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A graça do menino
Reportagem Seriada

A graça do menino

A graça do menino

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Eram sete filhos. As quatro mulheres com nome à francesa: Etienete, Mariete, Arizete e Ivete. Os homens atendiam por Jesuíno, José e Paulo - este em homenagem ao pai. A família Aragão, que tinha como matriarca dona Dinorá, estava completa naquelas primeiras décadas do século 20, na abrasadora Sobral, a 233Km de Fortaleza. Ela, professora. Ele, representante comercial, bancário, poeta, fundador de colégio, professor -- “e sem nunca ter alisado um banco de escola!”, diria mais tarde o protagonista desta história.

Prole quase criada até o calendário marcar 13 de janeiro de 1935. Nesse dia, ele chegou. Antônio Renato Aragão, o último dos oito filhos, temporão, caçula cheio de mimos. O choro do recém-nascido rompeu o silêncio da casa na rua principal da cidade, com vista para o Arco de Nossa Senhora de Fátima, e alterou a ordem das coisas.

“Ninguém nem esperava”, diz Ivete, 86 anos, única viva entre as irmãs. “Quando ele nasceu, até umas tias, irmãs da mamãe, vieram pra cuidar dele. Foi muito babado!.” Ainda havia Teresa, a “mãe preta”, que cuidava do garoto como se fosse seu. A brincadeira das meninas ficou até mais divertida. Elas tinham um bebê de verdade para dar banho, passar perfume, passear. “Brincavam com ele como se fosse um boneco, as quatro irmãs eram de uma paparicagem doida”, conta o sobrinho Paulo Orlando, 66.

Arizete, a Tinha, como ele a chamava, era a irmã mais apegada. Uma das muitas mães de Renato.

Dona Ivete Aragão, irmã de Renato, relembra as graças do garoto em Sobral(Foto: Edimar Soares )
Foto: Edimar Soares Dona Ivete Aragão, irmã de Renato, relembra as graças do garoto em Sobral

“A gente brincava de quatro cantos, aquelas brincadeiras do tempo antigo, e ela sempre queria ganhar, mas tinha de ser com ele. Corria com ele pendurado no espinhaço e ainda ganhava, a danada!”, Ivete resgata. O mimo era tanto que o menino, apelidado de Angu por chorar demais, mamou até os 5 anos.

Travessuras

A regra na família era estudar. O pai, que se alfabetizara sozinho, à luz das lamparinas, não admitia filho preguiçoso na escola. “Ele era estudioso, mas, assim, também era muito brincalhão”, entrega a irmã. Renato tinha o apoio da mãe, que achava graça nas peripécias do filho. “Pronto, era o que ele queria”, lembra Ivete, soltando a risada.

Sem o marido saber, dona Dinorá comprava gibis para os meninos esconderem dentro dos livros de estudo e lerem sem recriminação. Uma pequena travessura de mãe, gaiatice presente na genética, repartida entre os oito. Cheia de tiradas, Ivete confirma a veia bem humorada da família e conta que o mais engraçado não é o irmão famoso. Zé, o mais velho, supera. “Renato veio ensinado dos outros.”

Certidão de nascimento de Renato Aragão(Foto: Edimar Soares)
Foto: Edimar Soares Certidão de nascimento de Renato Aragão

Ary Sherlock era um dos colegas da escolinha onde a mãe de Renato lecionava, numa sala colada à casa da família. O grande ator cearense, quase vizinho dos Aragão, morava na outra esquina da rua. Lembra ainda de como Renato se valia dos muitos irmãos para tirar vantagem nos jogos. “Eu era invejoso dele (Renato) porque ele tinha um bocado de irmão pra brincar e conseguir as coisas, e eu não tinha”, recorda Ary, 84. Anos mais tarde, eles se encontrariam em brincadeiras sérias na TV Ceará – Canal 2.

Renato, no entanto, era tímido. Só se soltava entre os seus. De menino, gostava mesmo de jogar bola nas praças da cidade e pular no rio Acaraú em tempos de cheia. Até os 11 anos, quando a família veio para a Capital, o palhaço tinha o pé na rua.

Casa do Riso

A chegada a Fortaleza não foi fácil. Paulo Aragão e dona Dinorá vieram para a capital cearense de mala, cuia e seis dos oito filhos. Os dois mais velhos rumaram para Rio de Janeiro e Parnaíba a fim de continuar os estudos. O acanhado Renato foi quem mais sentiu a mudança.

