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Ansiedade no futebol: entenda o universo de pressão sobre Ceará e Fortaleza na elite do esporte
Reportagem Especial

Ansiedade no futebol: entenda o universo de pressão sobre Ceará e Fortaleza na elite do esporte

Psicólogos dos dois maiores times do Estado atuam apenas com as categorias de base. No futebol, cerca de um terço dos jogadores já relataram sofrer com sintomas de ansiedade e depressão

Ansiedade no futebol: entenda o universo de pressão sobre Ceará e Fortaleza na elite do esporte

Psicólogos dos dois maiores times do Estado atuam apenas com as categorias de base. No futebol, cerca de um terço dos jogadores já relataram sofrer com sintomas de ansiedade e depressão
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No cotidiano, os sintomas podem ser silenciosos. Coração acelerado, mãos suadas, insônia e cabeça cheia de pensamentos podem passar despercebidos pelos olhos de um observador comum. Esses sinais ficam mais visíveis quando, diante de milhares de pessoas, a visão fica turva, a perna pesa, a bola teima em não entrar e a coordenação motora já não é a mesma. No gramado, com todos os holofotes sobre ele, o jogador não tem dúvida: a ansiedade entrou em campo.

A ansiedade é uma reação natural do ser humano às situações que a vida coloca diante dele. Surge como instinto de sobrevivência frente a cenários difíceis, que provocam grande expectativa, medo ou dúvida. Porém, quando ela evolui para o transtorno de ansiedade generalizada (TAG), o que era comportamento normal acaba virando problema.

Segundo estudo da Organização Mundial da Saúde (OMS) divulgado em junho deste ano, o Brasil é o país mais ansioso do mundo: cerca de 18,6 milhões de pessoas sofrem com o distúrbio. Isso representa 9,3% dos brasileiros. No esporte, especificamente no futebol, o panorama é ainda mais grave.

Em 2015, a Federação Internacional dos Jogadores Profissionais de Futebol (FifPro) realizou levantamento sobre saúde mental com 607 atletas profissionais de 11 países. A entidade constatou que mais de um terço dos jogadores (38%) sofre sintomas de ansiedade ou depressão. Quem já passou por três ou mais lesões graves pode estar até quatro vezes mais propenso a desenvolver esses problemas.

Apesar dos números mostrarem que o problema é real, nem Ceará nem Fortaleza possuem psicólogos que trabalhem exclusivamente com suas equipes profissionais, e sim apenas com as categorias de base. O POVO apurou que, no Vovô, uma assistente social faz esse tipo de trabalho junto aos atletas. No Leão, uma psicóloga atuava junto aos jogadores, mas foi mandada de volta para a base com o retorno de Rogério Ceni.

Apesar das tensões naturais da disputa de campeonatos, nem Ceará nem Fortaleza possuem psicólogos que atuam exclusivamente com seus times profissionais
Apesar das tensões naturais da disputa de campeonatos, nem Ceará nem Fortaleza possuem psicólogos que atuam exclusivamente com seus times profissionais

Reta final do Brasileirão potencializa ansiedade

No fim do Brasileirão, com iminência de definição do rebaixamento e das vagas nas competições continentais, o Ceará ainda tenta garantir a permanência na Série A. O Fortaleza já está classificado para a Copa Sul-Americana e garantido na Série A em 2020. Para os tricolores, a tranquilidade de poder jogar a última rodada do Brasileirão sem pressões, tendo conquistado até mais do que se esperava no começo da temporada. Para os alvinegros, a tensão de ainda poder cair para a segunda divisão. O fator emocional interfere no campo de jogo.

"“Alguns atletas tendem a crescer na adversidade”" Diego Gaspar, psicólogo que trabalha nas categorias de base do Ceará. Ele explica que a ansiedade não afeta apenas negativamente o desempenho

Cada jogador sente a pressão de maneira diferente. Alguns dão o seu melhor nos momentos mais difíceis. Outros não conseguem manter o nível e se retraem: “Alguns atletas tendem a crescer na adversidade, o que vai depender muito do seu momento profissional, do seu momento de vida”, afirma Diego Gaspar, psicólogo que trabalha nas categorias de base do Ceará.

