Protagonista de uma fama inusitada e cenário de histórias folclóricas, o bairro Prefeito José Walter chega aos 50 anos de existência. O lugar que ficou conhecido em Fortaleza como o “Bairro dos Cornos” nasceu durante a ditadura militar e é construído pelas memórias de moradores que reivindicaram melhorias para o local e até hoje perpetuam o legado “zewaltense”, irreverente e bem-humorado.
Aos 92 anos, o homem que deu nome ao bairro mantém vivas as lembranças dos primórdios do lugar. O ex-prefeito José Walter Barbosa Cavalcante relembra bem que a ideia de construir as 4.424 casas do maior conjunto habitacional da América Latina daquele tempo foi vista como “uma loucura” por alguns.
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Segundo o ex-prefeito, que esteve à frente da gestão municipal entre 1967 e 1971, o nome do bairro não foi sua escolha. À época, o presidente da Companhia de Habitação do Ceará (Cohab-CE), Francisco de Carvalho Martins, aproveitou uma viagem que José Walter fazia a trabalho no exterior para homenageá-lo. “O nome inicial era Núcleo Habitacional Integrado de Mondubim. Nunca coloquei meu nome em uma placa. Tentei tirar, mas não deu mais jeito porque estava em tudo que era jornal”, recorda.
O conjunto é organizado em quatro etapas e possui área de 13,07 km² hoje. A primeira etapa foi inaugurada no dia 20 de março de 1970. As avenidas são ordenadas por letras e as ruas numeradas, sendo as pares na horizontal e as ímpares na vertical. Em 2010, o bairro contabilizava 33.427 habitantes, segundo o Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), número que já pode ser dado como superado hoje, uma década depois.
Apesar da homenagem a contragosto, José Walter se refere com carinho especial ao lugar que leva seu nome. “Antigamente, quando eu tinha mais tempo e menos idade, eu ia muito lá. Sou muito feliz com o Zé Walter. De vez em quando ainda vou, mas não me apresento. Eu gosto de passar sem ninguém saber que eu tô passando”, confidencia.
Moradora do José Walter, a historiadora Marise Magalhães fez do lugar onde nasceu tema de suas investigações acadêmicas na dissertação A Sétima Cidade: Trajetórias e experiências dos primeiros moradores do Conjunto Habitacional Prefeito José Walter. “O bairro sempre foi meu objeto de pesquisa por percebê-lo como um lugar diferenciado na Cidade. Todos os moradores se conheciam de longa data e pareciam ter construído laços sólidos com o passar dos anos”, observa.
A pesquisadora explica que o local também chegou a ser chamado de “Sétima Cidade” porque teria a mesma quantidade de residências que a sétima maior cidade do Ceará, em 1969, quando o conjunto estava em fase de construção.
No início da sua história, o José Walter era conhecido por ser distante do resto da Cidade, o que se devia à precariedade de acesso ao transporte público no local, que contava com apenas uma linha de ônibus. É tanto que o trajeto até o bairro era considerado uma “viagem”.
A dona de casa Valdênia Maia, 70, chegou ao bairro em 1971 e acrescenta que outra dificuldade estava em conseguir água potável. "Era muita dificuldade, não tinha água. Eu saía daqui para pegar água com a minha filha na avenida N [a 1,2 km de onde mora]", diz. Ela aponta que muitos avanços ocorreram onde mora, porém áreas como a segurança mereciam uma melhor atenção do poder público.
O professor Pedro Jorge Pinheiro Alves, 77, é morador da rua 41, no José Walter, desde a sua fundação e também viveu aqueles dias. Enquanto exibe orgulhoso parte do acervo histórico que reuniu sobre o bairro ao longo dos anos, Pedro Jorge faz questão de citar nomes de outros moradores que, ao seu lado, lutaram para conquistar melhores condições para o local.
Como bom guardião da memória do José Walter, ele preserva com cuidado uma série de matérias de jornais, fotografias e até publicações organizadas por iniciativas própria como “O Zé”, uma espécie de jornal do bairro. O professor não pensa duas vezes quando questionado sobre seu maior desejo no aniversário de meio século do bairro. "Que essa juventude firme o patrimônio social do Zé Walter, que não deixem esquecer de mim e daqueles que iniciaram tudo aqui. Eu não sou o único, tem muita gente que lutou por um bairro melhor”, finaliza.
A fama dos chifres e o caso do “Cortabundas do Zé Walter”
Não se sabe ao certo as origens do processo de “cornificação” do bairro Prefeito José Walter. O fato é que o dito local “com mais corno por metro quadrado” de Fortaleza continua a preservar sua fama, encarada com diversão pela maioria dos moradores.
