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Um sobrevivente de Auschwitz que aportou no Brasil
Reportagem Seriada

Um sobrevivente de Auschwitz que aportou no Brasil

O POVO conversou com Aleksander Henryk Laks, que resistiu à trágica experiência no campo de concentração de Auschwitz. Polonês naturalizado brasileiro, ele narrou o horror vivido no Holocausto e explicou o porquê de ainda ser preciso lembrar das histórias daquele período sombrio
Episódio 8

Um sobrevivente de Auschwitz que aportou no Brasil

O POVO conversou com Aleksander Henryk Laks, que resistiu à trágica experiência no campo de concentração de Auschwitz. Polonês naturalizado brasileiro, ele narrou o horror vivido no Holocausto e explicou o porquê de ainda ser preciso lembrar das histórias daquele período sombrio
Episódio 8
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Os horrores de um dos períodos mais sombrios da história da humanidade não podem deixar de estar presentes de lembrança. Esse é o cerne do pensamento de Aleksander Henryk Laks, polonês naturalizado brasileiro que sobreviveu aos horrores do campo de extermínio de Auschwitz.

Em entrevista às "Páginas azuis" do O POVO, Laks relembrou do período vivido por ele no antes, durante e depois da Segunda Guerra Mundial, quando esteve sob os poderes dos nazistas alemães. A entrevista à jornalista Raphaelle Batista oi publicada em 30 de agosto de 2013  

Falar para não esquecer

O senhor que encontro na porta da livraria deve medir pouco mais de 1,70m. Ele usa óculos e veste um elegante suspensório, daqueles que raramente se vê nos dias de hoje. É apoiado por uma bengala e tem o aspecto de avô carinhoso, embora menos pelos 87 anos e mais pela ternura que preserva.

Logo somos apresentados. Ele se chama Aleksander Henryk Laks e costuma ser definido como “o sobrevivente do Holocausto”. Para mim e a repórter fotográfica Sara Maia, ele é a própria história.

Mas Laks não faz cerimônia, não quer ser tratado com gravidade. Tem um sorriso doce e consegue lançar para a vida um olhar generoso. É por isso que, tendo passado seis anos em Auschwitz, o maior campo de concentração nazista, na Polônia, ele gosta de ressaltar palavras como amor, respeito, verdade, liberdade. Confira a entrevista.

O POVO - Algumas pessoas têm como método de superação não falar sobre o que viveram de mais doloroso. O senhor, ao contrário, fala bastante sobre o que passou no Holocausto. Essa é a sua fórmula para superar?
Aleksander Laks - Posso dizer que sou um dos poucos que, de fato, superei. Geralmente as pessoas são mesmo muito deprimidas, até hoje, e com razão. Então a maioria não fala. Porque é muito doloroso mesmo, eu sei por mim.

Eu não faço palestra, trago o meu testemunho. Mas também não falo pra dizer: coitadinho de mim, sofri tanto. Nada disso. No final trago sempre uma mensagem de vida, de amizade, de paz. E é justamente isso que faço pra não deixar esquecer.

Quantas vezes fiquei com a boca seca falando de uma passagem em que vi uma criança morrer de sede num vagão do trem indo do gueto de Lodz para Auschwitz. Os gritos eram tão pavorosos. Quando falo, revivo. Escrevi dois livros com o mesmo intuito: pra não deixar esquecer e nunca mais se repetir com ninguém (enfatiza).

 

OP - Como era sua vida antes da perseguição nazista?
Aleksander – Eu era filho único, muito mimadinho, criado numa família cheia de amor. Minha mãe morreu quando eu tinha quatro anos. Meu pai casou de novo.

Hoje, quando falo da minha mãe, não falo da biológica. Sempre fui muito bem tratado, foi uma alegria, e isso durou até os 11 anos. Aqui minha família seria classe média, lá era classe média alta. E estava tudo correndo normalmente, minha mãe não trabalhava, era do lar, e eu estava na escola pública lá. Tinha muitos amigos, judeus e não judeus.

OP – A partir de que momento a ameaça nazista começou a ser sentida?
Aleksander - Correu tudo normalmente até 1º de setembro de 1939 (início da invasão da Polônia pelas forças armadas alemãs). Nós sabíamos, antes, que os judeus estavam sendo perseguidos na Alemanha, mas ninguém se interessava por isso, nem os judeus, porque afinal eram alemães – o que acho errado. Não era pra ter acontecido, mas ninguém protestava.