É natural que a ansiedade tenha um papel determinante no desempenho. Não só de forma negativa, mas também positiva. O psicólogo alvinegro acredita que ela também pode ser um catalisador para que o atleta dê o seu melhor em campo: “Vai depender da sua maturidade emocional, experiência profissional. Isso vai definir aquele que vai crescer e aquele que vai se retrair, ter seu potencial travado por conta da ansiedade”.

Liana Benício é psicóloga no Fortaleza, mas também só atua nas categorias de base. Ela já teve a experiência de atuar junto ao elenco profissional em uma reta final de Campeonato Brasileiro. Em 2017, o Fortaleza estava em sua oitava temporada seguida na Série C. O Leão fez uma campanha irregular na fase de grupos, mas se classificou para o mata-mata do acesso, onde já tinha sido eliminado quatro vezes em anos anteriores. A pressão para subir de divisão era enorme, e a atuação da psicologia teve de ser estratégica para que a equipe não fracassasse mais uma vez.

Em 2017, trabalho psicológico foi um dos elementos que ajudaram o Fortaleza a subir para a Série B depois de oito temporadas na Série C
Em 2017, trabalho psicológico foi um dos elementos que ajudaram o Fortaleza a subir para a Série B depois de oito temporadas na Série C

O trabalho foi dividido em três eixos: o social, para investigar como o jogador está se sentindo em relação ao clube e à cidade de Fortaleza; o emocional, que proporciona uma escuta clínica e foca em questões pessoas e emocionais; e o treinamento mental, que usa equipamentos e técnicas de psicologia para manejo da ansiedade e aumento da motivação. A terapia em grupo, segundo Liana, era a única atividade a qual todos os jogadores eram obrigados a participar.

Deu certo e o Fortaleza conquistou o acesso inédito à Segundona, mas o trabalho da psicologia não foi mantido na mesma intensidade. “Ano retrasado, atuei bem mais, fiz mais grupos, me relacionava mais com a comissão, tive mais proximidade com a equipe”, revela a profissional. Ela acredita que, nesses cenários, a ansiedade pode ser estimulante: “Ela só se torna patológica quando paralisa a pessoa. Às vezes, uma ansiedade normal pode ser mobilizadora”.

Falha nas finalizações e o fator emocional

No futebol cearense, o tema não passa longe das entrevistas coletivas de Ceará e Fortaleza. Hoje comandado por Argel Fucks, o Ceará tem um problema que persistiu em todas as comissões técnicas que trabalharam no clube neste Brasileirão: a equipe finaliza muito, mas não encontra o caminho do gol. Com o técnico Enderson Moreira, o Ceará chegou a somar 65 finalizações em três jogos seguidos, mas nada de bola na rede. A justificativa apresentada, tantos pelos atletas como pela comissão técnica, era a ansiedade na hora de definir as jogadas

Em outubro deste ano, o volante alvinegro Pedro Ken não deixou de falar do assunto antes de jogo contra o Vasco, pelo Brasileirão: "Temos que tentar lidar de uma forma mais tranquila com a ansiedade. Em alguns momentos, em casa, temos sido um pouco ansiosos pela questão da tabela, da pressão de precisar do resultado jogando aqui e acaba que nos precipitamos em alguns lances".

Pedro Ken foi um dos atletas do Ceará que falou abertamente sobre ansiedade nas coletivas durante o Brasileirão
Pedro Ken foi um dos atletas do Ceará que falou abertamente sobre ansiedade nas coletivas durante o Brasileirão

Sinais de que não está tudo bem

Para Diego Gaspar, a ansiedade no esporte é indissociável da gravidade das situações que a vida apresenta ao atleta. Quanto maior a importância de um jogo, de um campeonato, maior é a expectativa em torno do evento: “O atleta é um ser humano, e alguns conseguem lidar de uma forma mais madura do que outros. Têm atletas que crescem frente a um desafio e têm atletas que acabam precisando de um suporte mais próximo”.

