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Seis anos depois, famílias do Alto da Paz aguardam entrega do residencial e ação civil pública segue sem decisão
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Seis anos depois, famílias do Alto da Paz aguardam entrega do residencial e ação civil pública segue sem decisão

Comunidade pede a inclusão de 192 famílias que teriam ficado fora do cadastro; Prefeitura reconhece somente 327
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Mulher com criança nos braços em meio aos destroços da da comunidade Alto da Paz, no bairro Vicente Pinzón (Foto: Deivyson Teixeira/O POVO)
Foto: Deivyson Teixeira/O POVO Mulher com criança nos braços em meio aos destroços da da comunidade Alto da Paz, no bairro Vicente Pinzón

A dona de casa Raquel Lima de Sousa, 40, acabava de acordar, às 5 horas, quando viu a Comunidade Alto da Paz cercada pelas tropas do Batalhão de Choque no dia 20 de fevereiro de 2014. As cenas do despejo forçado que se seguiram causaram comoção em Fortaleza. Daquele dia, Raquel lembra da sensação de impotência e da indignação. Seis anos depois, a maioria das famílias removidas mora de aluguel e espera a entrega do Residencial Alto da Paz, prevista para março. Uma ação civil pública que pede indenização aos moradores por danos materiais e morais também aguarda julgamento até hoje.

Depois do despejo, Raquel e as duas filhas não tinham para onde ir. Moradores dizem que receberam 10 minutos para retirar seus pertences das casas. “Passei seis dias no terreno de uma vizinha. Coloquei as coisas no quintal e fiquei sentada em uma cadeira”, relata. Ela chegou no Alto da Paz, no bairro Vicente Pinzón, cerca de um ano depois do começo das ocupações, que ocorreram em setembro de 2012.

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A Associação de Moradores do Alto da Paz indica que pelo menos 530 famílias ocupavam o local à época e reivindica a inclusão de 192 famílias que teriam ficado fora do cadastro realizado pela Prefeitura. A Secretaria Municipal do Desenvolvimento Habitacional (Habitafor), porém, reconhece somente 327 cadastradas.

Os moradores da comunidade foram surpreendidos pela chegada dos tratores na manhã do dia do despejo. A desapropriação ocorreu em meio às negociações com o Poder Executivo Municipal, mediadas pela Defensoria Pública do Estado, na busca de uma saída amigável para as partes. Uma ordem judicial, expedida em 2013 pela juíza Joriza Magalhães, da 9ª Vara da Fazenda Pública, respaldou a retirada das famílias do terreno de 116 mil m², propriedade da Prefeitura desde 2011.

Apesar de não ter residido no Alto da Paz, José Ribamar Pereira de Almeida, 58, integrante do movimento Unidade Classista Luta por Moradia, representava a comunidade na articulação entre os moradores e a Prefeitura. Ribamar conta que chegou a abrigar três famílias em sua casa depois da desapropriação da comunidade, incluindo a de Raquel. Ela esperava o abrigo prometido pela Prefeitura, que nunca chegou.

Ribamar resgata que a ajuda de custo de R$ 100 negociada para ser paga em 14 parcelas chegou a ser suspensa por um tempo e depois retomada. “R$ 1,6 mil eram para um ano e seis meses. Já se passaram seis anos. Quem recebeu esse dinheiro, já acabou há muito tempo. Não dá para pagar nem um aluguel”, considera.

No dia da remoção, o pedreiro Antônio dos Santos, 46, saiu cedo para trabalhar e deixou a esposa e os dois filhos, um deles de apenas 1 ano de idade, na casa que tinha no Alto da Paz. Ele não esperava ver a cena que encontrou ao retornar por volta das 15 horas. “Quando cheguei, meus filhos estavam dentro da casa do vizinho, sentados em cadeiras. No lugar onde eu morava, o trator tinha passado por cima”, relembra com tristeza.

Após o despejo, Antônio se divorciou e hoje está desempregado. Por meio de alguns trabalhos pontuais como entregador, ele tira seu sustento e paga o aluguel de R$ 450 do local onde mora, no Vicente Pinzón. Até conseguir alugar uma casa para morar, Antônio residiu com amigos. Ele se queixa de ter ficado de fora do cadastro oficial da Prefeitura, mesmo tendo recebido visitas anteriores de agentes da Habitafor.

