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Trabalhadores escravos sabiam que situação era irregular, mas se submetiam por necessidade
Reportagem Especial

Trabalhadores escravos sabiam que situação era irregular, mas se submetiam por necessidade

Depoimentos obtidos pelo O POVO revelam cotidiano de escravos urbanos no Meireles. Em depoimento a fiscais da SRT-CE, operários afirmaram ter ciência da precariedade da situação, mas que se submetiam às más condições "por precisão"

Trabalhadores escravos sabiam que situação era irregular, mas se submetiam por necessidade

Depoimentos obtidos pelo O POVO revelam cotidiano de escravos urbanos no Meireles. Em depoimento a fiscais da SRT-CE, operários afirmaram ter ciência da precariedade da situação, mas que se submetiam às más condições "por precisão"
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Resgatados de um canteiro de obras em pleno Meireles, operários que trabalhavam em condições análogas à escravidão diziam saber que estavam sofrendo violação de direitos. Em depoimento a fiscais da Superintendência Regional do Trabalho (SRT-CE), eles afirmaram ter ciência da precariedade da situação, mas que se submetiam às más condições “por precisão”.

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Em dois depoimentos obtidos pelo O POVO, J. R. N. S., de 58 anos, e J. P. A. L., 37, relatam com detalhes o dia a dia na obra da Pereira Valente, 591. Ambos moradores de um pequeno povoado do município de Capistrano, a 120 quilômetros de Fortaleza, eles contam que souberam da oportunidade através de parentes que moram na Capital.

“(Diz o trabalhador) que seu irmão trabalha na obra desde o início e ligou para o depoente e disse para ele vir para Fortaleza para trabalhar na obra”, conta um dos depoimentos do relatório. Dormindo em redes amarradas sob o próprio material de trabalho, eles permaneceram em condições ilegais por meses, até a operação da SRT em agosto passado.

 

Nas falas, é revelado ainda que o ambiente de trabalho era repleto por situações de risco, como a presença de materiais pontiagudos desprotegidos e até “gambiarras” elétricas expostas. Segundo eles, um dos operários chegou inclusive a se acidentar na semana anterior ao resgate, tendo a vítima sequer recebido atendimento médico adequado.

“Na verdade, percebe-se o total descaso e a evidente violação a princípios básicos de dignidade humana ao permitir não só a passagem mas que referido local pudesse servir como alojamento de seres humanos. O risco de acidentes como cortes e lacerações era evidente, fica-se a imaginar a magnitude do risco de o trabalhador durante a noite, sem iluminação, transitar em tal área após levantar-se de sua rede descalço”, diz o relatório.

Os depoimentos dão detalhes também do quão básica era a alimentação dos trabalhadores, que realizavam trabalho pesado por mais de dez horas todos os dias. “O café da manhã consiste de café, cuscuz, manteiga e ovo (...) almoço tem arroz feijão, farofa ou fatias de carne. A janta tem arroz, ovo e feijão”, relatam os trabalhadores.

Veja os depoimentos de dois dos trabalhadores resgatados:

TERMO DE DECLARAÇÃO DE J. P. A. L.

“(Diz o trabalhador) que foi contratado pelo mestre de obras, Cícero, no dia de 23 de julho de 2018, no local da obra. Que seu irmão, A. L., trabalha na obra desde o início e ligou para o depoente e disse para ele vir para Fortaleza para trabalhar na obra. (Afirma) que dorme na sua rede de cima entrançada para um andaime no canteiro de obra. Que embaixo da rede ficam os vergalhões usados para a construção das vigas.

(Disse) que o café da manhã é feito pelo R. e consiste de café, cuscuz, manteiga e ovo. Às vezes tem pão ou bruaca de trigo. No almoço tem arroz, feijão, farofa ou fatias de carne. A janta tem arroz, ovo e feijão, sempre preparados pelo R. (Diz) que o piso do local é usado como apoio e é de chão batido, que não é fornecido papel higiênico e que todos os trabalhadores trazem de casa o seu papel higiênico, sabão e xampu.

(Diz ainda) que recebeu protetor auricular, capacete e farda, tendo recebido a farda hoje, no final do dia, mas que não recebeu botinas e por isso trabalha com a sua botina própria. (Diz) que recebe por diária R$ 100, sendo (o máximo) R$ 550 por semana da mão do mestre de obras. O pagamento ocorre aos sábados. (Afirma) que no final de semana vai para a casa da mãe ou da namorada, que não foi pedida sua CTPS e nem fez exames médicos, e que nunca assinou nenhum recibo de pagamento.

(Diz ainda) que sabe que seus direitos não estão sendo cumpridos, mas devido a precisão tem que aceitar a situação. (Diz) que o empregador vem toda semana na obra e sabe dessa situação toda.”

TERMO DE DECLARAÇÃO DE J. R. N. S.

“Em ação fiscal de combate ao trabalho escravo nesta data, realizamos entrevista com o trabalhador acima nominado, no local da obra de construção civil onde o trabalhador está alojado (na obra), dormindo em rede. Ao ser perguntado, informou que reside em Capistrano, que ficou sabendo da obra através de dois sobrinhos que trabalhavam aqui, que foram trazidos para a obra atendendo ao chamado de Cícero, mestre de obras.

(Dizem ainda) que ao aceitar o trabalho sabia que ia dormir no local de trabalho e que foi acertado o salário de R$ 350 por semana, que é servente e cozinheiro e por isso tem salário maior do que os outros serventes. (Afirma) que começa a trabalhar às 5h40min, preparando o café da manhã, e em seguida lava a louça e vai trabalhar na construção, no horário das 7h até as 10h40min e que continua trabalhando enquanto faz o almoço.

(Diz que) almoça junto com os demais trabalhadores, durante uns dez minutos, e em seguida lava a louça e limpa o ambiente, descansa de 15 a 20 minutos, e volta a trabalhar na obra até as 17hs quando continua preparando o jantar até as 18h30min. Depois, janta e lava toda a louça, encerrando sua jornada às 19h.

(Diz o trabalhador) que o banheiro fica no mesmo local onde preparam a comida e onde dormem (no térreo da obra e que o mestre de obras compra os gêneros alimentícios. O café da manhã é composto de café, cuscuz e ovo e a água para consumo humano é da torneira da Cagece, sem nenhuma filtragem ou purificação. A rede em que dorme é própria, trouxe de casa, que não foi submetido a exame de saúde ocupacional antes de iniciar as atividades. Que tem CTPS (carteira de trabalho), mas que o patrão só perguntou se ele tinha CTPS na semana passada.

(Diz que) não tem material de primeiros socorros no local e que um trabalhador sofreu um acidente de trabalho na quarta-feira passada, mas não quis ir para o hospital nem para o pronto socorro. (Afirma ainda) que existem muitos ratos no local e que os pratos, copos e talheres foram trazidos de casa por cada trabalhador. Nada mais foi perguntado e demos por encerrado o presente termo.”

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