Meus pais estavam preocupados. A Polônia não estava preparada, como o mundo inteiro não estava preparado, para os alemães. Na cidade de Lodz (na região central da Polônia) havia muitos alemães e descendentes de alemães, então eles ocuparam e mudaram os nomes da cidade e do Estado. E fomos regidos pelas leis racistas de Nuremberg (cidade alemã onde aconteceu o congresso nazista, em 1935, que estabeleceu a perseguição aos judeus e a outras minorias).

Fomos logo avisados que tínhamos de usar uma estrela amarela, uma na frente e outra nas costas do paletó, pra diferenciar do resto das pessoas. Pegaram judeus para limpar as ruas e no final mandavam cavar uma vala, tirar a roupa, dançar em cima e cantar canções litúrgicas. Sem roupa, só de cueca.

O pior é que muitos e muitos não voltavam para casa. Meu pai tinha medo de sair de casa, de ficar na fila pra comprar pão. Eu ainda não tinha 12 anos e por isso não fui obrigado a usar a estrela amarela. Logo eles começaram a fazer guetos.

Na Idade Média, a Igreja Católica decretou que judeus não podiam morar junto com cristãos. Foi designado um pedaço da cidade e eles tinham de morar lá, era o que se chamava gueto. Mas, com o tempo, a Igreja ficou mais tolerante, veio a Revolução Francesa, o Iluminismo e isso acabou. Os nazistas trouxeram a Idade Média para o século XXI.

Parte do currículo de Aleksander Henryk Laks(Foto: Sara Maia)
Foto: Sara Maia Parte do currículo de Aleksander Henryk Laks

OP– De que maneira foi se dando a mudança após a ocupação alemã?
Aleksander - Comecei a sentir essa mudança quando foi feito o gueto. Aí os outros começaram a me ver entrando no gueto. O gueto comportava, apertado, 25 mil pessoas. Fomos postos 165 mil.

Muitos ao relento, num quarto ficavam cinco, seis famílias, era um horror. Não tinha comida também. Não tínhamos nada. Quando fomos para o gueto, eu puxava uma carrocinha e usava ainda as minhas roupas.

Em vez de a população dizer ‘coitado’ ou ter algum sentimento, me diziam: “Ei, judeu, me joga teu sapato já que vai morrer de qualquer maneira”.

OP – Como era a rotina no gueto?
Aleksander – No primeiro mês do gueto, de doenças e de fome morreram cinco mil pessoas. Os corpos ficavam espalhados na rua. Disseram que iam fazer fábricas e oficinas, dariam matéria-prima e mandariam comida.

Nós, cercados, trabalhando de sol a sol, ganhávamos 1 kg de pão para cinco dias, depois passou para seis (dias). Mas não era esse pão que nós comemos hoje de manhã, não. Era um pão preto, a casca era tostada, e por dentro havia uma lama, diziam que estava misturada com serragem.

Tínhamos sorte quando a sopa, que seria de legumes, vinha com casca de batata. A água era preta. É provado que com essa dieta uma pessoa consegue viver 12 a 13 meses. Eu vivi cinco anos.

Todos os meus parentes, fora meus pais, foram levados para a morte no primeiro campo de extermínio da humanidade, o de Chelmno (a 50 Km de Lodz). O gueto foi aberto em 1º de maio de 1940 e durou até agosto de 1944.

OP– Em que momento o senhor foi mandado para Auschwitz?
Aleksander - Deixaram de dar comida e disseram que quem se apresentasse ia ganhar 1 Kg de pão. Nós ficamos escondidos e conforme eles deportavam ia diminuindo cada vez mais o gueto. Mas uma semana depois, havia acabado a comida, meu pai disse para nos entregarmos senão morreríamos de fome. Então fomos levados até Auschwitz.

No meio do caminho já tinha mortos também. Mas ganhamos de fato 1 kg de pão. Eu estava com seis dias de vida na minha mão. Hoje eu não vejo a riqueza que pode ser comparada com aquele quilo de pão.

Antes eles disseram que ninguém ia ser liquidado, que todos seríamos levados para a Alemanha e lá o gueto ia ser como o outro, só que a diferença era de que lá teria mais comida, higiene e íamos ganhar um salário.

Sabíamos que eles estavam mentindo, mas ninguém sabia de Auschwitz, ninguém sabia de nada. Meus pais foram separados quando chegamos lá. Eu pensei até que fosse uma fábrica, porque vi as chaminés, fiquei satisfeito porque pensava que tínhamos chegado numa metalúrgica.

Quando vi até disse pro meu pai: vamos dizer que somos metalúrgicos, vamos trabalhar. Abriram a porta e avisaram, num alto falante: mulheres e crianças para o lado direito, homens para o esquerdo.

