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De sustos e espantos
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Ariadne Araújo é jornalista. Começou a carreira em rádio e televisão e foi repórter especial no O POVO. Vencedora de vários prêmios Esso, é autora do livro Bárbara de Alencar, da Fundação Demócrito Rocha, e coautora do Soldados da Borracha, os Heróis Esquecidos (Ed. Escrituras). Para além da forte conexão com o Ceará de nascença, ela traz na bagagem também a experiência de vida em dois países de adoção, a Bélgica, onde pós-graduou-se e morou 8 anos, e Portugal, onde atualmente estuda e reside.

De sustos e espantos

Cronista investiga os medos que percorrem a infância e se transformam com a idade adulta, destacando os "atualíssimos" como os bichos "da ignorância" e da "pulsão de morte dos que se aglomeram".
Tipo Crônica
No Parque Estadual do Cocó, em Fortaleza, Ceará, a noturna mãe-da-lua mistura-se à natureza. Também chamada de
Foto: Demitri Tulio No Parque Estadual do Cocó, em Fortaleza, Ceará, a noturna mãe-da-lua mistura-se à natureza. Também chamada de "ave fantasma", tem o canto associado à lenda do Curupira. Em alguns lugares, é conhecida como "olho mágico", pois tem fendas nas pálpebras e consegue observar ao redor, de olhos fechados.

A teia labiríntica dos nossos medos tem a ponta do novelo nos idos da nossa primeira infância, quando aprendemos que o mundo tem seus perigos e maldades, mas também mistérios e magias. De criança pequena, no Ceará, numa cultura fabricadora de medos, até a vida adulta de hoje, em tempos assustadores, eu ainda pergunto a mim mesma: você tem medo de quê?

Qual terá sido o meu primeiro medo, aquele original, o pai de todos os outros? Lembro, e é memória muito antiga, de um certo pavor do escuro, do breu compacto das noites, daquele nada ver que me aterrorizava, na hora de dormir. Eu reclamava, então, nem sempre com sucesso, uma porta entreaberta. E, não obtendo, fechava os olhos e puxava o lençol até a testa e tentava acender luzes na minha cabeça. Meu pai, vendo a aflição noturna, trouxe-me, certo dia, uma lampadazinha verde que, de tão fraca e fosca, não ajudava muito no trabalho de identificar as coisas, mas, produzia penumbras esverdeadas. A luz não era mais que a de um toco de vela, um lumiar de vaga-lumes. Mas, na minha imaginação, era um raiozinho de lua que fazia brilhar, no quarto, a cores das folhas, lá de fora. E já bastava para eu sonhar sossegada.

Quando faltava luz e a casa ficava toda às escuras, a minha mãe acendia lamparinas a querosene e a minha irmã mais velha contava-nos histórias de assombração, de gênios mágicos, de bruxas malvadas que envenenam maçãs, de apaixonados soldados de chumbo de uma perna só, de lobos maus que devoram de uma vez, uma pessoa inteira.

Às vezes, a coincidência de uma chuva forte, trovões estrondosos e relâmpagos clareando o céu, acrescentavam efeitos sonoros à máquina da imaginação que as narrativas punham a funcionar - o mal e o bem em estratégias astuciosas, na disputas pelos homens. Eu, ombro a ombro com a minha irmã mais nova, era toda sustos e espantos. Depois destes serões, meu pai vinha balançar os punhos da minha rede, até o adormecer.

Mais tarde, eu passei a ter medo de Deus e seus castigos. Tinham-me dito, Ele tudo sabia: dos meus pensamentos, intenções e feitos no presente e no passado, mas também os que ainda viria a fazer e ter, no futuro. Onde?, eu perguntava. E o “em toda a parte” da resposta metia-me em investigações nunca resolvidas. Com poderes assim, uma criança dos dias de hoje poderia até pensar, o Google também é um tipo de deus. Para complicar as coisas, em frente à casa morava Deusa, nossa vizinha, o que somava mais um nó à questão: Deus é homem ou é mulher? Já do Papai Noel, eu tinha medo só nas véspera de Natal, porque ele também estava por dentro das minhas desobediências, ao longo do ano. E era um sujeito bem vingativo, até onde entendi. Escrevia-lhe, então, cartinhas carinhosas, sopradas pelos adultos, onde a minha lista ideal de presentinhos deveria resumir-se a um. E eu, então, caprichava.

Com a idade, já vão longe os medos da minha infância, do bicho-papão, das almas penadas, das mulas-sem-cabeça. Também do Zé Bainha, que passava pedindo esmola, com sua lata vazia. Ou ainda do Chico do Olhão, que diziam ser brecheiro. Dos gatunos que saltavam quintais para assaltar galinheiros. Do Paroara que tinha fama de beberrão e violento. Do menino Beto, que matou na esquina o irmão, sem querer. Do Rex, o cão lá de casa, que era uma fera mordedora. Da professora Zilmar e sua voz estridente. Tudo sumiu no tempo. Hoje, são só histórias. Da época, arrasto só a fobia das cobras peçonhentas e das baratas cascudas. Principalmente, as voadoras. Delas, não me curo. Mas, no vazio destes medos do passado, chegaram outros, atualíssimos.

"Hoje, olho assombrada o zap, a televisão, os jornais, as ruas. É por mim, é pelos que amo, é também pelos que não conheço." Ariadne, ao falar sobre os temores de agora

Lavada e enxaguada na cultura que educa com e pelo medo, cresci em sobressaltos colaterais. Hoje, olho assombrada o zap, a televisão, os jornais, as ruas. É por mim, é pelos que amo, é também pelos que não conheço. Da telas e da telinhas, das cidades, salta este medo invisível e difuso de antes, que tem agora outra cara, outro nome, outra narrativa, mas que ainda engole pessoas inteiras. É o “bicho”, como o povo chama por aqui, em Portugal, o coronavírus. Na cauda deste, vêm outros, igualmente temíveis, como o entrigueiro bicho da ignorância e o revoltante bicho da pulsão de morte, dos que negam, dos que não ligam, dos que se aglomeram. A maçã envenenada circula em bandejas, por ai?

Sabedor das histórias dos meus medos reais e imaginários, meu marido também foi atrás de um lampadazinha verde para a cabeceira da cama, quando vim morar na Bélgica. Gesto simbólico e delicado este, de alumiar meus tempos difíceis de adaptação, no estrangeiro. Já não preciso mais dela - de novo, a superação. É que descobri, às custas de espantos, que quem tem medo também tem coragem, gana de enfrentamento, vontade de virar a mesa. Afinal, para alguma coisa haviam de servir os muitos contos que ouvi, sentada no chão frio da sala, não é? Ecos que lançam, do passado, um não-sei-quê de esperança, de um final (quase sempre) feliz. Então, mesmo no breu da noite, agora eu abro grande os olhos para ver e para imaginar: o que será ?

Foto do Ariadne Araújo

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