, apesar do aporte significativo nestes quatro meses e meio, poderia haver mais água na barragem e o risco continua iminente.

As preces

A vazão recebida tem sido de 3, 5 mil litros por segundo (m³/s) - expectativa era de 7 m³/s. Até a primeira quinzena de agosto, o Boqueirão somava 33 milhões m³, dos 411 milhões m³ de capacidade. “Sem a transposição, o abastecimento em Campina Grande não teria tido opção”, admite Ronaldo Menezes, gerente da Cagepa na Regional Borborema. A cidade é a maior no caminho do Eixo Leste do projeto.

A solução pela chuva, sempre incerta, mais uma vez não viria. O rio Paraíba também morrendo de sede. São Francisco não faltou às preces. “A partir de agora, o desafio é saber como usar melhor essa água (do São Francisco) de modo racional”, reforça Menezes. Campina Grande tem 140 mil ligações prediais e pelo menos duas grandes indústrias como consumidoras locais: a Coteminas (têxtil) e a Alpargatas (calçados). O rio está provendo Campina Grande e mais 31 cidades. A região mais agoniada, com quase nada de reserva disponível, é a do Brejo. Entre os municípios estão Lagoa Seca, Pocinhos, São Sebastião de Lagoa da Roça, Lagoa Nova e Matinhas.

Valdemiro Carolino, gerente adjunto da Cagepa na Regional Borborema, tem 66 anos e trabalha há 42 na empresa. Atuou como responsável pelo controle operacional da água disponível no período mais crítico. “Era como uma operação de guerra, a gente não sabia se sairia vivo ou morto. Confesso que nunca acreditei que o São Francisco chegasse aqui”.

A tensão foi “uma boa lição para todos, sobre o respeito à água”, acredita Valdemiro. Ele diz que a empresa tem se preocupado, “como dever de casa”, em cercar as distorções e irregularidades. “Estamos tentando reduzir perdas com micros e macromedições, controle de vazamentos, fiscalizando pontos de água cortada e de qualquer água usada indevidamente”.

Na régua

Boqueirão, oficialmente denominado de açude Epitácio Pessoa, completou 60 anos em 2017. Pertence ao Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (Dnocs). Desde janeiro, quando aniversariou, está passando por obras de modernização e recuperação, numa lista de barragens antigas que se encherão das águas do São Francisco. “Conserto de açude era sempre com água. Hoje é no seco”, diz Severino de Normandia, 61 anos, o Nanan, servidor do Dnocs há 32.

Ele já trabalhou em grandes reservatórios do Ceará, como o Banabuiú, Orós e Pentecoste. Nanan faz diariamente a leitura das réguas que marcam o volume acumulado no Boqueirão. Aponta quanto chega pela transposição. “Numa situação que temos aqui, não há inverno suficiente na região para pegar mais volume e vem essa água da transposição, pra mim já é tudo. O São Francisco, apesar do nível muito baixo, está conseguindo atender nossa demanda. Pra mim, já está acima da expectativa. Essa água da transposição é um rio perene, contínuo. Só tem a crescer, o volume só vai aumentar”, afirma.

Água de Cartão Postal

Campina Grande cresceu. Já cantou o conterrâneo Jackson do Pandeiro: "Alô, alô, minha Campina Grande/Quem te viu e quem te vê/ Não te conhece mais...". Antes de torres comerciais de até 40 andares, avenidas largas e congestionamentos, foi o pequeno Açude Velho, de 440 m³, que segurou o abastecimento. Por 120 anos, entre 1830 e 1950. Virou cartão postal no Centro da cidade.

Antônio Alves, serviços gerais, e Edigley Alves, serviços gerais. Campina Grande, segunda maior cidade da Paraíba, começa a ser abastecida pela Transposição do Rio São Francisco. (Foto: Mateus Dantas/O POVO)
Foto: Mateus Dantas/O POVO Antônio Alves, serviços gerais, e Edigley Alves, serviços gerais. Campina Grande, segunda maior cidade da Paraíba, começa a ser abastecida pela Transposição do Rio São Francisco.

Todo dia, a limpeza de lixo e plantas no espelho d’água é feita por Roçado e o filho Roçadinho - Antônio Alves, 52, e o filho Edigley Alves, 27. A água é usada para regar praças. À margem está o Museu de Arte Popular da Paraíba, projetado pelo arquiteto Oscar Niemeyer. 

 

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