A professora Cleudene Aragão, do curso de Letras da Universidade Estadual do Ceará (Uece), cresceu no “Bairro dos Cornos” e aponta pelo menos três teorias para explicar a lenda. Segundo ela, as hipóteses têm relação com a construção e a localização do bairro. Já que as casas do conjunto eram todas iguais, quando os maridos chegavam do trabalho, se confundiam, entravam nas residências erradas e acabavam ficando por lá mesmo. E ainda que fossem embora assim que percebido o engano, a língua maldosa do povo não perdoava.
Outra teoria justifica que, como o José Walter foi entregue em fases, no momento em que a primeira etapa era inaugurada, as outras ainda estavam em construção. Assim, as mulheres, quando ficavam sozinhas em casa, terminavam encantando-se com os trabalhadores da obra.
A terceira explicação diz que os maridos infiéis optavam por comprar casas para suas segundas famílias no José Walter, considerado distante. A ideia era manter as amantes o mais longe possível da primeira família. “Essa é verdade mesmo, não é alegoria não! Conheci vários exemplos não mencionáveis”, se diverte Cleudene. Ela conta com detalhes essas e outras histórias sobre o bairro no livro “José Walter”, da coleção Pajeú.
A obra é uma crônica que costura informações históricas, relatos de moradores e experiências próprias da professora que viveu 34 dos 47 anos no José Walter. Da rua 39, além de lembranças saudosas da infância, a zewaltense também recorda de um episódio que assustou a vizinhança: uma tentativa de ataque do maníaco que ficou conhecido como “Cortabundas do Zé Walter”.
A história registra que entre 1985 e 1987, pelo menos 30 mulheres foram vítimas de um criminoso que invadia as residências e utilizava navalha, canivete ou gilete para realizar cortes nas nádegas de moças, de idosas e até de crianças, sem as violentar ou matar. Em seguida, o Cortabundas fugia.
Cleudene relata que os crimes mudaram o cotidiano dos moradores, que passaram a adotar ferrolhos e traves em suas portas. O caso tomou os jornais da época e resultou na prisão de um homem, diagnosticado com problemas mentais e assassinado dentro do presídio. Apesar de parecer mais uma lenda urbana tantos anos depois, o caso do Cortabundas foi real e os zewaltenses estão aí para testemunhar o que viram. “Todas as histórias do Zé Walter dariam uma coleção. Acho que é um dos bairros mais pitorescos de Fortaleza”, reflete a professora Cleudene Aragão.
Conheça alguns acontecimentos marcantes na história do José Walter:
No aniversário de 50 anos do bairro Prefeito José Walter, O POVO destaca alguns fatos que marcaram o começo da história do local. Confira a seguir:
Inauguração da primeira etapa do bairro - 20 de março de 1970
A construção do bairro levou cerca de cinco anos e custou R$ 33 milhões. O projeto do conjunto habitacional teve uma ampliação e foi finalizado com 4.774 casas. No início de 1970, foram entregues 1.208 residências que constituíam a primeira etapa, que ia até a Avenida C. Em agosto de 1970, foram entregues 1.810 casas e em janeiro de 1971, deu-se início à entrega das casas da terceira etapa (que posteriormente ampliada, foi chamada de quarta etapa). As principais reclamações dos moradores com relação às casas eram as janelas que abriam para fora, o revestimento das paredes, o telhado de amianto e a falta de uma caixa d’água na grande maioria delas.
Criação do primeiro posto de Saúde - Julho de 1972
É criado o primeiro posto de saúde do bairro. O Hospital Gonzaguinha foi inaugurado apenas em 1986, apesar de ter sua construção noticiada desde 1980.
Linha de ônibus "José Walter-Centro" começa a circular - 23 de junho de 1976
A abertura da linha “José Walter-Centro” realizada pela empresa Clotran, foi fruto das denúncias constantes dos moradores contra a empresa Nossa Senhora de Fátima, que realizava duas rotas do bairro até o centro da Cidade, uma pela Parangaba e outra pela BR-116. No começo da história do José Walter, eram comuns as “vaquinhas”, iniciativa dos moradores para lidar com a precariedade do transporte público no José Walter. Nas “vaquinhas”, quem tinham veículo particular começou a realizar o transporte de pessoas para o centro pelo mesmo preço cobrado nos ônibus.
Centro Social Urbano Adauto Bezerra é inaugurado - 12 de maio de 1977
O Centro Social Urbano Adauto Bezerra foi pensado para ser um complexo onde seria ofertado lazer, saúde e educação para os moradores do bairro. Por ser um programa federal, na inauguração estiveram presentes diversos políticos, inclusive o presidente da época, o Ernesto Geisel. O Centro Social Urbano hoje está sendo reformado para transformar-se em uma unidade da Rede Cuca. Moradores defendem a manutenção do nome original do equipamento como sinal de preservação da história do bairro.
Acontece a "Festa da Água" - 24 de setembro de 1981
A “Festa da Água” foi um evento para comemorar o momento que pôs fim aos dez anos de luta dos moradores pela regularização do fornecimento de água ao Conjunto, com a inauguração do sistema Pacoti-Riachão.