Meu pai me segurou forte para não nos perdermos um do outro. Minha mãe foi para onde lhe ordenaram. Ela foi assassinada numa câmara de gás. Foi a última vez que a vi.

 

OP – Qual episódio vivido em Auschwitz o senhor nunca vai esquecer?
Aleksander – O que eu vi lá, quando cheguei em Auschwitz, a pessoa pode viver mil anos e não vai esquecer. Arrancavam crianças do colo das mães e jogavam contra a parede. Nas mulheres grávidas enfiavam baionetas.

Um dia estava na fila para pegar a sopa de cascas de batata e tinha um caco – cacos eram criminosos condenados à morte que, em vez de ser executados, eram mandados para campos de concentração e se tornavam proeminentes.

Tinham prazer de matar e espancar pessoas. Um deles me olhou e disse que eu já tinha comido, eu ia dizer alguma coisa e ele falou: cala a boca, você está em Auschwitz. E disse que ia acabar comigo.

Eu estava sendo levado para uma rua chamada “Céu” onde eram executadas as pessoas. Meu pai me viu passando para lá. Mas, quando cheguei, outro caco viu e perguntou para onde ele estava me levando.

Disse que não valia a pena perder tempo comigo, convenceu o outro caco a me soltar e me deu um pontapé. Quando encontrei meu pai, ele estava chorando, tinha certeza que eu estava morto.

OP – A que o senhor credita ter conseguido escapar?
Aleksander – Não sei por que, mas sei pra quê. Para contar, só para isso. Uns dizem que foi Deus que botou a mão em cima de mim, outros que foi o acaso, mas eu não sei.

OP – O senhor já sentiu culpa por ter sobrevivido?
Aleksander – Sim, logo depois da libertação. Quando soube da abrangência, porque eu via sempre pouquinho, pouquinho, pouquinho, mas quando soube o que aconteceu, disse: Por que eu? Como? Pra quê? Hoje eu sei. Mas logo naquela hora, não.

OP – Como superou essa culpa?
Aleksander – Quando vim para o Brasil comecei a trabalhar, depois conheci a minha mulher, tive filhos. A vida ganhou sentido. Depois que comecei a contar ganhou mais sentido ainda.

Na Marcha de Morte (deslocamento de milhões de judeus entre os campos de concentração nazistas, no fim da Segunda Guerra Mundial), nós éramos 800 judeus andando sem rumo na neve, sem roupa, só de pijama e uma camisa.

De noite ganhávamos 3 ou 4 batatas cozidas. Quem saía da formação era fuzilado, quem ficava para trás era fuzilado, só se ouvia tiros e tiros e tiros. Em pouco tempo fomos reduzidas a 80 pessoas. Dormíamos ao relento.

Nesse caminho, meu pai me disse: “Se não formos fuzilados, talvez você sobreviva, você é novo. Me prometa que, se sobreviver, você não vai deixar esquecer o que fizeram conosco, como o homem pode descer tão baixo a ponto de fazer isso com outro homem”. Eu prometi a ele.

Na mesma hora, ele disse que ia sentar porque as pernas não o carregavam mais. Quem sentava era fuzilado. E eu disse que ele tinha de andar, senão eu sentaria e morreria junto com ele. Ele começou a fraquejar, mas quem estava ao nosso lado perguntou ao meu pai se ele queria que seu filho sobrevivesse, então disse pra meu pai se apoiar nele.

Meu pai relutou porque iam morrer os dois, mas o homem insistiu muito e assim nós conseguimos chegar à estação de trem. Quando o comandante mandou entrar, fomos para outro campo. E esse foi pior que Auschwitz. Se existe alguma coisa pior, foi Flossenbürg (na Alemanha).

 

OP – Por quê?
Aleksander – Porque até aí tinha meu pai. Lá, nesse campo, parecia que você tinha entrado num manicômio, ninguém se conhecia, as pessoas não se olhavam, não tinha comida. Tinha um bloco, um galpão usado como latrina.

As pessoas não entravam lá para fazer necessidade, mas pra ficar um pouco de tempo sozinhas. Quando os nazistas achavam essas pessoas, espancavam até a morte. Um dia eu vi pessoas correndo de lá e vi meu pai jogado no chão, ensanguentado.

Cheguei perto dele, ele me reconheceu, falou meu nome, mas meu pai já estava morto. Lá não podia se mexer com um cadáver, nem podia pedir às pessoas para mexer porque elas sabiam que também podiam morrer por isso, então deixei meu pai ali.

Ele foi jogado entre os mortos e se juntou a seis milhões de judeus exterminados durante a Guerra. Meu pai tinha 45 anos. Era uma pessoa boa, inteligente, bonita. Não pôde viver porque era judeu.