No Fortaleza, Liana tenta fazer um acompanhamento “interdisciplinar”, em que o esporte dialoga com outras áreas de conhecimento. É uma forma de prevenir os sintomas que, de uma forma ou de outra, vão aparecer no momento em que o atleta se deparar com um jogo difícil. “O jogador que está muito ansioso vai cansar mais rápido, a coordenação motora vai ficar prejudicada e a tomada de decisão também”.

Liana Benício já trabalhou com o elenco profissional do Fortaleza, mas hoje só atua nas categorias de base
Liana Benício já trabalhou com o elenco profissional do Fortaleza, mas hoje só atua nas categorias de base

Dentro de campo, é normal que a perna pese, que o medo de errar seja maior e que os movimentos fiquem truncados e mais difíceis de serem executados. Diego acredita que a ansiedade é um ponto natural quando a pessoa está lidando com as tensões da vida. Não seria diferente no caso de jogadores de clubes de massa, que são cobrados diariamente por milhares de pessoas. Mas existem fatores que determinam se isso vai se tornar uma doença ou não.

“(O distúrbio) se torna patológico quando a pessoa perde o domínio de suas ações e para de viver a sua vida, de ter um centro equilibrado, e a ansiedade passa a ser o centro. Tudo que a pessoa faz ou deixa de fazer passa a ser determinado por ela”, pontua o psicólogo do Vovô. Liana afirma que os atletas podem desenvolver outros sintomas de doenças que afetam a saúde mental, como a depressão. No Fortaleza, porém, ela relata que nunca diagnosticou ansiedade em um jogador do elenco profissional.

Preconceito sobre tratar da saúde emocional

Jogadores, comissão técnica e dirigentes. Ninguém escapa quando se tenta entender por que a psicologia não é tão difundida no futebol brasileiro. O preconceito é a principal razão apontada pelos profissionais dos clubes. Entre os jogadores, associa-se o tratamento à loucura, muito por conta do desconhecimento: “A psicologia esportiva está aí pra desenvolver o atleta nas suas funções cognitivas e psicológicas. Isso acaba por melhorar o rendimento. Mas, infelizmente, muitas pessoas ainda não acreditam nesse trabalho”, diz Liana.

No esporte, o jogo de autoridade passa diretamente pelos vestiários. Muitos treinadores desejam estar no controle de todos os aspectos do rendimento de seus atletas, inclusive no quesito emocional e psicológico, como forma ter total comando sobre seu ambiente de trabalho. Isso leva ao que Liana chama de uma “centralização de poder” por parte da comissão técnica dos clubes.

“Têm técnicos que não se sentem seguros com a gente ou acham que não precisam disso e tentam centralizar essa função. Muitas vezes, acham que o trabalho de psicólogo é frescura, é coisa de doido. A questão que eu falo é o desconhecimento, não conhecem o trabalho do psicólogo esportivo dentro do campo de futebol e acabam não utilizando esse serviço”, argumenta a profissional.

Esse afastamento por parte de algumas comissões técnicas vem justamente de um dos setores que mais sofrem com as pressões do esporte. No Brasil, existem vários casos de treinadores famosos que tiveram problemas cardíacos por conta das tensões e cobranças diárias. Neste ano, o então técnico do Flamengo, Abel Braga, passou mal cinco dias antes da final da Taça Rio, contra o Fluminense, e teve que deixar o Maracanã em uma cadeira de rodas. Os médicos o proibiram de comparecer à decisão. O motivo? Arritmia cardíaca, uma alteração na frequência das batidas do coração que pode ser causada por estresse e ansiedade.

Em 2016, o multicampeão Muricy Ramalho assumiu o Flamengo no início do ano. Não ficou muito tempo no cargo: em março, foi diagnosticado com fibrilação arterial, outra doença cardíaca motivada pelo estresse, com sintomas semelhantes à arritmia. Dois anos antes, ele já havia sido internado em São Paulo por conta da mesma doença, que se juntou a outros problemas de saúde que já tinha, como hérnia de disco. Pouco tempo depois, decidiu se aposentar da vitória carreira de treinador.

