Logo O POVO+
Trabalhadores em situação de escravidão são resgatados de obra de shopping no Meireles
Reportagem Especial

Trabalhadores em situação de escravidão são resgatados de obra de shopping no Meireles

Foram lavrados 41 autos de infração. A empresa foi incluída na semana passada na lista suja do trabalho escravo, divulgada pelo Governo Federal

Trabalhadores em situação de escravidão são resgatados de obra de shopping no Meireles

Foram lavrados 41 autos de infração. A empresa foi incluída na semana passada na lista suja do trabalho escravo, divulgada pelo Governo Federal
Por

J. N. passa todas as noites no próprio local de trabalho: um espaço pequeno, infestado por ratos e coberto de materiais perigosos. O expediente começa cedo, por volta das 5h30min, quando o servente de pedreiro prepara o café da manhã dos colegas, em um fogão simples entre materiais de construção e as redes dos outros trabalhadores. Depois de lavar as louças e o ambiente, passa logo o trabalho pesado, que toca até as 19 horas, fechando quase 14 horas diárias. A empresa foi incluída na última edição da “Lista suja do trabalho escravo”, atualizada em 29 de julho pela Secretaria do Trabalho e Emprego do Ministério da Economia.

LEIA TAMBÉM | Trabalhadores sabiam que situação era irregular, mas se submetiam por necessidade

A cena descrita acima acontecia diariamente em pleno Meireles, coração do desenvolvimento econômico do Estado. A situação teria durado vários meses e foi desmontada em agosto do ano passado, quando fiscais do trabalho resgataram J. N. e outros cinco trabalhadores das condições análogas à escravidão.

Leia mais:

Radiologia da escravidão moderna no Ceará; Granja e Paracuru lideram

Maioria de trabalhadores em situação análoga à escravidão estavam na construção civil

A operação, que teve participação de cinco policiais federais, quatro auditores e do procurador do trabalho Carlos Holanda, lavrou 41 autos de infração. O canteiro de obras de um mall (pequeno shopping) de dois andares ficava na rua Pereira Valente 591, a menos de um quarteirão da Praça Portugal e um dos pontos mais nobres de Fortaleza. Normalmente associado ao luxo, o local significava algo bem diferente para os trabalhadores.

Mapa do local onde os trabalhadores escravos foram resgatados em Fortaleza, a poucos metros da Praça Portugal
Mapa do local onde os trabalhadores escravos foram resgatados em Fortaleza, a poucos metros da Praça Portugal

“O local era totalmente inapropriado, mal iluminado e em péssimas condições de higiene e limpeza (...) ali no canteiro de obras, no meio dos entulhos e material de construção, dormiam, acordavam, cozinhavam, alimentavam-se e trabalhavam sem segurança, sem privacidade, sem conforto, numa situação que aviltava a dignidade humana” diz relatório obtido pelo O POVO.

Ouvidos pelas autoridades, dois dos seis trabalhadores resgatados disseram que o grupo vinha do pequeno povoado de Santo Antônio do Pesqueiro, no município de Capistrano, a 120 quilômetros de Fortaleza. Um deles, de 58 anos e só a quarta série cumprida, disse que recebia R$ 350 por semana de trabalho no local e que outras pessoas trabalhavam na mesma situação.

 

“As circunstâncias inerentes à moradia, alimentação, higiene e a segurança no trabalho, asseguradas àqueles empregados não eram melhores que as dispensadas aos escravos da senzala”, continua o relatório da auditoria, assinado pelo fiscal Sérgio Carvalho de Santana. Como resultado da operação, os trabalhadores foram indenizados em R$ 45,7 mil.

Veja galeria de fotos das condições em que viviam os trabalhadores:

Clique na imagem para abrir a galeria

Ainda de acordo com autos de infração, todos os operários trabalhavam sem carteira assinada, equipamentos, direitos trabalhistas ou folgas, em jornadas muito superiores às permitidas pela legislação brasileira. As roupas e pertences eram penduradas em varais localizados no meio do local de trabalho, e o “banheiro” era apenas uma privada separada por uma telha improvisada.

A empresa Marques Engenharia Eireli, responsável pelo canteiro, foi inscrita no cadastro de empregadores flagrados com trabalho análogo à escravidão da Secretaria do Trabalho e Emprego (MTE) do Ministério da Economia.

O POVO tentou entrar em contato com Marques Engenharia Eireli, para ouvir a versão da empresa autuada sobre os fatos descritos pelos auditores do trabalho. Telefones e endereços cadastrados em listas telefônicas, no entanto, não estavam funcionando.

Procurada pela reportagem, a defesa da Marques Engenharia se recusou a falar sobre o caso pelo telefone. Depois, ao ser questionada sobre o endereço de seu escritório, se recusou a receber a equipe. “Trabalho escravo é um conceito que os senhores dão. Nós não concordamos com isso”, se limitou a dizer, afirmando que responde apenas à Justiça.

A classificação, no entanto, é apontada reiteradamente pelos auditores-fiscais do MTE em vários dos autos de infração contra a empresa, apontando conduta de "manter empregado trabalhando sob condições contrárias às disposições de proteção do trabalho, quer seja submetido a regime de trabalho forçado, quer seja reduzido à condição análoga à de escravo".

Segundo dados do Ministério Público do Trabalho, 598 trabalhadores foram resgatados de situação de trabalho forçado entre 2006 e 2018 no Ceará. No ano passado, foram 32 casos. Técnicos do MP, no entanto, destacam que a queda no número nos últimos anos pode ter relação também com os crescentes cortes na fiscalização desde o início da crise econômica.

O que você achou desse conteúdo?