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Nascidos nos campos de extermínio, a última geração do Holocausto
Reportagem Seriada

Nascidos nos campos de extermínio, a última geração do Holocausto

A história de três sobreviventes que nasceram em campos de concentração nazistas. Eles serão, em breve, os últimos sobreviventes de um dos capítulos mais terríveis da história
Episódio 6

Nascidos nos campos de extermínio, a última geração do Holocausto

A história de três sobreviventes que nasceram em campos de concentração nazistas. Eles serão, em breve, os últimos sobreviventes de um dos capítulos mais terríveis da história
Episódio 6
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Seria preciso lutar contra o esquecimento, testemunhar, falar sobre esse nascimento em um campo de concentração nazista e a sobrevivência na vergonha. Mas como contar que você "chegou ao mundo ao lado de uma pilha de cadáveres?", pergunta Florence Schulmann.

"Tenho muito medo que não acreditem em mim", explica a francesa de 75 anos, comerciante aposentada, em seu apartamento em Paris, onde deu aos jornalistas da AFP um de seus raros testemunhos sobre um destino fora do comum.

Nos últimos meses, a AFP escutou três sobreviventes da Segunda Guerra Mundial que compartilham a mesma história desconhecida: como Florence Schulmann, Hana Berger Moran e Mark Olsky nasceram naquele inferno e serão, em um dia não muito distante, os últimos sobreviventes do Holocausto.

Judeus, ciganos, homossexuais, testemunhas de Jeová, deficientes físicos e mentais e opositores políticos foram alguns dos grupos perseguidos pelos nazistas(Foto: Yad vashem / Reprodução)
Foto: Yad vashem / Reprodução Judeus, ciganos, homossexuais, testemunhas de Jeová, deficientes físicos e mentais e opositores políticos foram alguns dos grupos perseguidos pelos nazistas

Cada um tem uma visão diferente de sua vida. Ao contrário de Florence, a americana Hana, cujos óculos violeta dominam seu rosto, visita escolas contando sua experiência "para justificar sua razão de ser".

Ex-gerente de qualidade de uma empresa de biotecnologia, esta doce e dinâmica avó vive atualmente em Orinda, Califórnia, oeste dos Estados Unidos.

Foi também nos Estados Unidos que o carismático Mark Olsky reconstruiu sua vida. Médico de emergência aposentado, daltônico, tem o físico de um ex-jogador de futebol americano. Ele mora perto de Chicago e ainda se surpreende por ter "uma existência melhor do que a maioria das pessoas", graças aos esforços de sua mãe após o drama da guerra e seu nascimento.

Salvos pelo calendário

Os três nasceram na primavera (hemisfério norte) de 1945, depois que suas mães foram deportadas grávidas. Florence e Mark eram poloneses e Hana tchecoslovaca.

Florence nasceu em 24 de março em Bergen Belsen e Hana em 12 de abril em Freiberg, dois campos a menos de 400 quilômetros um do outro na Alemanha. Mark nunca soube a data exata de sua chegada ao mundo, entre os dias 18 e 21 de abril, em um trem de carga que estava indo para o campo de Mauthausen, na atual Áustria.

Três bebês de sorte, três pequenas luzes nas cinzas de seis milhões de judeus vítimas do Holocausto.
Florence, Hana e Mark têm o mesmo olhar sério e inteligente, forjado em total adversidade. São 20 anos mais jovens que a maioria dos sobreviventes.

Qual a principal razão pela qual escaparam da morte? O calendário. A partir do verão de 1944, as tropas soviéticas avançavam e libertavam os campos de concentração, um por um. O Exército Vermelho chegou a Auschwitz no final de janeiro de 1945.

Nos outros campos, entre pânico e desorganização, o comando nazista sabia que os aliados estavam próximos. Muitos mudaram de lado.

Em Freiberg, "quando descobriram que minha mãe iria dar à luz, os guardas trouxeram para ela um recipiente de água quente", conta Hana Berger Moran, que usa um discreto colar de pérolas e um xale no pescoço.

"Nasci debaixo de uma mesa, na fábrica de aviação onde minha mãe trabalhava, na frente de todos. Pesava apenas um quilo e seiscentos gramas. Minha mãe pesava trinta e cinco", lembra.

Dois dias após o parto, a bebê e a mãe foram para Mauthausen de trem. Foi lá que o nascimento de Hana foi declarado. A bordo do trem em que estavam, os alemães amontoaram pelo menos 2 mil mulheres. Planejavam matá-las sem deixar rasto quando chegassem a Mauthausen.

