Em 13 de março de 1861, o barco Palpite naufragou com grande parte da produção reunida pelas seções Geológica e Astronômica da Comissão das Borboletas. A embarcação havia sido providenciada por Guilherme de Capanema, chefe da seção Geológica, para levar sua bagagem até Fortaleza. A tripulação se salvou, mas perderam-se aparelhos científicos, apontamentos, quatro álbuns de fotografias, um conto de réis em cédulas de mil-réis, livros e os originais de um trabalho em alemão que Capanema escrevia sobre o norte do Brasil (Renato Braga, p. 90-91).
Também se perderam o livro de registro de todas as observações meteorológicas feitas até Sobral, as observações astronômicas, a descrição geológica da província, e também utensílios, plantas medicinais, coleções de Sobral e Meruoca, entre outros itens. (Jornal O Cearense de 5 de abril de 1861).
Na carga perdida estava ainda o material fotográfico, novidade que exerceu fascínio sobre os cearenses. Perderam-se as dezenas de fotografias feitas por Gonçalves Dias e Guilherme de Capanema. Desapareceu esse registro fotográfico único do Ceará há 160 anos. (Braga, p. 70-71).
Renato Braga informava o local do naufrágio “na altura da Barrinha, ao sul da foz do Acaraú”. A causa teria sido “um aguaceiro pesado, acompanhado de forte ventania”. Jangada, enviada na tentativa de localizar a embarcação, virou. Barco enviado em nova tentativa nada encontrou. E o Palpite nunca foi localizado. Até agora.
Um grupo de mergulhadores e pesquisadores acredita que um velho naufrágio, na praia da Volta do Rio, em Acaraú, na divisa com Itarema, pode ser o Palpite. Conhecido como “barco do Acaraú”, fica entre cinco e seis metros de profundidade, perto da costa. Um dos membros do grupo, Augusto César Bastos Barbosa, explica que há várias pistas: a âncora é em estilo almirantado, do século XIX. A caldeira de rebite é do fim do século XVIII, começo do século XIX. Os indicadores de desgaste apontam que é um naufrágio antigo.
O próximo passo será um novo mergulho, do qual deverá participar o professor Flávio Calippo, ex-presidente da Sociedade de Arqueologia Brasileira, com pesquisas voltadas para a arqueologia subaquática. Eles irão filmar o barco do Acaraú e, por fotogametria, criarão o sítio arqueológico em 3D. Será um modo de aprofundar os estudos para tentar reconstituir essa história e tentar encontrar algum elemento que ligue aquela embarcação à Comissão Científica.
O estudo é tema da pesquisa de Augusto César na Pós-Graduação em Arqueologia Subaquática no Instituto Politécnico de Tomar, na Universidade Autônoma de Lisboa.
Conforme Augusto, o barco do Acaraú tem aproximadamente 25 metros. É uma embarcação de dois mastros, de estilo bastante usado no período em navegação de cabotagem. Um fator de dificuldade é o fato de o Palpite ter sido único. Foi construído por um português , onde hoje fica o Passeio Público. Caso tivesse sido feito por um estaleiro, haveria a planta e seria fácil comparar.
Como o naufrágio é pouco profundo, também foram retirados vários objetos. Uma antiga moradora da comunidade relatou Augusto que o bronze do barco foi usado para fazer o sino da igreja de Acaraú. Os pesquisadores buscam indícios para montar o quebra-cabeças, sem saber se conseguirão provar se é ou não o Palpite. “Nós não temos certeza se a gente vai conseguir recuperar integralmente esta história”, admite Augusto, empolgado e confiante apesar da incerteza.
Em seu diário, na data de 1º de abril, Francisco Freire Alemão registra a aflição de Guilherme de Capanema ao receber a notícia do naufrágio. Agora (cinco horas) nos chegou aqui Capanema muito aflito, porque teve notícia de que o iate Palpite, que vinha do Acaracu (Acaraú), naufragou na costa; e vinha nele a sua bagagem, roupa, dinheiro, coleções, notas fotográficas etc etc., disse ele que eram quatro malas e oito ou dez caixas!”. Não demonstra grande emoção a respeito e sai em seguida para uma visita.
Já Capanema ficou “completamente besta e apatetado”, como disse em carta a Gonçalves Dias. Perdeu dois anos de pesquisas e os resultados da seção da Comissão da qual mais se esperava. Ocorre que logo surgiram os rumores de que o chefe da seção Geológica teria tramado o afundamento do Palpite para disfarçar seu fracasso e mesmo o suposto mau uso do dinheiro que relatou ter ido para o fundo do mar.
Em manuscrito datado de 1865, adquirido pela Biblioteca Nacional, Francisco Freire Alemão, presidente da Comissão Científica, é implacável com Capanema. “Com a vida engolfada em tão asqueroso lodaçal de vícios, era absolutamente impossível que ele (Capanema) pudesse ocupar-se no menor trabalho científico enquanto se demorou na capital. Mas ele remediou semelhante falta, e mesmo com ela lucrou, como se vai ver”. E completa: “Na volta comprou um barquito velho e desconjuntado, chamado “Palpite” — (Que palpite!!!) — embarcou nele uns caixotes e canastras cheias e pesadas, mas, ad cautelam, deixou-se ficar em terra (...)”.
Freire Alemão ironiza, demonstrando acreditar ter sido o naufrágio intencional. “O ‘Palpite’, porém, sem respeitar uma carga de tanto valor, abriu-se no decurso da viagem em um rio manso, tendo a correnteza em seu favor e de tal modo se submergiu que nenhuma pessoa da tripulação pereceu, nem perdeu cousa alguma, enquanto que aquela importante carga de caixotes e canastras nunca mais apareceu, nem houve notícia dela, como se o “Palpite” se houvesse despedaçado vítima das fúrias de uma tempestade nos mares, de encontro a rochas e parcéis cercados de voragens”.
O grupo do qual faz parte Augusto César, caso consiga comprovar ser o “Palpite” o barco do Acaraú, pretende também investigar as causas do naufrágio. Para, quem sabe, esclarecer um mistério de 160 anos.
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