A reclamação é a mesma da autônoma Maria das Graças Freitas de Castro, 43. Quando os cadastros foram realizados, ela não estava em casa. Maria morava de aluguel e planejava se mudar definitivamente para o cômodo construído no Alto da Paz com a ajuda de amigos e familiares. Porém, a desapropriação interrompeu seu projeto. “Quando o trator chegou, tirou todo mundo e jogou na rua. Eles não se importavam se essas pessoas iam ter para onde ir, onde iam morar”, protesta.

Depois daquele dia, Maria viveu um tempo com a mãe e, atualmente, conta com a ajuda da filha para pagar um aluguel de R$ 250, também no Vicente Pinzón. “Ninguém mora assim porque quer, a gente vai porque tem necessidade. A gente paga aluguel tirando de um prato de comida para poder ter um teto”, lamenta.

Famílias de fora do cadastro

A Associação de Moradores do Alto da Paz levou à Habitafor a situação de 192 famílias da comunidade que não foram cadastradas para receber um dos 1.428 apartamentos do Residencial. “Nossa luta vem desde 2014 até aqui. Estamos aguardando que a Prefeitura veja a situação dessas famílias. É uma luta justa, é por alguém que precisa ter uma moradia”, defende a ex-moradora Raquel Lima, também membro da Unidade Classista Luta por Moradia.

De acordo com ela, a Habitafor não reconhece as famílias que reivindicam a inclusão no cadastro. Dessas 192 famílias, a Associação acompanha de perto 87. Isso porque, após a remoção, as famílias se dispersaram para bairros do entorno da comunidade como Cais do Porto, Praia do Futuro e Castelo Encantado. 

Conforme a Secretaria, “as famílias que ocupavam o local foram cadastradas, pelo menos três vezes pelas equipes da Habitafor” e “as 327 que faziam parte da ocupação serão beneficiadas". Os moradores, porém, sustentam que a Habitafor considerou apenas o último cadastro realizado e não os dois anteriores.

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Atraso na entrega do residencial

Na época, a previsão da Prefeitura era de que em 12 meses, os primeiros blocos do Residencial Alto da Paz estariam concluídos. O prazo total para as obras ficarem prontas era de um ano e meio. Segundo a Habitafor, o empreendimento com 1.428 apartamentos está com obra física concluída e passa pela fase de legalização documental para abertura de matrículas, que depende dos Cartórios de Registro de Imóveis (5ª zona). A previsão de entrega é março deste ano, sem dia estipulado.

O residencial integra o programa Minha Casa Minha Vida e possui duas etapas, sendo 1.111 apartamentos da primeira etapa e 317 da segunda. As unidades têm dois e três quartos, sala, cozinha e banheiro ,e variam de 48 m² a 58 m². O investimento totaliza R$ 116 milhões. 

A Habitafor garante que essas unidades habitacionais serão entregues, prioritariamente, às 327 famílias que ocupavam o local em 2014. Além disso, moradores do Serviluz, do Papicu e do Gengibre, inclusas no aluguel social e provenientes de desapropriações vinculadas ao Veiculo Leve sobre Trilhos (VLT), serão beneficiários do residencial.

Ação civil pública contra o Município aguarda julgamento

Em outubro de 2014, a Defensoria Pública do Estado do Ceará ingressou com ação civil pública contra o Município pedindo condenação por danos morais e materiais aos moradores do Alto da Paz. A ação requere indenização no valor de R$ 12 milhões e ainda aguarda julgamento na 3ª Vara da Fazenda Pública do Fórum Clóvis Beviláqua. O processo é atribuído à juíza Cleiriane Lima Frota.

O defensor público José Lino Fonteles, supervisor do Núcleo de Habitação e Moradia (Nuham), acompanhava o caso. Ele destaca que a ação solicitava, em caráter de urgência, o aluguel social para 50 famílias que teriam ficado desabrigadas, o que foi indeferido na ocasião. Era requisitado também o cadastramento de todas as famílias e o reassentamento dos moradores despejados.

