Maria José Cordeiro Lima é aratubense nascida há 57 anos. Na aldeia Feijão, todavia, não é esse o nome que se ouvia ao se referir a ela. Hoje Maria José é Kacika Maeota, a voz feminina maior do kalembre. A alcunha é marca de quem precisou amadurecer mais cedo e cumprir um papel social comumente designado às mulheres. É, também, herança de um linguajar próprio de quem não teve acesso ao básico no meio do sertão.
Ela só tinha 10 anos quando precisou cuidar dos sete irmãos mais novos para que a mãe pudesse trabalhar. Nesse cenário, Maria José era considerada a "segunda mãe", mesmo ainda criança. "Olha, respeite a Maria". Era o que os pequenos falavam quando alguém teimava com a terceira filha mais velha. "Os meninos faziam aquela bagunça e chamavam por 'maeota'", uma aglutinação das palavras mãe e outra. Maeota tem sete irmãos, sendo apenas dois mais velhos.
Depois, vieram os cinco filhos - duas mulheres e três homens, sobrinhos, netos. "Aqui na aldeia fico com os meninos de quem sai para trabalhar. É uma responsabilidade grande, mas gosto". Ao O POVO, Maeota relembra a infância e o desafio de sobreviver diante das dificuldade de quem não tinha terra para dormir e nem podia se evidenciar, tamanho era o medo da maldição instituída pelo padre há cinco gerações. Mas uma coisa é certa para ela: nunca foi tão importante contar essa história.
O POVO: Que memórias a senhora ainda ainda guarda da infância?
Maeota: Quando nasci, meus pais tinham terra. Mas tomaram e ficamos perambulando. Quando eu tinha 13 anos, meu pai morreu e nos deixou num canto bem ruim. A gente trabalhava colhendo arroz, aí a mulher dava aquela mostrinha de arroz quando queria. Na plantação de mandioca, era aquela farinha. Quando queriam dar. A gente não podia mais se mudar e ficamos lá que nem jumento, só apanhando. A gente não tinha roupa, não tinha rede. A nossa cama era folha de bananeira ou palha de palmeira. Era onde a gente dormia. Um dia, umas pessoas deram pra minha mãe um saco de mercadoria. Ela fazia linha pra pegar peixe e fez um bocado de roupa pra gente.
O POVO: E quando foi crescendo?
Maeota: Quando eu era maiorzinha fui trabalhar em casa (de família) pra ganhar roupa. Eu passava um mês num canto, ganhava roupa e levava pra casa. Depois ia pra outro canto, ganhava roupa e levava pra casa. Eu gostava das roupas. O mais fácil (de ter) era chinela que meus pais faziam de pneu pra gente.
O POVO: Como era o dia a dia de vocês?
Maeota: Eu ficava com as crianças, mas a gente colhia feijão, mandioca que o povo plantava. A gente esperava o pessoal sair do roçado pra colher. E aí nossa vida, toda vida, foi um sufoco. Morreu muita gente perdendo terra, fizeram o que puderam. Eu fui criada sabendo que era índio, mas minha mãe dizia que a gente não podia contar que era indígena. Hoje temos casa pra morar e um pedaço de terra pra plantar. Mesmo assim, quando a gente sai por aí, o povo acha que a gente anda atrás de terra. Imagina no tempo que a gente não tinha onde morar e vivia escondido pra ninguém saber. Eu dizia pros meus filhos que era índio, mas que a gente não podia dizer. Agora eles são grandes, sabem se defender. Fizeram muita coisa com meu povo. Agora vai ser mais difícil pegar a gente, se vierem, porque agora estamos esperando. É diferente de não estar esperando.
O POVO: Como se preserva uma memória indígena sem poder falar sobre ela?
Maeota: É como se você fosse de uma família e estivesse em outra, querendo chegar na sua família. É assim que a gente se sente, e não se sente bem. Mas foi preciso esperar. Chegou a hora de falar. Meus filhos terminaram estudos, cresceram. Isso depende de estudo também porque a gente ajuda com experiência e eles com o que aprenderam. Estão mais prontos para o mundo, diferentemente de nós. Sabem muita coisa que não sabemos, fazem faculdade.
O POVO: Que memórias a senhora tem dessa preservação indígena ao longo da vida?
Maeota: Sempre preservamos a memória, mas era guardada pra nós.
O POVO: Havia perseguição?
Maeota: Quando (os brancos) chegavam e encontravam minha mãe e tia, colocavam elas num buraco, urinavam e falavam que iam colocar fogo nelas. Era uma perseguição por ser diferentes. Havia aquela dificuldade. Eu também tenho dificuldade de sair, de conversar. Eu sei das coisas, mas às vezes não sei dizer.
O POVO: E como é poder falar quem vocês são?
Maeota: Tô feliz porque a gente pode falar. Quero que mais gente saiba da nossa história, quem somos nós e que estamos aqui para o que der e vier. É o certo.