OP – Como o senhor foi libertado?
Aleksander - Veio uma ordem de que nenhum prisioneiro podia ser encontrado vivo pelos Aliados. Então, levaram a mim e a outros para sermos afogados num rio perto da fronteira suíça. No caminho, fomos bombardeados. Fomos libertados pelos franceses, que deixaram a gente lá, como se fôssemos lixo.

Só queriam saber se havia franceses, tinha três ou quatro, que eles levaram. Tinha um vagão com roupas dos soldados, então tirei de mim aquele pijama, estava com a cabeça cheia de piolho. Sentei no chão, encostei minhas costas e fechei meus olhos. Estava morrendo. Não tinha fome, não tinha sede, não tinha medo principalmente.

Apareceu alguém falando comigo e me deu uma caneca de leite. Eu pesava 28 quilos com 17 anos, não comia nem bebia há não sei quanto tempo. A proteína daquele leite podia ter me matado, mas foi justamente o contrário, me senti melhor. Até hoje não sei quem é esse anjo.

Quando saí, vi as pessoas correndo e gritando, perguntei por que aquilo e disseram que o exército tinha fugido. Eles tinham levado minha adolescência, fiquei sem pais, sem amigos, sem dinheiro, sem roupa, sem pátria e, pior, sem perspectiva para o futuro. Mas assim mesmo sobrevivi.

 

 

OP - Como foi o recomeço?
Aleksander – Virei garoto de rua. A Alemanha estava dividida em quatro zonas: americana, inglesa, francesa e russa. Para comer, pedia. Para tomar banho, só de vez em quando. Com o tempo, fui para a zona americana, e lá era bom. Tinha higiene, comida. Mandavam listas de outros campos de refugiados e, às vezes, tinha quem encontrasse um primo, um irmão, um amigo. Eu não encontrei ninguém.

OP – Como o senhor chegou ao Brasil?
Aleksander - Quando começaram a fechar os campos, fui para os Estados Unidos, passei um tempo lá e lembrei da irmã que meu pai havia falado que morava no Rio de Janeiro. Então escrevi uma carta e consegui fazer chegar a ela, por acaso. Ela me mandou a passagem e eu vim.

Foi amor à primeira vista pelo Rio de Janeiro, pelo povo brasileiro. Queria estudar, mas não tinha como. Queria ser médico, sempre quis, mas não deu. Hoje tenho um filho médico. Trabalhei com comércio, casei, tenho dois filhos e três netos.

OP - Como o senhor vê o revisionismo histórico que tenta negar a existência do Holocausto?
Aleksander – É muito preocupante. Mas o jeito é só não deixar esquecer e falar a verdade. Esses que negam sabem que mentem, mas os que acreditam neles precisam ser chamados atenção para saber o que aconteceu. Quem não acreditar pode ir a Auschwitz, a Flossenbürg, que estão lá, as câmaras de gás estão lá. É só mostrar, principalmente para os jovens.

OP – Entre esses jovens há alguns que se participam de grupos neonazistas, que existem inclusive no Brasil. Muitos deles se apoiam em direitos garantidos pela democracia, como a liberdade de expressão. O que o senhor pensa a respeito disso?
Aleksander – Como disse Winston Churchill, a democracia é uma das piores formas de governo, mas não há uma melhor. Com a democracia há espaço para as pessoas estarem erradas ou não. O caminho é só um, levar sempre a verdade. Não deixar esquecer.

Sempre se deve falar em amor, em respeito às pessoas e se deve lembrar a elas que se agora são nazistas é porque têm liberdade de ser. Naquela época ninguém tinha liberdade de ser o que quisesse.

OP – O que significa o Brasil, ser brasileiro, para o senhor?
Aleksander – É muita coisa. Quem nasceu brasileiro não tem ideia, mas quem adota o Brasil como pátria tem muito amor por este país. Eu não saberia dizer ‘isto é Brasil’. O povo brasileiro é um dos melhores do mundo.

OP – O senhor conseguiu perdoar os nazistas?
Aleksander – Não. Eu não tenho ódio pelos alemães, não posso condenar filhos, netos e bisnetos pelo que os pais e avôs fizeram. Se os alemães tivessem ganhado a guerra, hoje todos seriam nazistas. É uma hipótese. Mas não ganharam, não são.

Quando fui pra Alemanha, me perguntaram como consigo falar sem ódio, sem raiva sobre o que passei. E eu disse: é porque não sou nazista. Se eu tivesse ódio, raiva, seria nazista. Mas eu sou judeu.

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