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Talentos no confinamento
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Ariadne Araújo é jornalista. Começou a carreira em rádio e televisão e foi repórter especial no O POVO. Vencedora de vários prêmios Esso, é autora do livro Bárbara de Alencar, da Fundação Demócrito Rocha, e coautora do Soldados da Borracha, os Heróis Esquecidos (Ed. Escrituras). Para além da forte conexão com o Ceará de nascença, ela traz na bagagem também a experiência de vida em dois países de adoção, a Bélgica, onde pós-graduou-se e morou 8 anos, e Portugal, onde atualmente estuda e reside.

Talentos no confinamento

No confinamento, a gente se vira em quatro. É um estica e puxa dentro de casa que, às vezes, resultam em descobertas. Tem uns que se lançam em novas receitas, outros inventam um novo jeito de trabalhar, alguém descobre um talento insuspeitável. Entre quatro muros, a gente se reinventa, para não perder a lucidez e enganar a espera
Tipo Crônica
Filhotes de socozinhos num ninho, em uma das margens do rio Cocó, no Parque Estadual do Cocó, em Fortaleza, Ceará (Foto: Demitri Túlio)
Foto: Demitri Túlio Filhotes de socozinhos num ninho, em uma das margens do rio Cocó, no Parque Estadual do Cocó, em Fortaleza, Ceará

É certo que o confinamento demorado trouxe uns quilos a mais. Já troquei a pilha da balança três vezes, confirma-se. Isso aconteceu porque pus as mangas de fora e fui ensaiar talentos novos, na cozinha. Uma receitas de bolos e pães que eu tinha guardado para o futuro, mas descobri, à tempo, que o futuro é agora. Fiz, fotografei para a posterioridade e como prova, fiquei cheia de orgulhos. Também me ataquei às tapiocas, compro a goma do supermercado com promessa de autenticidade brasileira – pelo gosto, não se parece em nada com as que conheço, no Ceará. Mas, se “só tens tu, vais tu”. O marido lambe os beiços.

O desafio maior, no entanto, não estava nas panelas. Sem cabeleireiros abertos, ficamos, os dois, a tentar domesticar, com cremes e pentes, a cabeleira grande demais. A saída para o problema do marido veio pela Internet, uma destas máquinas de corte que já vimos nas mãos de profissionais. A autodidata aqui começou pelo começo: um pano amarrado ao pescoço, como uma capa, o estudo de caso, a análise de por onde começar o ataque e, claro, aprender a ligar e desligar o motor endiabrado. Ficaram buracos e desequilíbrios, um lado mais longo que o outro, mas, como diz uma amiga: é o que temos para hoje. O cliente gostou do resultado, eu descobri que não levo jeito.

Da Espanha veio, e foi uma luta para achar, a bicicleta doméstica que viria rebater as tapiocas, bolos e pães, salvar-nos do excesso de peso - por aqui, o inverno chuvoso não convidada aos passeios esportivos. Soubemos, aliás, pelos jornais, que os portugueses tiveram a mesma ideia, lançaram-se em compras online e mandaram entregar tudo à porta de casa. Foi uma enxurrada de computadores, mesas e cadeiras de escritório, almofadinhas para as costas, lâmpadas, mas também coisas que nada têm com o trabalho à distância. É que, de tanto olhar para o interior da casa, o sujeito incomodou-se com aqueles problemas que foram empurrados com a barriga, para o dia com tempinho livre.

" E eu, como “Seu Ceará”, entendo o que eu posso ou o que quero: é no fazer que a gente acorda talentos e passa a perna no tempo de espera." Ariadne Araújo, jornalista, ao narrar as descobertas nos tempos da pandemia

Foi, então, uma urgência de demãos de tintas nas paredes, um bater de pregos, um parafusar armários, um arrumar quintais, um refrescar o lar doce lar. Um desejo irreprimível de bricolar. Aliás, o comércio de bricolagem, cujo lema é “faça você mesmo”, arrebentou pelas costuras de clientes virtuais. Agora, com a flexibilização do confinamento, vê-se famílias inteiras, armadas de trenas e calculadoras, determinadas a adquirirem, tinindo de novo, o que há de “up do date” em termos de banheiros e cozinhas americanas. A rainha destas lojas é a Leroy Merlin, cujo nome francês é traduzido pelo “Seu Ceará”, um faz-tudo muito solicitado pela minha família, como “SeuLorim”. Eu prefiro.

No SeuLorim português, fui atrás de material para embelezar minha pequena varanda, piso novo e um conjunto de mesa e cadeiras. O marido quer introduzir no espaço exíguo também uma churrasqueira portátil. Já amola facas pensando nos churrascos que vai fazer, no verão. E cabe? Cabe, sim. Para além destas bricolagens, também lancei-me na yoga, uma novidade para a desajeitada que eu sou. Uma amiga aprendeu a pintar com tutoriais do youtube. Outra amiga comprou máquina de costura e já remenda bolsos e bainhas de calças. Minha irmã fez curso de macramê online e já tapeçou uma capa nova para o puf. Diz o meu marido, é no sofrimento que a gente dá o pulo do gato. E eu, como “Seu Ceará”, entendo o que eu posso ou o que quero: é no fazer que a gente acorda talentos e passa a perna no tempo de espera.

Foto do Ariadne Araújo

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