"Mulheres-esqueleto grávidas"

O comboio percorreu o trajeto de 14 a 29 de abril. Muitas deportadas deram à luz durante a viagem. Horrorizado, o chefe de uma estação de trânsito contou aos historiadores, que conservaram seu testemunho, a horrível visão de "mulheres-esqueleto" grávidas.

Esse funcionário ofereceu roupas aos três bebês que nasceram durante a viagem, além de comida para as mães. Entre os recém-nascidos estava Mark Olsky.

"Em Mauthausen, minha mãe declarou que eu nasci em 20 de abril, embora não soubesse exatamente a data do parto. É o dia do nascimento de Hitler. Ela pensou que isso amoleceria as SS", diz Mark.

A mãe de Florence também foi ousada quando, ao ver que a bolsa d'água havia estourado, pediu a uma guarda um cobertor para o futuro bebê.

Em 2005, a Assembleia Geral das Nações Unidas determinou que o dia 27 de Janeiro seria o Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto, celebrado anualmente. Esta data foi escolhida por marcar o dia de 1945 em que o Exército Soviético libertou o maior campo de concentração nazi, Auschwitz-Birkenau, na Polônia(Foto: Yad vashem / Reprodução)
Foto: Yad vashem / Reprodução Em 2005, a Assembleia Geral das Nações Unidas determinou que o dia 27 de Janeiro seria o Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto, celebrado anualmente. Esta data foi escolhida por marcar o dia de 1945 em que o Exército Soviético libertou o maior campo de concentração nazi, Auschwitz-Birkenau, na Polônia

"Ela pensou que meteriam uma bala em sua cabeça e que tudo terminaria. Mas essa mulher calmamente abriu sua bolsa e deu-lhe um maço de cigarros. Disse que com isso conseguiria tudo o que precisava no campo".

Ao liberar Bergen Belsen em 15 de abril e Mauthausen em 5 de maio, os aliados descobriram estupefatos bebês raquíticos, embrulhados em jornais, mamando seios famélicos. Lá, cuidaram de Florence, Hana, Mark e outros, aqueles pequenos símbolos de uma vitória sobre o horror.

"Tinha vergonha"

Os recém-nascidos estavam a salvo, mas como iriam viver depois de chegar ao mundo na sujeira, de pais saturados com seus próprios traumas? "Toda a minha vida, dia e noite, vivi o Holocausto", diz Florence Schulmann, de lindos olhos verdes e costas curvadas enquanto vasculha a caixa onde guarda fotos e documentos administrativos.

Florence descreve uma infância opressiva. "Em casa, a atmosfera era pesada, e meus pais me mantiveram em um casulo. Se tossia, corríamos para o médico", lamenta.

Antes da deportação, seu pai e sua mãe haviam sobrevivido às atrocidades do gueto de Lodz na Polônia. Seu filho foi arrancado de seus braços e enviado para uma câmara de gás. Ele tinha 3 anos de idade.

"Minha infância foi sufocante, tinha vergonha. Me diziam: o que sua mãe fez para fazer você sobreviver?", conta ela, enquanto olha esporadicamente para a I24, a rede de notícias israelense em francês.

Quando adolescente, visitou uma amiga de sua mãe em Tel Aviv. "Essa mulher abriu a janela e reuniu todos os habitantes do bairro. Havia filas de pessoas que vinham tocar em mim, o milagre", relata.

Florence e Hana sentem o peso de seu segredo à medida que envelhecem. Mark se sente bem cercado, mas mantém a impressão de ser "único no mundo" com sua história.

O suplício dos recém-nascidos

Holocausto é o nome que se dá para o genocídio cometido pelos nazistas ao longo da Segunda Guerra Mundial e que vitimou aproximadamente seis milhões de pessoas
Foto: Yad vashem / Reprodução
Holocausto é o nome que se dá para o genocídio cometido pelos nazistas ao longo da Segunda Guerra Mundial e que vitimou aproximadamente seis milhões de pessoas

O assunto dos bebês nos campos de concentração ainda é pouco estudado pelos historiadores. "A pesquisa é rudimentar", comenta Diana Gring, gerente de documentação do Bergen Belsen, que lista cerca de 200 nascimentos.

Em um cenário marcado pela destruição de registros e pelo desaparecimento de corpos, Gring ressalta que "não sabemos quantas crianças no total nasceram em todos os campos".

