O mergulho mais profundo nas origens do O Quinze talvez nos leve às excursões que Rachel de Queiroz, menina de quatro anos, fazia ao campo de refugiados onde se amontoavam os flagelados da seca de 1915, no bairro do Alagadiço, em Fortaleza. Ali pertinho, a família possuía uma chácara e, frequentemente, Rachel acompanhava a mãe, a avó e as tias nas visitas aos refugiados, que sobreviviam com os alimentos levados pelas almas caridosas.
O local, chamado de “campo de concentração” (o termo ainda não havia sido contaminado pela carga de horror que lhe emprestaria o regime nazista), era uma súmula da tragédia que se abate periodicamente sobre o Sertão nordestino, uma vitrina onde se perfilavam a fome, a desesperança, o esfacelamento das famílias e da dignidade. O quadro – que só recentemente se transformou, com o advento das políticas de distribuição de renda e combate à miséria – ficou impresso na mente da menina e só reavivou quando, aos 19 anos, ela se pôs a escrever o pequeno romance, mais tarde consagrado como obra prima, marco de nossa Literatura regionalista.
A gênese de O Quinze também brota, é claro, de outras fontes. Uma delas é a cultura da seca, tão presente no Nordeste rural e tão reproduzida na arte dos cordelistas, dos violeiros, dos contadores de “causos”. Este foi o universo de Rachel em sua infância e adolescência, vividas, boa parte do tempo, na fazenda do pai, em Quixadá.
Em artigo publicado pela Revista da Academia Cearense de Letras (ACL) – “Como foi escrito O Quinze”) – em 1976, Rachel confessa o quanto esse ambiente a influenciou: “...a tradição local era tão forte, as lembranças em todos tão presente, os relatos repetidos com tanta frequência, as referências locais tão cotidianas...” Eram os tempos do fatalismo, quando o sertanejo se dobrava ao flagelo porque essa era uma vontade divina.
Outra peça no tabuleiro da gênese, e que responde pela literariedade do texto, é a precoce bagagem intelectual da escritora, suas leituras, seu ambiente familiar emoldurado pelos livros e modelado pela mãe, que colocou nas mãos da garota de 12 anos A cidade e as serras, de Eça de Queiroz, em substituição aos romances adocicados prescritos pelas freiras do colégio. Quando começou a escrever em jornal, aos 16, ela já revelava perfeita familiaridade com o universo literário.
Esse background familiar também pesaria, na forma e conteúdo da narrativa, pelo referencial que seus pais encarnavam atuando indiretamente (e mesmo involuntariamente) como mentores literários. No mesmo artigo para a Revista da ACL, Rachel confessa: “Na verdade, quando escrevi O Quinze, eu já era profissional – trabalhava em jornal e já tinha feito até um romancinho em folhetim. Na minha casa, como eu disse, só se lia coisa boa, de modo que eu não ousaria escrever bobagem, sentimentalismos, essas coisas, porque sabia que teria a censura severa de meus familiares todos.”
Por fim, uma congestão pulmonar se somaria a essa bagagem pretérita como causa deflagradora do romance. Numa entrevista aos Cadernos de Literatura Brasileira, do Instituto Moreira Sales, em 1997, a escritora informa: “O Quinze foi escrito em circunstâncias especiais. Eu estava doente, uma congestão pulmonar, e minha mãe se apavorou. Me impôs um regime horrível, deitar às nove da noite e acordar bem cedo. Nós morávamos numa casa de campo, sem luz elétrica. Um lampião ficava aceso a noite inteira. Eu não tinha sono às nove. Resolvi então aproveitar a luz e, deitada de bruços, comecei a escrever, a lápis, num caderno, o romance.”
O objetivo dessa corrente investigativa, como diz Almuth Grésillon (Alguns pontos sobre a história da Crítica Genética, Editora USP, 1991) “é explicar por quais processos de invenção, de escritura e de transformação, um projeto tornou-se esse texto ao qual a instituição conferirá ou não o estatuto de obra literária”. O caderno de Rachel, onde o lápis e a caneta se alternam, derramando as palavras, frases e parágrafos, para depois rasurá-los, na busca febril da forma idealizada pela autora, é um documento essencial, a prova material de que a boa Literatura é feita não apenas de inspiração, mas, também, de muita transpiração.
Italo Gurgel é pesquisador da obra
de Rachel de Queiroz e especialista
em crítica genética literária.