Ainda segundo Fonteles, um dos encaminhamentos da audiência pública realizada sete dias antes do despejo foi a realização de reuniões com a Habitafor na busca de uma saída amigável. Era discutida a possibilidade de os moradores serem incluídos no aluguel social ou a disponibilização de parte do terreno para permanência das famílias enquanto a construção das unidades residenciais acontecia. “Antes que a Habitafor realizasse a primeira reunião, aconteceu o despejo com muita violência e balas de borracha. Foi uma praça de guerra”, relembra o defensor.

Na ocasião do despejo, O POVO noticiou que a ação teve a presença de dois oficiais de Justiça, 130 policiais do Batalhão de Choque, 20 da Cavalaria e dez do Canil. Moradores e policiais ficaram feridos. Além disso, quatro tratores foram usados na demolição e duzentos capatazes da Prefeitura ajudavam moradores a transportar móveis e eletrodomésticos para cerca de 30 caminhões.

A advogada Julianne Melo, do Escritório de Direitos Humanos e Assessoria Jurídica Popular Frei Tito de Alencar (EFTA), vem atuando no processo e pondera que, mesmo sendo proprietária do terreno, a conduta da Prefeitura contrariou o acordo que era estabelecido e teve excessos. “A Prefeitura violou a boa fé das partes. Isto é, ela acorda em determinado sentido e faz em outro”, afirma.

A advogada estima que o resultado da decisão da Justiça pode demorar meses ou até anos. Isso porque o julgamento pode acontecer com o material que já existe nos autos, o que facilitaria a decisão mais ágil ou pode haver uma audiência judicial para escutar as testemunhas e, neste caso, o processo se alongaria.

Sobre a desapropriação, a Habitafor disse via e-mail ao O POVO que “a operacionalização foi conduzida pelos oficiais de justiça e órgãos de Segurança Pública" e que a “reintegração de posse foi acionada pela Justiça, portanto o Município não tinha gerência sobre o cronograma de ação”. A pasta também negou que alguma família tenha ficado desabrigada após o despejo e afirmou que as parcelas com a ajuda de custo de R$ 100 foram pagas.

O POVO entrou em contato com o Tribunal de Justiça do Estado do Ceará para buscar mais detalhes sobre o andamento da ação, mas até o fechamento da matéria não obteve retorno.

Fortaleza teve 29 mil famílias removidas nos últimos anos

Entre 2009 e 2017, quase 29 mil famílias que ocupavam alguma área em Fortaleza foram removidas. O levantamento é do Laboratório de Estudos da Habitação da Universidade Federal do Ceará (Lehab/UFC) e foi realizado no âmbito do projeto Observatório de Remoções. As ocupações urbanas são um reflexo do déficit habitacional, que ocorre quando não há moradia digna suficiente para atender à demanda populacional.

Os dados são baseados nas denúncias que chegaram nesse período ao Escritório de Direitos Humanos e Assessoria Jurídica Popular Frei Tito de Alencar (EFTA), ao Escritório de Direitos Humanos e Assessoria Popular Dom Aloísio Lorscheider (EDHAL) e ao Núcleo de Habitação e Moradia (Nuham), da Defensoria Pública.

Para a pesquisadora Valéria Pinheiro, do Lehab, o desafio de reduzir o déficit habitacional na Cidade requer um investimento maciço. “Não queremos que as pessoas sejam colocadas onde não há infraestrutura ao redor delas e isso não é barato. Para tanto, orçamento público precisa ser bem direcionado”, aponta. Ela acrescenta a importância de efetivar instrumentos legais previstos na lei do Plano Diretor, documento máximo de ordenamento urbano que passa por revisão neste ano.

Nos 856 assentamentos precários existentes na Capital residem aproximadamente 271.535 famílias, correspondendo a mais de 1 milhão de pessoas, segundo o Plano de Habitação de Interesse Social (PLHIS), atualizado em 2016. Os assentamentos precários ocupam apenas 12% do território da cidade, porém neles residem mais de 40% da população.

Queda nos investimentos habitacionais

Uma análise orçamentária produzida pelo Fórum Permanente de ONGs de Defesa de Direitos de Crianças e Adolescentes do Ceará (Fórum DCA) e publicada neste ano mostrou que o investimento público municipal em habitação caiu de R$ 34 milhões em 2018 para R$ 27, 1 milhões no último ano. A redução é de aproximadamente 20,5%. Os dados são provenientes do Relatório Resumido de Execução Orçamentária (RREO) de Fortaleza. O documento lançado bimestralmente traz os investimentos em diferentes áreas como saúde, educação e habitação.