O jornalista Alwin Meyer, que dedicou um livro aos bebês de Auschwitz, menciona "milhares". Após a guerra, duas parteiras deportadas que retornaram deste apocalipse descreveram os maus-tratos e o infanticídio generalizado que tentavam evitar, na maioria das vezes sem sucesso.

Algumas deportadas grávidas afirmaram ter sido forçadas a assinar um formulário autorizando o Terceiro Reich a matar seu filho após o nascimento, segundo a antropóloga Staci Jill Rosenthal, uma das raras figuras acadêmicas que estudaram o assunto.

Sabe-se que algumas crianças cujas características físicas correspondiam aos critérios racistas arianos foram retiradas dos campos e adotadas por famílias alemãs. Outras foram usadas como moeda de troca contra prisioneiros nazistas mantidos no Ocidente ou em países neutros.

Mas a maioria morreu, algumas depois de ter servido para experimentos do médico nazista Josef Mengele.
Uma sobrevivente contou ao documentarista francês Claude Lanzmann como o oficial enfaixou seus seios para ver quanto tempo sua filhinha poderia sobreviver sem leite. Todos os dias ela era obrigada a acompanhar a agonia.

Desfrutar a vida

"Meus pais saíram daquela escuridão completamente traumatizados, nunca mais a mencionaram", diz Schulmann.

O pai de Hana não sobreviveu e, depois de se tornar viúva, sua mãe voltou a morar em Bratislava. "Não falávamos sobre isso, era impossível. A Tchecoslováquia era comunista", diz.

Na década de 1960, já adulta, Hana migrou para Israel e depois para os Estados Unidos. Após a libertação dos campos, Mark e sua mãe permaneceram na Alemanha por quatro anos, o único país que não os "rejeitou", antes de se estabelecerem, como Hana, em Israel em 1959 e depois nos Estados Unidos.

Sua mãe também não viu o marido voltar. "Ela fez de tudo para tornar minha infância o mais normal possível", afirma Mark.

Como superar a dor? Hana Berger Moran faz uma pausa. "Você tem que rir", diz. "É a melhor vingança. Sei que às vezes surpreende as pessoas quando digo isso, mas me divirto, desfruto a vida. Caso contrário, digo a mim mesma que eles venceram".

E, no entanto, os três sobreviventes assistem o aumento do antissemitismo em seus respectivos países.
Segundo um relatório divulgado em maio pelo Congresso Judaico Europeu, a rejeição de judeus está em ascensão. "Eu dava por garantida a segurança, mas não há mais garantia", diz Olsky.

Uma pesquisa da Schoen Consulting publicada em janeiro revela que 69% dos franceses com menos de 38 anos ignoram o número de judeus mortos durante o Holocausto.

Reuven Rivlin, o presidente israelense, quer que o mundo "pense em como transmitir a memória do Holocausto às gerações que viverão em um planeta sem sobreviventes". "Não há nada mais forte do que ouvi-los narrar o que eles passaram", garante Bernhard Mühleder, responsável pelo conteúdo educacional do museu Mauthausen.

Combater o esquecimento

Combatentes contra o esquecimento, os "bebês dos campo" gravaram sua história em vídeo.  Até Florence, que sempre teve grande dificuldade em conversar sobre o assunto com a filha e os netos, decidiu fazer isso muito recentemente "para que os historiadores não possam questionar minha versão", diz enquanto mantém as fotos no baú.

Depois de uma visita a Bergen Belsen há alguns anos, as autoridades alemãs entregaram sua certidão de nascimento, que ela considera "um presente inestimável".

No memorial de Mauthausen está exibido um minúsculo vestido feito para Hana com pedaços de pano nos primeiros dias de sua vida pelos colegas de sua mãe. Esse vestido tem muito impacto nas crianças que visitam o local.

Berger Moran e Olsky não estiveram na Áustria, como haviam planejado, para participar das comemorações do 75º aniversário da libertação do campo de Mauthausen em 10 de maio. Pela primeira vez desde 1946, a reunião anual não ocorrerá devido à pandemia de coronavírus e será substituída por uma cerimônia virtual, como um sinal de que os tempos estão mudando.

Os filhos e netos de Florence, Mark e Hana, estão se preparando para assumir o papel de retransmitir a história.

"Logo, não haverá mais nenhum de nós na terra, então é melhor transmitirmos a mensagem", diz Hana.

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