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A dor do outro poderia ser a nossa
Foto de Ana Márcia Diógenes
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Ana Márcia Diogénes é jornalista, professora e consultora. Mestre em Políticas Públicas, especialista em Responsabilidade Social e Psicologia Positiva. Foi diretora de Redação do O POVO, coordenadora do Unicef, secretária adjunta da Cultura e assessora Institucional do Cuca. É autora do livro De esfulepante a felicitante, uma questão de gentileza

A dor do outro poderia ser a nossa

De um mendigo que vejo envelhecer a uma menina que sumiu na exploração sexual... é preciso mais empatia
Tipo Análise
Imagem ilustrativa de apoio. Pessoa em situação de rua (Foto: FÁBIO LIMA)
Foto: FÁBIO LIMA Imagem ilustrativa de apoio. Pessoa em situação de rua

Uma esmolinha pelo amor de Deus!

A frase, com a entonação do apelo reforçada quase com um grito no fim, vem sempre seguida do tilintar de moedas em uma lata, um copo, um recipiente qualquer. A voz é fraca, fina, num rosto que se contorce para emitir sons.

Ele cresceu ali, na calçada da Avenida Beira-Mar, em Fortaleza. Todos os dias, entre as tardes e as noites, ele se achega. Corpo magro, sentado sobre as pernas dobradas, de quem provavelmente deve ter tido paralisia ou outra doença que afetou os membros inferiores.

Não lembro exatamente quando, mas há décadas que o vejo sempre ali na calçada, à espera dos trocados de turistas e moradores. Os que trabalham por ali passam, falam com ele, interagem naquele quase silêncio entre um grito e outro.

Recentemente, ao fazer uma caminhada no pôr do sol, percebi que os cabelos deste pedinte assíduo da Beira-Mar estão ficando grisalhos. Parei um tempo observando se as pessoas deixavam moedas ou não – alguns poucas gotejaram centavos na lata – e segui em meio a pensamentos sobre aquela cena.

Quem pede esmola tem direito à aposentadoria? Fui pesquisar e vi que, quem está nesta situação pode ter direito ao Benefício de Prestação Continuada (BPC/LOAS), não de caráter previdenciário, mas assistencial, pago pelo Governo Federal. Não sei se a pessoa em questão tem ou não acesso a este benefício.

Fiquei pensando em como deve ser desalentador passar uma vida inteira dependendo de moedas numa lata, às custas de um corpo já desvalido, para tentar sobreviver. E como a política pública ainda é ineficiente para dar conta de casos assim.

Lembrei de outro caso de uma menina que ficava pedindo moedas, há mais de dez anos, no estacionamento de um dos prédios do Centro Administrativo do Estado. Uma criança loura, dos olhos verdes, comunicativa. Eu e outras pessoas que trabalhavam lá sempre falávamos para ela voltar para casa mais cedo, para não falar com estranhos.

Infelizmente, até na miséria o fardo para a mulher é mais pesado. Ela sumiu e, quando soubemos, estava sendo explorada sexualmente. Se ainda é viva é difícil saber. E, se tiver, provavelmente deve fazer parte do número de brasileiros que têm engrossado o círculo da pobreza, geração a geração, sem que que as políticas previstas na Constituição os tenham alcançado.

Seja a menina do estacionamento, que não sei onde está, seja o homem que envelhece junto com seu grito na calçada mais famosa da cidade, o fato é que os invisibilizados estão aí, na nossa frente. Pedem socorro mesmo no silêncio, são silenciados só por existirem.

Seres humanos com dor de dente, que menstruam, têm sede, fome, dor de barriga, enxaqueca... Até quando vamos passar pela dor do outro sem imaginar que poderia ser a nossa?

Foto do Ana Márcia Diógenes

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