O primeiro desafio: a escola. No dia 28 de fevereiro de 1974, Renato mal completara 12 anos, o pai deu entrada no pedido de matrícula do caçula no colégio Lourenço Filho. Ali, o menino cursaria a 3ª série do antigo ginasial. Na ficha da escola, o primeiro endereço da família, na rua Major Facundo, nº 1.394. Pouco depois, eles se mudariam para a antiga Quintino Bocaiúva, hoje Gil Amora, onde a família se fixaria num terreno que tomava quase todo o quarteirão.

A casa onde Renato foi morar com Marta, a primeira mulher, ficava ao lado da casa dos pais, na antiga Quintino Bocaiúva(Foto: Edimar Soares/O POVO)
Foto: Edimar Soares/O POVO A casa onde Renato foi morar com Marta, a primeira mulher, ficava ao lado da casa dos pais, na antiga Quintino Bocaiúva

Renato não tinha facilidade para fazer amigos, mas era bom de futebol, e logo entrou para o time do colégio. Começava a amizade com Neudson Braga, que se estende até hoje. “A gente era amigo-irmão, eu vivia na casa dele, ele vivia na minha”, recorda-se o arquiteto de 79 anos. Renato não era mau aluno, mas também não passava muito da média. Escrevia poemas e tinha até um bom traço. Junto com o amigo, fazia desenhos para uma revista escrita à mão e distribuída na sala de aula.

Foi preciso o mar lhe conquistar o coração para que adotasse Fortaleza. Levado por um empregado que desbravara a cidade grande um pouco antes, o menino andava as ruas, tomava duas conduções, alugava calção, só para estar ali, todos os domingos, na Praia de Iracema. Era quando Renato ficava à vontade.

Ivete, a irmã mais velha de 86 anos, lembra que, aos bocados, ele se adaptou e voltou a aprontar. “Apareceu uma história, lá em Fortaleza, de que os ladrões estavam usando um anzol pra pescar roupas do varal alheio. Pois ele arranjou um anzol e puxou as cuecas do meu marido. Só que ele viu e gritou, assustado: ‘O ladrão, o ladrão!’. Foram uns gritos horríííveis! E era ele. A mamãe achou tanta graça! Aí eu dizia: ‘Mamãe, como é que você faz uma coisa dessa?’ Mas é porque foi engraçado mesmo. Ele era terrível.”

Nos fundos da casa que parecia sítio, com pés de cajueiro e manga, ele brincava de futebol e treinava contorcionismos.

Reprodução de foto do álbum de família de Paulo Orlando Chaves, sobrinho de Renato Aragão. Ele é o primeiro da (e) para (d), sentado ao lado de Renato. (Foto: Edimar Soares/O POVO)
Foto: Edimar Soares/O POVO Reprodução de foto do álbum de família de Paulo Orlando Chaves, sobrinho de Renato Aragão. Ele é o primeiro da (e) para (d), sentado ao lado de Renato.

Na adolescência, um hábito mudaria a vida de Renato: o cinema. Ao ver Oscarito em cena, apaixonou-se. “Ele ia cedo, entrava na primeira sessão e saía na última. Decorava aquelas falas todas, aí chegava na escola e fazia aquelas brincadeiras, mas só com os amigos. Ele não era do tipo exibido”, conta Neudson, que não conseguia acompanhá-lo nas idas ao Cine Majestic porque “ele ficava o dia inteiro”.

Renato passava férias no Interior. João Barbosa, 80, amigo daqueles tempos, lembra dos flertes na cidade. Eles ficavam na Praça São João esperando sinal das moças. Se sorrissem, podiam se aproximar. Os amigos, então, juntavam os instrumentos e se punham à janela das moças. Renato tocava violão e cantava. Nessa época, começou o namoro com Marta, a primeira mulher. Barbosa recorda: “Apenas ele era gaiato, cheio de mungango”.

Só aos 18, no Centro de Preparação de Oficiais da Reserva, Renato começou a fazer graça a sério. Escrevia e encenava esquetes para oficiais do Exército, que viviam mandando prender o soldado, mas que só conseguiam cair na gargalhada. A faculdade de Direito veio em seguida, mas o talento para o riso ficou guardado, à espera da hora certa de aparecer.

* Especial publicado no O POVO em 13 de janeiro de 2015

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