Na base do Ceará, o psicólogo Diego Gaspar avalia que o ENTITY_quot_ENTITYtreino emocionalENTITY_quot_ENTITY pode ser aliado aos treinos tático, técnico e físico para maior performance dos atletas
Na base do Ceará, o psicólogo Diego Gaspar avalia que o ENTITY_quot_ENTITYtreino emocionalENTITY_quot_ENTITY pode ser aliado aos treinos tático, técnico e físico para maior performance dos atletas

Segundo Diego Gaspar, o profissional de psicologia pode auxiliar o técnico na manutenção de um bom ambiente de trabalho e ajudá-lo a gerenciar pessoas. Ele procura complementar o trabalho da comissão com palestras e grupos operativos. O “treino emocional” é somado aos treinos técnico, tático e físico para “potencializar esses atletas em campo”.

Diego também não deixa de reconhecer que existe preconceito entre muitas comissões técnicas em relação à sua área de atuação. Mas ele também afirma que não encontra problemas para exercer seu trabalho no Vovô: “É falta de informação ou só cabeça dura mesmo. Comissão técnica (no Ceará) sempre me deu bastante abertura, eles entendem a necessidade da psicologia, como ela pode complementar o trabalho deles. Eu tô sempre tentando fazer esse trabalho de complementaridade, ajudando o que eles fazem em campo”, relata.

Pressão nas categorias de base

Nas categorias de base, a ansiedade natural à disputa de campeonatos é somada a outro fator bem determinante: o desejo de se tornar jogador profissional
Nas categorias de base, a ansiedade natural à disputa de campeonatos é somada a outro fator bem determinante: o desejo de se tornar jogador profissional

Muitas das pressões que os atletas encaram no dia a dia já foram vividas nas categorias de base. Mas quando o jogador ainda está em formação, um outro fator importante é somado à cobrança por resultado e desempenho: o desejo de se profissionalizar. Além disso, os adolescentes e jovens adultos ainda estão no período de formação da sua maturidade emocional, cria-se um ambiente arriscado para o desenvolvimento de doenças mentais.

“Eles (jogadores da base) já são expostos à pressão, aos resultados, e tem um fator a mais que é se profissionalizar, chegar até o (time) profissional. Isso gera muita ansiedade. Eu acho que os que conseguem já estão mais preparados para a vida profissional, e quando chegam lá eles lidam melhor”, argumenta Liana. Para ela, a base deve servir como uma “escola” para que os atletas sejam mais resilientes à vida adulta.

A ansiedade é só um dos fatores que, quando não são tratados da forma correta ainda no período de formação, podem contribuir para desenvolver problemas futuros. “O futebol é um caminho de vida maravilhoso. Não é só futebol, não é só um esporte, é um mundo de possibilidades. Mas é extremamente exigente, existem vários casos de jogadores que não souberam lidar bem com a fama, com o estresse, os benefícios”, afirma Diego.

"Nas categorias de base, desde muito cedo, os atletas precisam aprender a lidar com a pressão. Então, esses fatores pode, sim, gerar transtornos, mas aqui no Ceará a gente está atento para dar o suporte necessário para que atletas possam crescer no futebol e na vida de forma saudável e assertiva", completa o psicólogo do Vovô.

Por trabalharem exclusivamente com as categorias de base, os dois profissionais acabam tendo uma proximidade maior com as particularidades de cada um dos jovens atletas. Liana ressalta que o tratamento e a identificação de distúrbios mentais deve ser individualizado, pois cada caso é particular. Ela acredita que o fato de alguns atletas viverem longe de suas famílias e morarem isolados pode contribuir para que desenvolvam ansiedade e até depressão.

No contexto global do futebol, tanto profissional quanto de base, a ansiedade e a saúde mental, no geral, ainda não são abordadas da forma correta, sobretudo nas coberturas de imprensa. Liana avalia que a saúde mental no futebol é um assunto frequente em coletivas e reportagens, mas que o tema não é levado tão a sério quanto realmente deveria ser. “A mídia, quando entrevista jogadores e comissão técnica, traz muito a questão emocional, mas, na prática, não utiliza o profissional especializado pra saber a opinião. Eu vejo esses discursos muito presentes no meio do futebol, mas e aí? Quem é a pessoa que cuida disso?”.

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