Os números contemplam investimentos em regularização de assentamentos precários e de conjuntos habitacionais, melhorias habitacionais e urbanização, por exemplo. O Fórum DCA congrega organizações da sociedade civil e luta pela defesa dos direitos de crianças e adolescentes no Ceará. O Fórum realiza trabalho em parceria com o Lehab, o Campo Popular do Plano Diretor e a Frente de Luta por Moradia nas análises orçamentárias voltadas às questões de moradia e habitação.

A Habitafor explica que essa redução no orçamento se deveu à finalização de alguns contratos, como a urbanização das comunidades do Campo Estrela e do São Cristóvão, à rotatividade de famílias do aluguel social para novas unidades habitacionais e à redução de ações de infraestrutura (habitação) no projeto Vila do Mar. "Considerando que o Governo Federal reduziu a disponibilidade de recursos para projetos em execução, proporcionalmente se reduz os investimentos em contrapartidas do Município", acrescenta a pasta.

De acordo com a Habitafor, a Prefeitura de Fortaleza, em parceria com os governos federal e estadual, entregou 24.038 novas moradias de interesse social. A expectativa é de que esse número se aproxime de 30 mil até o fim de 2020. A meta estipulada no plano do Governo era de 13 mil unidades.

Ainda segundo a Habitafor, foram investidos mais de R$ 1,5 bilhão na área da habitação em Fortaleza entre 2013 e 2019. O órgão ressalta, ainda, que os programas de habitação possuem aportes financeiros que envolvem o Governo Federal, por meio de recursos da Caixa Econômica Federal e Banco do Brasil e o Estado, além do Município. 

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Relembre o caso Alto da Paz

13 de fevereiro de 2014
A Defensoria Pública do Estado realiza audiência pública com representantes da comunidade e da Habitafor. Como encaminhamentos, são sugeridas novas reuniões entre a Prefeitura e a comunidade para dar continuidade às negociações.

20 de fevereiro de 2014
Moradores do Alto da Paz são despejados sob ordem judicial expedida em setembro de 2013, pela juíza Joriza Magalhães, da 9ª Vara da Fazenda Pública. Cerca de 530 famílias ocupavam o terreno desde setembro de 2012.

25 de fevereiro de 2014
Listas com nomes de pessoas que teriam ficado de fora do cadastro da Prefeitura são entregues, além da relação de 50 pessoas que teriam ficado desabrigadas.

10 de outubro de 2014
Defensoria Pública ingressa com ação civil pública contra o Município por danos morais e materiais aos moradores do Alto da Paz no valor de R$ 12 milhões.

24 de outubro de 2014
Prefeitura anuncia a instalação do canteiro de obras do Residencial Alto da Paz. O prazo de conclusão era de 18 meses. O número de apartamentos anunciados na ocasião era de 1.472, com investimento de R$ 105 milhões.

18 de fevereiro de 2015
Obras de terraplanagem que deveriam ter tido início estão paradas.

9 de junho de 2017
Novo canteiro de obras do residencial começa a ser instalado com a contratação da empresa ISR Construções. Investimento divulgado é de R$ 91 milhões com participação dos governos federal e estadual e duração de 18 a 24 meses das obras.

14 de março de 2018
Prefeitura e Governo do Estado assinam ordem de serviço para início das obras da segunda etapa do residencial Alto da Paz. Com prazo de execução de 12 meses, o investimento foi de R$ 25 milhões, financiado pela Caixa Econômica, com recursos do Fundo de Arrendamento (FAR). O acréscimo foi de 317 novos apartamentos.

20 de fevereiro de 2020
Seis anos após o despejo, moradores ainda aguardam a entrega do Residencial Alto da Paz. Habitafor diz que o empreendimento com 1.428 apartamentos está com obra física concluída e passa pela fase de legalização documental. A previsão para entrega é março, no entanto não há um dia estipulado.

A maioria das famílias despejadas do Alto da Paz mora de aluguel. Comunidade reivindica inclusão de 192 famílias que ficaram de fora do cadastro. Além disso, a ação civil pública que pede indenização aos moradores ainda aguarda julgamento na 3ª Vara da Fazenda Pública do Fórum Clóvis Beviláqua.

 

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