J. N. passa todas as noites no próprio local de trabalho: um espaço pequeno, infestado por ratos e coberto de materiais perigosos. O expediente começa cedo, por volta das 5h30min, quando o servente de pedreiro prepara o café da manhã dos colegas, em um fogão simples entre materiais de construção e as redes dos outros trabalhadores. Depois de lavar as louças e o ambiente, passa logo o trabalho pesado, que toca até as 19 horas, fechando quase 14 horas diárias. A empresa foi incluída na última edição da “Lista suja do trabalho escravo”, atualizada em 29 de julho pela Secretaria do Trabalho e Emprego do Ministério da Economia.
A cena descrita acima acontecia diariamente em pleno Meireles, coração do desenvolvimento econômico do Estado. A situação teria durado vários meses e foi desmontada em agosto do ano passado, quando fiscais do trabalho resgataram J. N. e outros cinco trabalhadores das condições análogas à escravidão.
A operação, que teve participação de cinco policiais federais, quatro auditores e do procurador do trabalho Carlos Holanda, lavrou 41 autos de infração. O canteiro de obras de um mall (pequeno shopping) de dois andares ficava na rua Pereira Valente 591, a menos de um quarteirão da Praça Portugal e um dos pontos mais nobres de Fortaleza. Normalmente associado ao luxo, o local significava algo bem diferente para os trabalhadores.
“O local era totalmente inapropriado, mal iluminado e em péssimas condições de higiene e limpeza (...) ali no canteiro de obras, no meio dos entulhos e material de construção, dormiam, acordavam, cozinhavam, alimentavam-se e trabalhavam sem segurança, sem privacidade, sem conforto, numa situação que aviltava a dignidade humana” diz relatório obtido pelo O POVO.
Ouvidos pelas autoridades, dois dos seis trabalhadores resgatados disseram que o grupo vinha do pequeno povoado de Santo Antônio do Pesqueiro, no município de Capistrano, a 120 quilômetros de Fortaleza. Um deles, de 58 anos e só a quarta série cumprida, disse que recebia R$ 350 por semana de trabalho no local e que outras pessoas trabalhavam na mesma situação.
“As circunstâncias inerentes à moradia, alimentação, higiene e a segurança no trabalho, asseguradas àqueles empregados não eram melhores que as dispensadas aos escravos da senzala”, continua o relatório da auditoria, assinado pelo fiscal Sérgio Carvalho de Santana. Como resultado da operação, os trabalhadores foram indenizados em R$ 45,7 mil.
Veja galeria de fotos das condições em que viviam os trabalhadores:
Ainda de acordo com autos de infração, todos os operários trabalhavam sem carteira assinada, equipamentos, direitos trabalhistas ou folgas, em jornadas muito superiores às permitidas pela legislação brasileira. As roupas e pertences eram penduradas em varais localizados no meio do local de trabalho, e o “banheiro” era apenas uma privada separada por uma telha improvisada.
A empresa Marques Engenharia Eireli, responsável pelo canteiro, foi inscrita no cadastro de empregadores flagrados com trabalho análogo à escravidão da Secretaria do Trabalho e Emprego (MTE) do Ministério da Economia.
O POVO tentou entrar em contato com Marques Engenharia Eireli, para ouvir a versão da empresa autuada sobre os fatos descritos pelos auditores do trabalho. Telefones e endereços cadastrados em listas telefônicas, no entanto, não estavam funcionando.
Procurada pela reportagem, a defesa da Marques Engenharia se recusou a falar sobre o caso pelo telefone. Depois, ao ser questionada sobre o endereço de seu escritório, se recusou a receber a equipe. “Trabalho escravo é um conceito que os senhores dão. Nós não concordamos com isso”, se limitou a dizer, afirmando que responde apenas à Justiça.
A classificação, no entanto, é apontada reiteradamente pelos auditores-fiscais do MTE em vários dos autos de infração contra a empresa, apontando conduta de "manter empregado trabalhando sob condições contrárias às disposições de proteção do trabalho, quer seja submetido a regime de trabalho forçado, quer seja reduzido à condição análoga à de escravo".
Segundo dados do Ministério Público do Trabalho, 598 trabalhadores foram resgatados de situação de trabalho forçado entre 2006 e 2018 no Ceará. No ano passado, foram 32 casos. Técnicos do MP, no entanto, destacam que a queda no número nos últimos anos pode ter relação também com os crescentes cortes na fiscalização desde o início da crise econômica.
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